Quase lá: Pagu - Considerações sobre uma das mais polêmicas figuras femininas da história brasileira no século XX

Pagu defendeu sistematicamente as vanguardas e a experimentação artística, consagrando sua pena à propaganda das principais figuras e dando destaque dentre todas a Fernando Pessoa.

 

Imagem: Reprodução YouTube/Ater
 
 

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Considerações sobre uma das mais polêmicas figuras femininas da história brasileira no século XX

Pagu defendeu sistematicamente as vanguardas e a experimentação artística, consagrando sua pena à propaganda das principais figuras e dando destaque dentre todas a Fernando Pessoa. Embora seja pouco citada, Pagu divulgou-o incansavelmente desde um primeiro artigo no Fanfulla, em 1950.

O recente resgate de sua produção jornalística por K. David Jackson, como adiante se verá, veio enfatizar o papel de liderança que teve na recepção crítica do poeta. De sua pena saíram, vinculados a Pessoa, reportagens, crônicas, análises críticas, resenhas de livros, artigos, incluindo um testemunho do “Recital Fernando Pessoa” na voz de Os Jograis, em 1955, a que assistiu pessoalmente. Para aquilatar a relevância de suas escolhas: comentou, cada qual a seu tempo, os Estudos sobre   Fernando Pessoa de Casais Monteiro (1958), a Obra poética da Aguilar e a antologia de João Gaspar Simões publicada no Brasil (1961). Atenta ao plano internacional, anotou em 1960 a inclusão de Pessoa na série Poètes d´aujourd´hui da Editora Seghers, em tradução de Armand Guibert que incluiu a “Ode marítima”.

E fundaria em Santos, cidade na qual residiria pelo resto da vida e onde seria agitadora cultural de primeira plana, o Centro de Estudos Fernando Pessoa (1955). Sua amizade com o grande crítico pessoano Casais Monteiro – destinatário da célebre “Carta dos heterônimos” – quando em fase brasileira,  garantiria a comunhão no culto ao poeta. Mais tarde, Casais Monteiro assinaria o prefácio à segunda edição de Doramundo (1959), romance de Geraldo Ferraz

Seu apego ao teatro, que daria a tônica nesses anos, eclodiria em 1952, quando frequenta a Escola de Arte Dramática de São Paulo [i], na qual apresenta tradução e estudo de A cantora careca, de Ionesco. Batalhadora sem esmorecimento, assume a coordenação do Teatro Universitário Santista (1956) e a presidência da União dos Teatros Amadores da cidade (1961). A partir de 1957 mantém a coluna “Palcos e atores”, em A Tribuna, jornal local.  Combativa, sua coluna seria uma trincheira na luta sem descanso pela dramaturgia experimental e pela liberdade de criação. Dirige a encenação da peça Fando e Lis, de Arrabal, que recebeu vários prêmios. Mais tarde, encenaria também A filha de Rapaccini, de Octavio Paz.

Após seu falecimento em 1962, a cidade onde se fixou e tanto labutou na última fase de vida fez-lhe justa homenagem, ao consagrar e batizar a Casa de Cultura Patrícia Galvão, da prefeitura de Santos.

Essa última fase de militância jornalística profissional e assídua infelizmente ainda é pouco conhecida, embora já tenha sido objeto de rigoroso levantamento. Só aí poderíamos pensar numa verdadeira biografia dessa grande mulher. Mas quem sabe já está à vista essa possibilidade, pois o trabalho do supracitado especialista em Modernismo brasileiro e professor da Universidade de Yale, K. David Jackson, também tradutor de Parque industrial [ii], já se encontra em fase de edição na Edusp.

Trata-se de um trabalho monumental, em quatro volumes, trazendo todo o jornalismo de Pagu. O abundante material se distribui desta maneira pelos quatro volumes, conforme critério temático, verificável nos títulos elucidativos que lhes atribuiu o organizador:

Vol. 1 – O jornalismo de Patrícia Galvão. A denunciada denuncia: Pagu e a política (1931-1954).

