Quase lá: A história incompleta de Miriam Batucada

Miriam Batucada foi muito mais que qualquer rótulo pré-determinado

 A Terra é Redonda

Cleber Souza, Roda de samba, 2021.

 

Por DANIEL COSTA*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Ricardo Santhiago

Com o advento das variadas redes sociais, de novas e acessíveis ferramentas para a produção musical, assim como para difusão e distribuição de canções, acompanhamos novos artistas surgindo quase diariamente. Se por um lado tal facilidade contribui para a democratização e circulação da produção musical, por outro revela o caráter efêmero de muitos desses artistas, que não conseguem ultrapassar a temida barreira do hit de estreia.

Em uma sociedade marcada pelo efêmero, pelo sucesso instantâneo e momentâneo, poucos são aqueles que se dispõem a olhar pelo retrovisor aquilo que fora produzido no passado. Esse apagamento quase automático da nossa memória musical, acaba contribuindo para o reforço da imagem de alguns personagens – geralmente aqueles que tiveram significativa produção, quantitativa e qualitativa, além do bom relacionamento com parcelas da intelectualidade – como cânones, enquanto outros ficam em uma espécie de limbo, hora esquecidos, hora ocupando o espaço destinado a figuras excêntricas.

Caso fosse pedido para ligar nossa personagem a dos grupos citados acima, com certeza ela estaria no segundo. Caso a tarefa fosse colocar nossa personagem em uma prateleira específica, poderia classificá-la como uma legítima representante do samba ítalo-paulistano, porém Miriam Batucada foi muito mais que qualquer rótulo pré-determinado. Miriam não foi apenas a sambista com sotaque mezzo paulistano, mezzo italiano, ou a pós-tropicalista participante de um mítico disco. Miriam foi muito mais: artista, lésbica, possivelmente bipolar ou ciclotímica, feminista, oriunda da periferia urbana e de uma família sem tradição musical.

Para revelar as diversas faces dessa personagem singular, o historiador paulistano Ricardo Santhiago mergulhou no cenário artístico e cultural paulistano. O resultado da acurada pesquisa pode ser conferida no livro A história incompleta de Miriam Batucada. Ao longo de suas páginas, Santhiago convida o leitor para entrar no universo particular de Miriam Ângela Lavecchia, ou simplesmente Miriam Batucada.

Neta de italianos, Miriam Batucada nasceu em 28 de dezembro de 1946, no bairro da Mooca. Porém, seria registrada apenas no primeiro dia de 1947, ganhando “um ano” como algumas famílias costumavam fazer naquele período. Com apenas seis anos, tocava harmônica uma Scandalli de 120 baixos, revelando desde pequena a aptidão musical. Ainda com essa idade, a pequena Miriam também chamava a atenção de vizinhos e familiares por saber a letra e melodia de músicas dos mais variados gêneros.

Miriam Batucada residiu até os vinte anos na Rua João Antônio de Oliveira; fez o jardim de infância na Escola Santa Terezinha, na Rua Javari; o antigo grupo escolar na atual E.E. Oswaldo Cruz e o curso técnico na Brasilux. Depois disso, fez um curso de digitadora na IBM e foi trabalhar na fábrica Alpargatas, localizada onde hoje funciona a Universidade Anhembi Morumbi, e na Arno, onde, segundo a própria Miriam Batucada, foi despedida por fazer batucada nos teclados.

Assim, pode-se dizer que Miriam Batucada teve sua identidade artística construída na Mooca, onde desde a infância assimilou e reproduziu o que é conhecido como dialeto ítalo-paulistano. Foi também no bairro que efetivamente iniciou sua carreira, cantando em festinhas de amigos e nos concursos de calouros tão comuns à época, como o que ocorria no Clube de Funcionários da Cia. União, que ficava do lado da fábrica de meias Ibram, na Rua João Antônio de Oliveira, quase esquina da Rua da Mooca.

A origem operária da personagem é destacada tanto pelo autor, que traz detalhes sobre sua infância e juventude no bairro da zona leste paulistana, fato que também é destacado pelo jornalista Pedro Alexandre Sanches, responsável pelo prefácio da obra: “Não é trivial a biografia que Ricardo Santhiago constrói, sob nenhum aspecto. A disseminada fórmula ‘nascimento, glória e morte de uma estrela’, contrapõe um documentário rico, denso e analítico sobre uma representante exemplar do operariado que faz a base da indústria musical e sobre o que o showbiz gosta de chamar de ‘fracasso’. Sem nunca deixar de sublinhar o talento intrínseco de sua personagem, expõe, assim, a pedra bruta oculta por baixo da avalanche propagandística das virtudes tortas da fama, do sucesso, da fortuna e da celebridade”.

No começo de sua carreira, Miriam Batucada despontava com um samba cadenciado, com forte inclinação melódica, remetendo aos clássicos de Noel Rosa, Wilson Batista e similares. Com o resgate do que aprendera na infância com uma vizinha conhecida como Chacareira e a divisão de cantoras como Ademilde Fonseca que ouvia no rádio, Miriam passaria a adotar um ritmo frenético no compasso de qualquer samba. Sobre esse aspecto, Santhiago ressalta que: “sua genuína habilidade musical para extrair sons percussivos com as mãos e sua voz alegre, verborrágica, mas também melancólica, para cantar/contar suas histórias, a fizeram ganhar uma marca que pegou”.

