O movimento sufragista no início do século XX. O novo ciclo de lutas durante a ditadura. Seu papel na redemocratização. A crescente presença de mulheres na política institucional – inclusive de ultradireita. E o novo desafio: a reconstrução nacional

OUTRASPALAVRAS

Publicado 07/03/2024

 

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Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), com o título “O feminismo político brasileiro”. Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

 

Neste 8 de março, precisamos falar de política, precisamos falar de democracia. Após termos vivido quatro anos de um governo de extrema direita, que se declarava antipolítico, antissistema, perseguia os que lutavam por inclusão e direitos e militarizou todas as instâncias do poder executivo, tivemos 2023 como um ano de recomeço, embora fortemente marcado pelo 8 de janeiro, última tentativa de pôr uma pá de cal no regime democrático. Os protagonistas da profunda desorganização na política brasileira ainda estão atuantes na vida pública e – o que é mais grave – ainda têm uma popularidade surpreendente.

Nesta desorganização planejada, sofreram mais os mais excluídos, os mais pobres e os pejorativamente chamados de grupos identitários. Havia no governo de extrema direita pessoas dedicadas a desqualificar estas lutas, como a ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves, ou o presidente da Fundação Palmares, Sergio Camargo. Na Câmara de Deputados, deputadas eleitas com apoio do ex-presidente continuam atuantes na desqualificação de projetos de lei identificados com lutas históricas das mulheres.

Portanto, é hora de falar de política e de pensar na reorganização do regime democrático e no seu aprofundamento. Neste cenário, o ativismo feminista tem responsabilidade por sua história no mundo e particularmente no Brasil.

A luta das mulheres por seus direitos, desde o século XVIII – com Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges – até hoje tem um caráter político. O movimento feminista decorreu da luta pelos direitos das mulheres de votarem e serem votadas. Não foi, como uma leitura ligeira pode deixar a impressão, um movimento de burguesas desocupadas na Inglaterra e nos Estados Unidos. A reação das forças políticas e policiais inglesas contra as sufragistas e a comoção causada pelo cortejo fúnebre com o corpo da militante Emily Davison pelas ruas de Londres, em junho de 1914, dão a medida de que era um movimento popular. Houve participação de mulheres da elite, certamente, mas também de mulheres radicais da classe operária inglesa e de mulheres negras nos Estados Unidos, estas últimas lutando, desde então, também contra o racismo.

O feminismo brasileiro, que dividiu suas origens com as sufragistas ainda no fim do século XIX, diferente de algumas vertentes pelo mundo, nunca deixou de ser político. A luta pelo voto, ainda nas primeiras décadas do século XX, experimentou formidáveis experiências de organização. Berta Lutz se imortalizou ao lutar pelo voto e pela liderança da Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF) e teve uma repercussão inusitada, espalhando-se por muitos estados do país, numa época em que as dificuldades de comunicação eram imensas. Não tão popular quanto Lutz, ao contrário, bastante perseguida, Leolinda Daltro foi outra liderança da época na luta pelos direitos políticos das mulheres: professora, indianista que se colocava contra a catequese dos indígenas, mulher separada do marido com cinco filhos, fundou – junto com outras mulheres, entre elas Gilka Machado, uma poeta de textos eróticos – o Partido Republicano Feminino, com regimento publicado no Diário Oficial em 17 de dezembro de 1910. Estas mulheres tratavam de se fazer presentes, em suas próprias palavras, onde “pudessem causar repercussão”. Em 1917, chegaram a organizar uma marcha pelas ruas do Rio de Janeiro, com a participação de 90 militantes (Pinto, 2023: 19).