Vol. II –  Da necessidade da literatura (De Arte & Literatura / Lições de Literatura).

Vol. III – Palcos e Atores: Teatro mundial contemporâneo.

Vol. IV – Antologia da literatura estrangeira: Os grandes autores mundiais.

Devemos ao mesmo especialista dois trabalhos já publicados, a saber: “A denunciada denuncia – Pagu and politics, 1931-1954”, in Literature and Arts of the Americas. Issue 73, Vol. 39, No. 2, 2006; e “Uma evolução subterrânea: o jornalismo de Patrícia Galvão”, in Revista IEB, São Paulo: No. 53, mar/set 2011. De sua autoria é ainda um valioso estudo que acompanha a reedição de Parque industrial que viemos citando, intitulado: “A dialética negativa de Parque industrial”.Ninguém mais autorizado do que ele para falar disso, já que se trata do tradutor desse romance para o inglês, como vimos. Os 4 volumes sairão na forma de e-book, com mais um volume de antologia impresso.

 

Desdobramentos

Em 2009, Pagu ganharia merecida exposição, na qual apareceu ladeada por duas figuras decisivas de seu convívio, donde o título: Pagu, Oswald, Segall. A mostra deve-se a Gênese Andrade na curadoria e Jorge Schwarz na direção do Museu Lasar Segall. Ambos, curadora e diretor, são críticos literários especialistas em Modernismo.Constou de 60 obras, entre pinturas, desenhos, documentos, fotografias e iconografia em geral, incluindo peças de Portinari, Di Cavalcânti, e do próprio epônimo da casa.

Ampliando o contexto, e imprimindo inédita inflexão ao ângulo de abordagem, agora influenciado pelo novo movimento feminista, que tem elevado Pagu ao posto de precursora e de ícone no comportamento acima do convencional, muito avante de seu tempo, têm surgido fecundas análises.  A tendência é corroborada pelo novíssimo livro de Ana Paula Cavalcanti Simioni, Mulheres modernistas – Estratégias de consagração na arte brasileira  [iii].  Argumentando que a proeminência de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral é rara, em meio à hegemonia masculina entre os vanguardeiros, vai estudar os motivos das exceções. Mais uma guinada rumo às mulheres, e da autoria de uma mulher.

Se uma ampliação da popularidade levou Pagu a enredos de escola-de-samba, por outro lado levou-a também à televisão. Já aparecera, anos atrás, numa minissérie sobre o Modernismo, intitulada Um só coração. Agora apareceu muito mais, devido às comemorações do Centenário da Semana de 22. Embora demasiado jovem para participar dela, Pagu já entraria em cena a todo vapor na Antropofagia, inclusive em sua revista. Entre as novas aparições, destaca-se um curta-metragem para TV, intitulado Pagu musa-medusa , episódio da minissérie República da Poesia, com 45 minutos [iv].

Em depoimento especial para este filme, Sérgio Mamberti, grande homem de teatro, conta que tinha 14 anos quando conheceu Pagu em Santos, cidade onde ela viveria sua última fase. Tornaram-se amigos e passaram a trabalhar juntos, ela um modelo de atuação engajada. Fundaria, como vimos, o Teatro Universitário de Santos, o Centro de Estudos Fernando Pessoa e a Associação dos Jornalistas Profissionais de Santos – entre outras proezas.  Abriu espaço e estimulou gente que vinha do cais do porto, como Plínio Marcos, futuro dramaturgo de primeira linha. Cultíssima e conferindo alto valor à cultura, Mamberti a considera um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX.

Outro depoimento decisivo é o de José Celso Martinez Correa, do Teatro Oficina, em recorte de material de arquivo. Ao fim de um de seus grandiosos espetáculos antropofagistas, uma desconhecida impulsiva avança e o envolve num longo abraço de agradecimento. Ele, que ainda não fora apresentado a Pagu, ficou siderado. Desde então, acha que ela lhe transferiu algo, que era algo semelhante a uma xamã e lhe repassou uma virtude ou poder.