Sua estreia nos estúdios de gravação ocorreria em 1967, quando grava pelo selo Artistas Unidos da gravadora pernambucana Rozenblit o compacto com as faixas “Batucando nas Mãos” do então jovem compositor Renato Teixeira e o sincopado “Plác-tic-plác-plác” de Waldemar Camargo e Peteleco, que na realidade era o cantor e compositor Adoniran Barbosa.

Em 1968, quem apostaria na jovem cantora paulistana seria a gravadora Odeon, que a convida para gravar um compacto duplo, destaque para as faixas “Linguajar do morro” e “Puro amor”. Desde o primeiro compacto, Miriam Batucada apresentava sua famosa batucada nas mãos nas gravações. No mesmo período, passou a ser muito requisitada para espetáculos e chegou a até fazer apresentações no exterior. De acordo com alguns críticos musicais, apesar de seu samba ser relativamente tradicional, Miriam era pessoalmente muito criativa e aberta.

Essa abertura e criatividade, resultado da vocação antropofágica da cultura paulistana, possibilitou a Miriam participar ao lado de Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Edy Star do seminal Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta: Sessão das 10.

O ano de 1974 enfim reservaria para a cantora a chance de gravar um LP individual. Lançado pela Chantecler, o álbum Amanhã ninguém sabe, coloca a intérprete ao lado de cantoras como Maria Alcina (que embalada pelo sucesso da canção de Jorge Ben, “Fio Maravilha”, lançaria pela Chantecler álbum homônimo em 1973 e pela Continental em 1974) e Célia (que por meio da Continental lançaria uma trilogia clássica entre 1970 e 1975).

Na contracapa do álbum em um texto destinado aos ouvintes a cantora, entre a alegria e surpresa escreve: confesso que o achei um pouco louco quando me propôs gravação deste tão esperado LP, pedindo-me que ficasse totalmente à vontade, livre: que fizesse o que sentisse, pois queria toda a minha personalidade no disco; a minha batucada na mão, no violão, o meu lado fossa e a minha face alegre, consciente de que sou a única em tudo que faço.

A personalidade e o jeito único de Miriam Batucada foram algo marcante para sua trajetória artística, como destaca Ricardo Santhiago: “Miriam percorreu caminhos traiçoeiros, mas, na música, encontrou uma profissão que lhe permitiu não só florescer, mas também recompor sob um prisma positivo as bases do seu próprio eu. Sorte: moleca, marota, tagarela, cheia de manias, teimosa, espontânea – tudo o que era excesso quando criança, para o desagrado de sua família e desaprovação de seu meio social, foi recriado como valor quando a oportunidade apareceu, fulminante. Revés: um abismo entre criadora e criatura se estabeleceu”.

Fruto de uma extensa pesquisa, marcada por entrevistas com diversos contemporâneos de Miriam Batucada e por um rico trabalho de pesquisa iconográfica, a obra torna-se referência desde seu lançamento. Não apenas pela personagem revelada, mas também por possibilitar ao leitor conhecer os meandros de uma indústria cultural que, apesar de diferente na contemporaneidade, ainda guarda muitos traços daquele período.

Sobre a biografia, o autor ainda esclarece que: “A princípio, planejava escrever um livro de 200 páginas que acabou em quase 400. Uma vida é inesgotável, e não acho que nenhuma biografia tenha o poder de ser (e nem deve almejar) enciclopédica e exaustiva. É sempre um recorte. Mas a personagem foi se ‘complexificando’… Miriam teve uma discografia abreviada, mas uma vida nada abreviada: viveu intensamente seus 47 anos. No começo, algumas pessoas que procurei, do universo da música e da mídia, torceram o nariz. Perguntavam “Por que é que estava fazendo uma pesquisa sobre Miriam”, sempre com o subtexto que sugeria que ela não havia sido tão relevante assim. Quando vi o livro editado e diagramado, com suas 370 e tantas páginas, pensei: Muito bom. Agora ninguém poderá ignorar que Miriam existiu nem continuar minimizando-a e obliterando-a, até depois da morte”.

Ainda sobre o reconhecimento, ou melhor, a ausência do reconhecimento da relevância e da trajetória de Miriam Batucada por seus pares, crítica e público, o historiador afirma que: “Definitivamente, Miriam não tem o reconhecimento que merece na música brasileira. Miriam foi principalmente artista dos palcos, que fazia espetáculos divertidos, encantadores, eletrizantes, mas – como quaisquer espetáculos – efêmeros. Deixou muitas marcas, que permanecem latentes nos subterrâneos que alimentam a nossa cultura: sua capacidade rítmica extraordinária e sua percussão corporal originalíssima, seu humor e sua teatralidade, seus espetáculos que eram musicais, eram performáticos e tinham um quê de comédia stand up. Espero que esse livro ajude a tornar visível parte desse legado”.

Após aceitar o convite proposto por Ricardo Santhiago para mergulhar no universo dessa mulher singular, posso afirmar com clareza que a publicação tornou visível o legado de Miriam e abriu caminho para a reparação e reconhecimento do seu talento e trajetória.

*Daniel Costa é mestrando em história na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Referência

Ricardo Santhiago. A história incompleta de Miriam Batucada. São Paulo, Letra e Voz / Popessaura, 2024, 372 págs. [https://amzn.to/4cBGmU1]

 


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fonte: https://aterraeredonda.com.br/a-historia-incompleta-de-miriam-batucada/


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