Livro de Rachel de Queiroz se passa durante a Era Vargas, mostrando de modo sensível a luta da mulher que ainda acredita nas transformações sociais
Texto: Claudia Costa
Arte sobre fotos/ Wikimedia Commons
Considerada uma das maiores escritoras do século 20, Rachel de Queiroz (Fortaleza, 17 de novembro de 1910 – Rio de Janeiro, 4 de novembro de 2003) foi uma pioneira no cenário literário nacional. Nome de destaque da ficção nordestina, é a única representante feminina no movimento modernista brasileiro e uma das primeiras cronistas do País. Também foi a primeira a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 1977, e a receber o Prêmio Camões. Seu romance Caminho de Pedras integra a lista de leituras obrigatórias do vestibular da Fuvest 2026 e 2027, que, nesta edição, é composta exclusivamente de autoras.
Conhecida por sua postura aguerrida e por seus posicionamentos políticos contraditórios ao longo dos anos, a autora integrou, na década de 1930, o Partido Comunista do Brasil, no qual permaneceu por pouco tempo ao constatar que sua liberdade como escritora estava ameaçada pela ideologia partidária. Em 1935, em meio à repressão do governo de Getúlio Vargas, ficou detida por três meses e dois anos depois teve livros queimados em praça pública com a decretação do Estado Novo em 10 de novembro de 1937, juntamente com exemplares de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, acusados de subversão.
Foi durante sua prisão que Rachel escreveu Caminho de pedras, expressão de um socialismo libertário que poucas vezes voltaria a aparecer em suas obras. O livro é carregado de dilemas do período: a perseguição da Era Vargas a organizações trabalhistas, a violência estatal e o moralismo, especialmente em relação à expectativa da atuação de mulheres, dentro e fora do lar, como aponta a pesquisadora Roberta Hernandes Alves, com mestrado e doutorado em Literatura Brasileira pela USP, e autora da tese A cesta de costura e a escrivaninha: uma leitura de gênero da obra de Rachel de Queiroz, que investiga a escrita feminina na obra da autora.
“Caminho de pedras marca a emancipação de Rachel, na medida em que ousa criticar certos procedimentos do partido comunista ao mesmo tempo em que retrata de modo sensível as lutas de Noemi (personagem principal), que, apesar de todas as dificuldades e obstáculos, segue acreditando em transformações sociais”, destaca a pesquisadora. Segundo ela, há na obra uma presença nordestina no cenário, na linguagem, no viés narrativo, somada a uma perspectiva sobre as mulheres e seus dramas: a atuação social, a maternidade, o amor, a quebra de barreiras.

Capa do livro de Rachel de Queiroz que faz parte da lista de leitura obrigatória da Fuvest 2026 - Foto: Editora José Olympio
A trajetória
Rachel de Queiroz desponta no cenário literário do Brasil com apenas 20 anos, quando escreve O Quinze, publicado em 1930, título que se refere à grande seca de 1915 do Nordeste, vivida pela escritora durante sua infância. “A autora desconhecida, que trabalhava como jornalista desde 1927, usando o pseudônimo de Rita de Queluz, escreveu um livro árido sobre a tragédia da seca, que gerou dúvidas sobre sua autoria”, conta a pesquisadora. Como lembra Roberta, todos perguntavam se seria mesmo livro de mulher, já que a abordagem do tema não parecia condizer com o que no período se considerava uma escrita de autoria feminina, pois não possuía o sentimentalismo que se costumava atribuir aos textos de mulheres. “Com estilo direto e seco, avesso a excessos e emotividades, Rachel inicia sua trajetória literária rompendo barreiras e estereótipos”, analisa.
Escrito em 1937, Caminho de pedras é o terceiro romance da autora – seu segundo livro, João Miguel, foi lançado cinco anos antes. “Os romances de Rachel sempre terminam em trânsito, como aponta a própria autora. Há sempre um percurso a ser trilhado, um desafio a ser vencido, um espaço a ser conquistado pelas mulheres”, afirma Roberta. E continua: “Embora haja muita desilusão no universo literário de Rachel, é possível vislumbrar também resistência e uma perspectiva inovadora da atuação feminina”, completa.
A história
Em Caminho de pedras, o leitor acompanha a trajetória de Noemi. Jovem, casada e mãe de um menino, ela divide o seu tempo entre o trabalho, os afazeres domésticos, a maternidade e as reuniões do grupo comunista para discutir a situação do proletariado e encontrar formas de atuar politicamente na busca por melhores condições de vida. Nesses encontros, ela conhece o jornalista Roberto e se forma então um triângulo amoroso repleto de tensões e dilemas, especialmente para Noemi, que enfrentará os preconceitos da sociedade do período. Como relata a pesquisadora, “a obra retrata a protagonista e seus conflitos, suas escolhas e as perdas com que terá que lidar em seu ‘caminho de pedras’”. A protagonista se vê testando novos limites morais e éticos, tanto no campo do amor quanto no da política, como está descrito na orelha do livro.