O curta traz ainda fotos inéditas, muitas, e cartas manuscritas falando dos filhos, já mencionados, Rudá de Andrade do primeiro casamento e Geraldo Galvão Ferraz, o Kiko, do segundo. Ambos têm trabalhos sobre a mãe: Rudá codirigiu um documentário e Geraldo foi coautor de uma fotobiografia e de um site. O episódio não poupa merecidos louvores a Geraldo Ferraz, seu devotado companheiro até o fim.

Ouvem-se especialistas como Thelma Guedes, autora de Pagu – Literatura e revolução. Quem mais? Há ainda uma entrevista com o neto, Rudá K. Andrade, filho de Rudá, autor de  A arte de devorar o mundo [v]que fala da vida fora de série da avó.

 

Relançamento de um clássico

Como ninguém ignora, devemos ao conhecido poeta concreto Augusto de Campos a descoberta de Pagu. Tão cedo quanto os anos 70 já divulgava sua obra e seus traços biográficos, sempre manifestando admiração, entregando-se a uma pesquisa aprofundada. É de 1982 seu livro a respeito [vi], trazendo achados, estudos e uma antologia.

Passado cerca de meio século, o poeta brinda-nos com uma nova edição [vii], que se pode com justiça chamar de definitiva. Revista e ampliada, tem ao todo 472 páginas, trazendo farta iconografia e novos textos. Materialmente, é um belo livro, mostrando-se condigno de seu autor e de seu objeto de estudo.

O volume vem enriquecido por alguns acréscimos úteis, como um Índice Remissivo, mas dos quais o mais notável está nos “Cinco flashes de Pagu”, que eram três anteriormente. Incluem agora uma entrevista do organizador e texto seu sobre O Homem do Povo, experiência de tabloide político provocador que culminaria em empastelamento. E um decisivo estudo introdutório intitulado “Re-Pagu” dá conta do que se passou entre as duas edições.

A antologia contempla os livros, os pseudônimos mais importantes e as colunas periodísticas, constituindo-se numa amostra rica e fidedigna.

A respeito de Pagu por outros autores, temos preciosidades, que aparecem já na primeira edição nas seções “Testemunhos” e “Resenhas críticas”. Pode-se aquilatar o valor de depoimentos de pessoas que privaram de sua intimidade e de seus feitos, como a irmã Sidéria, fiel aliada. Alguns se destacam, como o lamento de Carlos Drummond de Andrade por seu falecimento. Ou a vinheta em que o diplomata Raul Bopp relata a saga rocambolesca do contrabando de sementes de soja, conseguidas pessoalmente do próprio imperador Pu-Yi por Pagu e por ela trazidas ao Brasil a pedido do diplomata, violando a proibição do governo chinês.

 

Parque industrial

O livro de Pagu, clássico do “romance proletário” assinado pelo pseudônimo Mara Lobo, recebe reedição impecável pela Linha a Linha, que honra a autora e a obra. Abre-o, noblesse oblige, um prefácio de Augusto de Campos, que redescobriu Pagu nos anos 1970/1980. Até então, tinha-se vaga noção de uma Pagu associada tanto aos fastos modernistas quanto à saga da esquerda.

A diagramação manteve a distribuição em blocos, acentuando a concepção da narrativa fragmentada, em instantâneos ou flagrantes que se dispõem por curtos e incisivos capítulos. A prosa, entre expressionista e cubista, certamente é de vanguarda. Visa à síntese, apoiando-se sobre elipses e cortes súbitos, acentuando a velocidade do discurso que não perde tempo em explicações ou transições. Um pouco tendendo ao que então se chamava “estilo telegráfico”.