A luta pela participação política levou várias mulheres ao redor do Brasil a tentarem se inscrever para concorrer a cargos nas eleições com base na Constituição de 1891, que não nominava, entre os inelegíveis, as mulheres. A exclusão era naturalizada, o art. 70 determinava que “são eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei”. O parágrafo 1º definia os inelegíveis; mendigos; analfabetos, praças de pré e religiosos. Com base nesta exclusão não explícita, várias mulheres tentaram – e algumas até conseguiram – se alistar, sem, no entanto, alcançar sucesso no certame eleitoral. A exceção foi as eleições de 1927 no Rio Grande do Norte, quando 16 mulheres conseguiram o alistamento e Julia Alves Barbosa foi eleita para a Câmara Municipal de Natal. As mulheres obtiveram o direito de votar e ser votada em 1932, com o novo código eleitoral. Ao longo de toda a chamada Primeira República, a presença pública de mulheres foi marcante pela luta por seus direitos políticos. O golpe do Estado Novo, em 1937, interrompeu a vida política no país e arrefeceu a luta das mulheres. A poderosa LBPF perdeu importância e desapareceu.

O feminismo, que teve origem política no fim do século XIX, início do XX, nas décadas de 1960/70 retomou seu ativismo de formas bastante variadas. Considerando os feminismos estadunidense e europeu, seus movimentos lutavam por direitos da mulher no mercado matrimonial, no mercado de trabalho, discutiam sexualidade e direitos reprodutivos. Tanto em uma região como na outra, havia estabilidade democrática. O capitalismo ainda vivia de sua recuperação pós-guerra, principalmente nos países europeus onde o Estado de bem-estar social predominava, garantindo condições de vida razoáveis para a grande maioria da população. Quando Betty Friedan, em 1963, denomina o 1º capítulo de A Mística Feminina como “O problema que não tem nome”, ela nomeia, de certa forma, o profundo mal-estar que a estrutura patriarcal provocava nas mulheres do capitalismo avançado (Friedan, 2020).

No Brasil, foco de preocupação neste pequeno ensaio, a situação era completamente outra. As décadas de 1960/70 começaram com lutas que objetivavam aprofundar a frágil democracia existente, com preocupações sociais e reformas de base para tirar a maioria da população da miséria. A reação a estas mobilizações foi violenta, apoiada por interesses internacionais do capitalismo, por amplos setores da burguesia nacional, por setores da classe média e capitaneada pelas Forças Armadas. O resultado é conhecido: mais de 20 anos de ditadura civil-militar, a partir de 1964. Neste cenário, o feminismo renasce no Brasil como um movimento político. Era impossível se engajar em movimentos sociais sem se opor à ditadura e lutar pela redemocratização.

Os movimentos de mulheres, especificamente o movimento feminista da década de 1970, se engajaram na luta pela redemocratização. Todas as ações estavam dentro de um arco político que englobava a centro-esquerda e a esquerda, a última, em grande parte, na clandestinidade. Foi uma época de muitas dificuldades para o movimento de mulheres no Brasil. O regime militar conservador não via com bons olhos a organização, acusada de ameaçar a família e os valores cristãos do país. De outra forma, os partidos na clandestinidade e os grupos de esquerda, que lutavam pela redemocratização muito informados pelo marxismo clássico, viam no feminismo um desvio da luta de classes. A própria questão do regime democrático era uma novidade para a esquerda brasileira, que aprendeu seu valor muito mais como consequência das torturas nas prisões da ditadura e no desaparecimento e morte de companheiros, do que pelo convencimento das qualidades do regime a partir de uma reflexão política ideológica.

 

Um grande tema reunia uma gama de pessoas que lutavam contra a ditadura: a anistia para os presos e presas políticos e exilados. O movimento pela anistia foi liderado por Terezinha Zerbini, esposa de um general perseguido e não especialmente simpática ao feminismo, que ela associava ao movimento estadunidense. Mesmo assim, em 1975, ela foi a representante do Movimento de Mulheres Brasileiras pela Anistia na I Conferência Mundial sobre a Mulher promovida pela ONU, no México. Em suas palavras: “Lá apresentei uma moção pedindo anistia a todos os presos políticos do mundo” (Pinto, 2023: 63).

No mesmo ano, o Centro da Mulher Brasileira e a Sociedade Brasil-Mulher publicaram um manifesto em solidariedade às presas políticas em greve de fome. Aí fica claro o enraizamento político do movimento feminista:

Nós, representantes de entidades feministas brasileiras, cumprindo nosso papel em defesa dos Direitos Humanos, alertamos o povo para a dramática situação, pois se omitir nesta hora é corroborar para o prosseguimento de tamanha injustiça humana e social. Mais uma vez, perante tais arbitrariedades, unimos nossas vozes para uma anistia ampla, geral e irrestrita (Pinto, 2023: 65).