Caminho de pedras é uma história de gente magra, uma história onde há fome, trabalho excessivo, perseguições, cadeia, injustiças de toda a espécie, coisas que os cidadãos bem instalados na vida não toleram."
A pesquisadora informa que, apesar da dureza da trajetória, é com esperança que a personagem surge na cena que encerra a obra: seguindo na luta e carregando uma nova vida, símbolo máximo desse futuro que está sendo gestado pelos trabalhadores do período. “Como em outros romances de Rachel de Queiroz, sua prosa acompanha o pequeno, o pouco, o periférico”, diz Roberta, explicando que, no caso da obra Caminho de pedras, os trabalhadores da periferia de Fortaleza sobrevivem com pouco, quase sempre com um jantar de sopa e café.
Na opinião de Graciliano Ramos, “Caminho de pedras é uma história de gente magra, uma história onde há fome, trabalho excessivo, perseguições, cadeia, injustiças de toda a espécie, coisas que os cidadãos bem instalados na vida não toleram”.

A escritora Rachel de Queiroz em posse na Academia Brasileira de Letras - Foto: Arquivo Nacional/Wikimedia Commons
“Retocando” a realidade
No início da narrativa, Noemi trabalha numa casa de fotografias, num trabalho muito peculiar: retocar fotos para que fiquem adequadas ao que deseja a pessoa retratada, uma espécie de photoshop manual. Para a pesquisadora, essa é uma “imagem interessantíssima” para o romance: a protagonista retoca a realidade, alterando-a, “melhorando-a”, mas sua realidade continua crua, sem retoques. “Ao perder o emprego é como se ela, de algum modo, retirasse a máscara social e encarasse sua vida e as agruras que a compõem de modo mais direto, sem rodeios, e pode, assim, romper com o ciclo do destino feminino e seguir na luta por sua emancipação”, complementa.
Outra cena significativa ocorre no capítulo 22 da obra, como cita Roberta. Noemi perde o emprego porque se separou do marido. O dono da loja em que ela trabalhava retocando fotografias afirma não ter queixas sobre ela, mas os frequentadores eram, na maior parte, famílias, e não se sentiam à vontade em serem atendidos por ela devido a “seu procedimento nestes últimos tempos”. Segundo a pesquisadora, o leitor contemporâneo se dá conta, nessa passagem, de como a sociedade superou esse tipo de preconceito e uma fala como essa seria fortemente rebatida e mesmo questionada em termos de legalidade hoje em dia.

Capas de edições do livro Caminho de pedras - Foto: Reprodução/Editoras
Características da obra
A pesquisadora informa que entre as características da obra estão a denúncia da violência e da perseguição estatal, a prosa em estilo direto e os diálogos que recriam com naturalidade o falar cotidiano. “Outra marca importante é a questão do corpo aliada à do desejo. É na intersecção entre o caso coletivo político e o caso pessoal da história de amor da protagonista que se encontra uma das forças desse romance”, destaca. “Não é apenas o funcionamento social que restringe os sonhos de Noemi, mas o próprio casamento, o arranjo previsto na família burguesa, com um papel definido a priori para a atuação feminina, quase sempre de submissão e aceitação do status quo”, observa. E, para a pesquisadora, é também contra essa situação que a personagem atua.
Caminho de pedras é considerada a obra mais engajada da autora. “O romance todo aborda perdas, medo de mudança, necessidade de luta”, afirma. “Escrito em meio ao recrudescimento que leva ao Estado Novo de Vargas, retrata os desencontros na tentativa de formar um grupo de discussão e ação comunista em Fortaleza.
Roberto, jornalista recém-chegado do Rio de Janeiro, se constitui como a mola propulsora do enredo, na medida em que se interessa por Noemi e se torna uma espécie de preceptor para ela. Rachel agrega, nessa obra, tanto o retrato da luta da classe operária na Fortaleza da década de 1930 quanto a ação violenta do Estado que busca reprimir iniciativas consideradas subversivas com vigilância constante, perseguições e mesmo prisões”, relata a pesquisadora. E continua: “Forçados a atuar na clandestinidade, os personagens são constantemente testados em seu desejo de busca por justiça social”.
Do ponto de vista da estrutura narrativa, a pesquisadora assinala a presença constante de duplos, tais como: Roberto e João Jaques, os homens com quem Noemi se relaciona afetivamente; os dois filhos, simbolizando passado e futuro; a realidade social vista por dois ângulos: a realidade maquiada nas fotografias e a realidade despida do cotidiano; a utopia dos encontros no grupo comunista e a dura vivência na periferia de Fortaleza.
Forçados a atuar na clandestinidade, os personagens são constantemente testados em seu desejo de busca por justiça social."
