No Estado de Direito que prometemos querer construir (mas cuja promessa reiteradamente descumprimos), o monopólio estatal do exercício da força se legitima porque é exercido nos limites das autorizações conferidas pelo direito.
Por Ester Gammardella Rizzi, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP
“Vingança não é política de Estado”, disse Bianca Santana no ato contra a chacina no litoral paulista, em frente à Secretaria de Estado de Segurança Pública, na noite do dia 3 de agosto de 2023. O ato foi organizado pela Coalizão Negra por Direitos e outras organizações do movimento negro.
Bianca tem toda razão. No Estado de Direito que prometemos querer construir (mas cuja promessa reiteradamente descumprimos), o monopólio estatal do exercício da força se legitima porque é exercido nos limites das autorizações conferidas pelo direito. Também conhecido como princípio da legalidade estrita das ações estatais, a norma estabelece o compromisso de que os agentes do Estado só podem agir quando autorizados explicitamente e de acordo com os procedimentos previstos na lei.
A chamada “operação escudo”, que está sendo realizada neste momento no litoral paulista, claramente viola esse princípio. São muitas as evidências, sendo a mais triste e a mais eloquente delas os 16 mortos que contabiliza. Não há hipótese de ação policial realizada nos limites da legalidade em que o saldo sejam 16 mortos. Simplesmente não há. Outra evidência bastante eloquente da ilegalidade e do absoluto abuso do uso da força é o fato de não existirem imagens das câmeras que os policiais deveriam manter em seus uniformes. Ou eles retiraram as câmeras – por saberem estar agindo em desacordo com o que é esperado de um agente público de segurança – ou apagaram as imagens produzidas. Ambos os casos gravíssimos do ponto de vista da política de segurança pública.
Vingança, autotutela, “justiça com as próprias mãos” (que de justiça não tem nada), “olho por olho, dente por dente” são práticas que, ao menos discursivamente, o Estado quer coibir ao mediar os conflitos por meio de instituições. Quem felizmente vive longe de contextos em que a violência permeia os cotidianos – o que não é verdade para boa parte da população brasileira – pode vislumbrar os efeitos da prática de autotutela por meio de obras de arte. Clássicos do faroeste, como o filme Consciências Mortas” ou, em uma de suas versões brasileiras, Abril Despedaçado, mostram o quanto a prática da violência gera mais violência. O ciclo da vingança e da medição de forças é muito dificilmente interrompido, inúmeras injustiças cometidas, resultando em muitas mortes e na sensação generalizada de insegurança permanente.
Por oposição, mediação dos conflitos sociais por instituições, em caso de identificação de crimes, realização de julgamentos pelo Poder Judiciário, julgamentos em que sejam respeitadas as etapas do devido processo legal, com conhecimento dos termos da acusação, direito de defesa e tempo para que o direito de defesa se realize (a dimensão “tempo” é fundamental no devido processo legal, embora excessiva demora ou “tempo demais” também seja uma violação desse princípio) são, junto com o monopólio do uso legítimo da força por agentes estatais, um dos projetos mais importantes do Estado de Direito. A construção de instituições e práticas sociais que efetivamente garantam os direitos previstos no ordenamento jurídico é um processo longo.
No caminho brasileiro, ainda estamos distantes de realizar suficientemente esse projeto. Para essa constatação, basta conhecer as práticas de nossa Justiça Criminal e nossas penitenciárias superlotadas e violadoras de múltiplos direitos.
Reconhecer o quão longe estamos de alcançar a realização dos princípios do Estado de Direito, no entanto, não justifica o abandono do caminho. A luta é pelo aperfeiçoamento das instituições e pelo respeito à legalidade. Pela reafirmação dos compromissos e exigência de cumprimento das promessas do Estado Democrático de Direito.
Ao praticarem vingança, reagindo com uso de violência e armas a um assassinato cometido contra um colega policial, os agentes envolvidos na “operação escudo” estão usando as armas públicas que estão em suas mãos em evidente confronto com a legalidade do Estado que as concedeu. Estão deixando de ser policiais e passando a ser pessoas que cometem crimes.
A farda de policial, o concurso que o aprovou para o cargo e o salário no final do mês não são suficientes para definir um policial. É preciso somar a esses elementos formais que o policial respeite os limites e os procedimentos que o ordenamento jurídico estabelece para sua ação. Uma vez que esses limites são desrespeitados frontal e explicitamente, estamos diante de um cidadão exercendo violência e cometendo crimes e não mais de representantes de instituições estatais. Mais grave do que isso é o fato de essa não ser uma ação de um agente isolado. Muitos policiais, organizados em uma operação oficial, respaldados politicamente pelo governador Tarcísio de Freitas que afirma estar “extremamente satisfeito” com a operação escudo, agem em confronto direto com a legalidade. Tem-se um problema institucional amplo. Já não se poderia mais dizer que se trata da instituição policial definida no artigo 144 da Constituição Brasileira de 1988, já que despida de suas características principais de legalidade e legitimidade.
Que a operação escudo – e suas réplicas violentas no Rio de Janeiro e na Bahia – sejam interrompidas imediatamente. Que as responsabilidades sejam apuradas, incluindo a responsabilidade do governador Tarcísio de Freitas ao reforçar politicamente ações ilegais. É o próprio Estado Democrático de Direito Brasileiro e a ordem constitucional de 1988 que são colocados em xeque e em risco quando a instituição policial age em confronto direto com a legalidade.
fonte: https://jornal.usp.br/articulistas/ester-gammardella-rizzi/vinganca-nao-e-politica-de-estado/