A década de 1970/80 foi de crescimento do movimento feminista no Brasil. Às mulheres que estavam se organizando no país juntaram-se – a partir de 1979, com a Lei da Anistia – as que haviam sido exiladas e haviam entrado em contato com o movimento na Europa e nos Estados Unidos. O movimento feminista se amalgamava com a luta pela redemocratização.

Havia uma questão discutida internacionalmente pelas feministas: a autonomia do movimento frente aos partidos políticos e ao Estado. No Brasil, o tema tinha repercussões, mas havia uma realidade que se impunha: o país precisava retomar seu caminho em direção à democracia e à justiça social, o que exigia quase obrigatoriamente um envolvimento político e uma tomada de posição ideológica. Foi o que aconteceu.

Nos primeiros anos da década de 1980, a luta foi pelo estabelecimento de conselhos das mulheres nos governos federal e estaduais. O primeiro deles foi criado em São Paulo, com a eleição de Franco Montoro, e teve como presidenta a socióloga e feminista Eva Blay. Em 1984, Tancredo Neves se comprometera com o movimento a criar o conselho nacional. Seu sucessor, José Sarney, manteve a promessa e criou, em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), que teve como presidenta a socióloga Jaqueline Pitanguy. Desde a criação até o ano de 1989, quando Collor de Mello praticamente o extinguiu, ao suprimir autonomia e orçamento, o Conselho foi responsável pela aproximação entre o feminismo e a política.

Durante a Constituinte, o CNDM teve papel central, arregimentando mulheres feministas ao redor do país para a elaboração da “Carta das Mulheres” com propostas para os constituintes. Esta carta é importante especialmente hoje, quando os movimentos sociais enfrentam críticas por serem considerados corporativos e de representarem identitarismo isolacionista. A carta está dividia em duas partes. A primeira defende a justiça social, a criação do Sistema Único de Saúde, o ensino público e gratuito em todos os níveis, a autonomia sindical, a reforma agrária e a reforma tributária, entre outras propostas. A segunda detalha as demandas do movimento feminista pela igualdade das mulheres na sociedade brasileira. Na mesma época, houve também uma campanha nacional, com outdoors que afirmavam: “Constituinte para valer tem de ter mulher”.

A mobilização do movimento feminista durante a Constituinte talvez seja um dos momentos de maior êxito no espaço da política institucional, pois a Constituição de 1988 traz um robusto conjunto de artigos que garantem direitos das mulheres.

A nova fase importante da presença do feminismo na política aconteceu a partir do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2003, foi criada a Secretaria Especial da Mulher com status de ministério, que apresentou políticas públicas e uma transversalidade da questão gênero nos diversos ministérios. Ao longo dos governos de Lula e Dilma, aconteceram quatro Conferências Nacionais de Política para as Mulheres, que mobilizaram ao redor de 300 mil mulheres nas conferências municipais, estaduais e nacionais. Delas, saíram dois Planos Nacionais de Política para as Mulheres.

Certamente os primeiros quatro governos petistas aproximaram muito o feminismo da política institucional e foi constituído um verdadeiro feminismo de Estado, com as perdas e os ganhos que tal condição traz. Os ganhos se expressaram em políticas públicas e na transversalidade da questão de gênero em toda a estrutura governamental; as perdas se concretizaram no enfraquecimento do movimento social, devido ao afastamento das bases que a participação da militância nos cargos governamentais provocou.

O feminismo brasileiro, no entanto, se reinventou forte nas redes sociais, com mulheres jovens, mulheres negras, mulheres lésbicas e trans. Isto revela a vivacidade do feminismo, a lamentar o distanciamento, às vezes excessivamente crítico, entre estas novas manifestações e o que havia sido construído antes. Não que as novas gerações de feministas tenham que seguir as fundadoras, mas há experiências vividas que – ainda que não diminuam os equívocos, a falta de compreensão mais ampla dos problemas de gênero – não podem ser desprezadas, jogando a criança fora junto com a água do banho.