A narrativa – que se passa no Brás, à época reduto operário de imigrantes italianos em São Paulo -, ao encaminhar-se num crescendo para a eclosão de uma greve, traz uma evidência logo de saída: trata-se de um romance de mulheres. São moças de vários tipos e instâncias da vida social, embora unidas pela classe, pois pertencem todas ao proletariado. Há poucas exceções, como aquela que subiu na vida casando-se com um homem de posses; ou outra que chegou aos abismos da prostituição mais desamparada, por não ter saúde para enfrentar a extenuante jornada de trabalho. No mais, são operárias mais politizadas ou mais alienadas, mais decididas a enfrentar as agruras da vida ou mais desesperadas. O dia a dia das jovens trabalhadoras é mostrado em suas facetas de tarefas, vida social, amores, militância. A imersão de Pagu em sua própria proletarização e trabalho na fábrica é humus para a elaboração ficcional. Seu ativismo é ponto de partida, e mais anos de cárcere ainda viriam.

Mostra também o assédio que as operárias sofrem dos rapazes de automóvel, para quem são mercadoria de carne, aliás descartável. Nem noivas nem prostitutas, não são elegíveis para casamento nem exigem pagamento – portanto são altamente convenientes, até por saírem barato. Nesse mesmo ano de 1933 Noel Rosa compôs o samba “Três apitos”, em que – coisa rara tanto na literatura quanto na música popular – fala das operárias de fábrica e desse assédio, só que mediante idealização benigna e sentimental, nada predadora, do dono do automóvel.

É de autoria de Pagu nosso mais importante romance proletário, e a seu lado quase todos os demais dessa voga – ressalvadas honrosas exceções –  conservadores e ortodoxos, nada vanguardistas, empalidecem. Seu romance, comunista, feminista e modernista ao mesmo tempo, ergue-se ímpar na literatura brasileira.

 

Uma canção

A popularidade sempre em expansão de Pagu conduziu-a à esfera pop, entronização sacramentada não só por enredos de escola de samba, mas também pelos empolgantes acordes de Pagu [viii]de Rita Lee e Zélia Duncan, várias vezes regravada tanto pelas autoras como por outras intérpretes. Isso é que é homenagem. Aqui vai a transcrição da letra, que vai demolindo um por um os clichês pejorativos com que as mulheres são tratadas, ou melhor, destratadas:

Pagu

 

Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão

 

Eu sou pau pra toda obra
Deus dá asas a minha cobra
Minha força não é bruta
Não sou freira, nem sou puta

 

Porque nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem

 

Sou rainha do meu tanque
Sou Pagu indignada no palanque
Fama de porra louca, tudo bem
Minha mãe é Maria ninguém

 

Não sou atriz, modelo, dançarina
Meu buraco é mais em cima

*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).

Publicado originalmente em: Revista Opiniães, Literatura Brasileira, USP,n. 2, 2023.

Notas


[i] “A Pagu da EAD”, in Alfredo Mesquita, O teatro de meu tempo, Nanci Fernandes et al. (Orgs.). São Paulo: Perspectiva, 2023.

[ii] Industrial park: A proletarian novel, trad. Elizabeth Jackson e K. David Jackson. Lincoln: University of Nebraska Press, 1993.

[iii] Ana Paula Cavalcanti Simioni, Mulheres modernistas – Estratégias de consagração na arte brasileira. São Paulo: Edusp, 2022.

[iv] Pagu musa-medusa, roteiro e produção de Yara Amorim,  direção de Claudia Priscila e Mariana Lacerda. Canal Curta!, 2022.

[v] Rudá K. de Andrade, A arte de devorar o mundo – Aventuras gastronômicas de Oswald de Andrade. São Paulo: doburro, 2021.

[vi] Augusto de Campos, Pagu – Vida-Obra. São Paulo: Brasiliense, 1982.

[vii] Augusto de Campos, Pagu – Vida-Obra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

[viii] Rita Lee e Zélia Duncan, Pagu, Álbum 3001 (2000).

 

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