Viés psicológico
No livro, aparecem as primeiras demonstrações de um estilo mais introspectivo e de análises psicológicas. A pesquisadora comenta que a obra apresenta um ponto de vista muito interessante na medida em que alia o painel sobre a realidade do trabalhador a partir da trajetória dos personagens, com um ritmo narrativo ágil, muitos diálogos e pouca descrição. “Ao mesmo tempo, acompanhamos dilemas dos personagens que dão ao texto uma complexidade reveladora do funcionamento psicológico de cada um”, diz.
A pesquisadora cita as características de cada um dos personagens. João Jaques, o marido de Noemi, sente perder a mulher, mas sente especialmente perder com ela o convívio com o filho; ferido em seu orgulho, prefere viajar para outro Estado após a separação do casal.
Já Roberto vivencia tanto o dilema de se sentir responsável por causar a dissolução de um casamento, quanto o ciúme do filho de dela, uma conexão que a unirá para sempre ao ex-marido.
Mas, segundo a pesquisadora, é principalmente por meio de Noemi que a investigação psicológica do romance ganha força, com sua experiência de perda tanto do sonho do casamento, ao viver o luto do rompimento com João Jaques, quanto do lugar social, ao perder o emprego por estar separada do marido, e também pela dor da perda do filho. “Nesse momento, Rachel mergulha no sofrimento feminino de modo profundo: é pela metáfora do corpo feminino que a perda, a desesperança e o desamparo social da década de 1930 se fazem sentir. É no corpo de Noemi também que a nova gravidez anuncia um projeto de futuro.”
Questões atuais
A obra trata de questões ligadas, sobretudo, às questões de gênero, à miséria, às lutas sociais e às políticas das classes operárias na Fortaleza de 1930, questões ainda atuais, pontua a pesquisadora. “Para retratar esse período de tanta efervescência política, com grupos de atuação operária resistindo na luta apesar das perseguições e ataques, Rachel opta por uma abordagem engajada ao trazer a novidade de um romance com uma protagonista que rompe o estereótipo da dona de casa do período”, ressalta Roberta. “A partir de sua atuação política, o desejo pela vida renasce em Noemi: não apenas um desejo político de transformação social, mas também o desejo amoroso”, aponta.
“Esse resgate da história de engajamento dos trabalhadores e trabalhadoras na década de 1930 é fundamental para conhecermos nossa história e entendermos que conquistas que estão presentes hoje, e mesmo direitos trabalhistas que estão sob ameaça, foram resultado de organização e luta”, frisa e reitera que é preciso conhecer essa história e zelar pela continuidade do que foi obtido pelo esforço e engajamento de mulheres representadas por meio de Noemi.
Esse resgate da história de engajamento dos trabalhadores e trabalhadoras na década de 1930 é fundamental para conhecermos nossa história e entendermos que conquistas que estão presentes hoje, e mesmo direitos trabalhistas que estão sob ameaça, foram resultado de organização e luta.”
“Aos olhos do leitor, as ações de Noemi podem parecer um tanto datadas, especialmente se considerarmos o aumento da representatividade feminina na vida pública, seja em coletivos, cargos políticos, cargos executivos e uma crescente busca por equidade em todos os âmbitos da esfera social, inclusive a familiar. No entanto, a atualidade da obra está no fato de que ainda há muito o que ser conquistado”, ressalta Roberta. “Este livro é a expressão de uma voz poderosa contra incômodos sociais que ainda persistem e uma busca de mudanças profundas em âmbitos políticos e familiares”, como está descrito na própria obra.
A obra se mostra atual, apesar das inúmeras conquistas dos quase 90 anos que nos separam da primeira publicação do livro."
Conquistas das mulheres
“A leitura de Caminho de pedras é importante para conhecermos o funcionamento social do período em que se passa a obra e ao mesmo tempo nos ajuda a zelar para que conquistas alcançadas com muito custo sejam celebradas e preservadas no presente”, reitera Roberta. No enredo, demitida e vítima de preconceito, Noemi passa a trabalhar de modo informal, como costureira, quando o novo companheiro é preso. Ela também chega a ser presa, mas é solta em dois dias por estar grávida. Precisará, sozinha, pensar em como se sustentar quando a criança nascer. “Esse é o desafio que acompanha a personagem perto do final do romance”, revela a pesquisadora.
Para a pesquisadora, “de algum modo, em 1937, essa obra nos alerta sobre como é importante garantir que direitos e estrutura social deem conta de acolher trabalhadores e trabalhadoras”. Quantas mulheres no século 21 não se depararam com as mesmas aflições de Noemi?, questiona Roberta. “Nesse sentido, infelizmente, a obra se mostra atual, apesar das inúmeras conquistas dos quase 90 anos que nos separam da primeira publicação do livro.”