Relativamente ao feminismo político, tão característico da experiência brasileira, é importante destacar o que há de mais paradoxal em sua história: a total incapacidade de romper a barreira sexista da política partidária, o que impede as mulheres de chegarem aos cargos eletivos legislativos e executivos. O Brasil tem uma posição degradante no ranking da participação política das mulheres. Dados do IPU de fevereiro de 2024 classificam o Brasil na 134ª posição em relação à presença das mulheres nos parlamentos, considerando os 184 países que possuem alguma representação feminina. Na América Latina, apenas Haiti e Venezuela ocupam pior posição que o Brasil (conferir ranking aqui).

Desde as eleições de 2022, as mulheres brasileiras representam, na Câmara de Deputados, 17,5% de todos os parlamentares, um número irrisório. São muitos e aprofundados os estudos sobre as razões desta ausência. Eles analisam a cultura sexista, as relações patriarcais da sociedade brasileira e, principalmente, o sistema de lista aberta com votação nominal para deputados[1].

Vários esforços para mudar este quadro – devidos a demandas e pressões dos movimentos feministas, como as cotas nas listas partidárias, a garantia de recursos e o tempo de TV – não têm obtido a eficiência esperada. Nas últimas eleições, apenas uma governadora foi eleita, na verdade, reeleita: Fátima Bezerra, do PT do Rio Grande do Norte.

Nesta dificuldade, revela-se ainda um novo paradoxo: o aumento de deputadas federais eleitas, que cresceu de 9,94% em 2014 para 17,5% em 2022, ocorreu pela chegada à vida pública de um número significativo de mulheres conservadoras, filiadas a partidos de direta e extrema direita, com pautas antifeministas. Em 2014, deputadas de direita representavam, 33,3% das mulheres eleitas (e eram majoritariamente esposas e filhas de políticos). Em 2022, este percentual foi de 46,1%. Já as deputadas eleitas pelos tradicionais partidos de esquerda e centro-esquerda, próximas das pautas feministas, eram 39,3% em 2014 e tiveram uma pequena redução para 34%36 em 2024 (conferir dados aqui). Um dado expressivo desta nova realidade é que, das 42 deputadas eleitas de direita e, principalmente, de extrema direita, em 2022, 7 foram reeleitas como as mais votadas em seus respectivos estados (conferir aqui).

O feminismo no Brasil, como tratei de apresentar neste breve ensaio, teve uma história que se confundiu com a política do país, em um primeiro momento demandando a inclusão através do direito ao voto. A partir da década de 1970, passou a lutar contra o regime militar, depois pelo aprofundamento da democracia, pelo reconhecimento de direitos, que ultrapassaram, como se viu durante a constituinte, questões referentes às lutas características de gênero. Convém sempre ter em mente que as vitórias de grupos chamados identitários não escolhem – e seria absurdo pensar que poderiam fazê-lo – os que se beneficiarão com suas conquistas. Assim, muitas mulheres conservadoras, antifeministas, que antes das conquistas feministas dificilmente teriam possibilidade de serem atuantes no espaço público (a não ser como esposas e filhas), conquistam cargos na política, se elegem e tornam-se lideranças. A mesma situação pode acontecer no movimento negro, ou no movimento LGBTQIA+. Este é um preço a pagar.

Este 8 de março ocorre em um ano de eleições municipais. Mais uma vez as mulheres terão de fazer um grande esforço para terem espaços em seus partidos. O movimento feminista, em suas mais diversas manifestações, tem mais uma vez a tarefa de lutar para que mais mulheres, comprometidas com as causas de gênero e com a consolidação da democracia no país, sejam eleitas. É preciso eleger mulheres que retomem as lutas históricas do feminismo, que introduzam novas lutas e se articulem com outros grupos excluídos da sociedade para a construção de um regime democrático mais sólido, livre e igualitário.


Nota

[1] Ver Araújo (2001, 2009, 2012), inclusive em análise comparativa com a Argentina (2010), bem como os estudos de Marques (2010) e de Miguel & Biroli (2010).

 

fonte: https://outraspalavras.net/feminismos/feminismo-olhar-o-passado-para-entender-o-futuro/


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