Quase lá: Portugal entre 1974 e 1975

26/04/2024

A Terra é Redonda

 
 
 

Por RAQUEL VARELA*

Nunca tanta gente decidiu tanto

1.

Era uma vez um homem, ou quase-homem, que queria comer o fruto do alto duma árvore. Olhou, calculou a distância, decidiu que queria (ato consciente) comer o fruto e pensou em como fazer-se chegar lá. Começou por uma liana, que se partiu, refletiu sobre o peso, e pensou que podia produzir, com as próprias mãos, uns “degraus”, até que construiu uma escada. E quis ensinar à sua comunidade o que era uma escada, como fazê-la, como usá-la, e, por isso deu nomes – à corda, à escada e ao ato de ir além, ir mais alto.

Os signos complexos e a imaginação em ato: a linguagem e o pensamento. E a (auto)educação. Transmitir o conhecimento. No limite, a cultura letrada. Tudo tem origem no trabalho. Somos trabalho, e só por trabalharmos somos humanos – a linguagem, o pensamento, a cultura (com a mesma raiz de colo/cultus/culturus – fecundação, agricultura, religião etc.) diz-nos quem somos. Sem trabalho, não somos nada. É através do trabalho que tornámo-nos humanos, com ele transformamos o mundo e a nós próprios. O homem que faz (faber), que sabe que sabe (sapiens sapiens) e imagina (imaginosus). O homem que fez a escada, nomeou-a e ensinou-a. O homem inventou tudo, das guerras às revoluções contra as guerras. O seu e o seu contrário.

Quero defender, nesta breve peça, uma ideia-chave: a história social, a história dos de baixo, ou do povo, não é a história de uma parte da população ou de um tema específico, como seria a história das ideias e mentalidades, dos hábitos de alimentação, ou a história militar ou – aquela que é dominante no nosso seio desde os anos 1980, e a entrada no período de declínio acentuado do capitalismo global, o neoliberalismo –, a história política e institucional. De reis e senhores passámos, sob a influência da resistência ao nazi-fascismo e das revoluções anticoloniais a uma difusão da história social nos anos 1970. E a uma história, após 1986-89, de Estados e de estruturas, isto é, as instituições.

A história do povo é a história como um todo, é esse o argumento central deste texto. Quando a fazemos mobilizamos não só como sujeitos quem trabalha, e as dinâmicas sociais, convocamos o âmago daquilo que é central para explicar as sociedades humanas e, mesmo, a humanidade. O que determina toda a vida social – o trabalho. Explico-me: a dita tese da “centralidade do trabalho” não é apenas uma opção de historiadores marxistas, enamorados pelas classes trabalhadoras e os seus épicos, porém, também, trágicos, e contraditórios ditos e feitos.

O mistério do trabalho vai da definição de quem somos, tema que apaixona psicanalistas, até às forças tectónicas que levam ao embate entre classes e movimentos sociais, as revoluções sociais. O trabalho é tão importante que é o que define o modo como vivemos em sociedade e o regime que regula as relações sociais. Ellen M. Wood (1942-2006), historiadora marxista canadiana, uma voz de rigor e honestidade intelectual, fez uma defesa fascinante da ideia de que na Grécia Antiga tinha nascido a democracia porque havia autonomia do trabalho – os escravos, claro, não tinham sequer direitos, mas a base da democracia política e, por isso, da (até hoje fascinante) esplendorosa cultura grega era a quantidade de homens livres na cidade. Polis, mestres-artesãos, artífices, que ao terem autonomia no seu próprio trabalho possibilitaram um resplandecente florescimento das primeiras organizações democráticas no ventre da cidade-Estado. Não há democracia sem democracia no local de trabalho.

A história social – que procurámos fazer na História do Povo na Revolução Portuguesa e na Breve História de Portugal (ambos publicados pela Bertrand) – permite-nos subir ao alto da montanha e, daí, enxergar a linha do horizonte. Coloca-nos num lugar que permite compreender as diferentes sociedades não na sua aparência (troca mercantil, forma-dinheiro, “coisas” etc.) ou na sua figuração (partidos, Igreja, direcções etc.), mas na sua essência – tudo o que é produzido em sociedade vem do trabalho e só o trabalho é que produz valor.

E o trabalho, no capitalismo realmente existente, não é um arranjo contratual assinado entre pessoas livres, essa é só a sua representação jurídica formal, mas uma relação social entre classes sociais distintas: a burguesia e os trabalhadores. Estas classes não são as únicas que existem, mas são, depois de consolidadas no período contemporâneo do capitalismo avançado, as que determinam toda a estrutura social em que trabalhamos e, portanto, todo o modo de pensar, sentir e viver a vida. E assim, chego ao meu segundo ponto, o trabalho. A história do trabalho e o seu mundo não é a história dos trabalhadores, é, na verdade, a história da sociedade como um todo.

2.

Cerca de três milhões de pessoas estiveram envolvidas em formas de democracia participativa na vida social e política em Portugal entre 1974 e 1975, “quando o futuro era agora”, na expressão feliz, cunhada por Francisco M. Rodrigues (1927-2008), e que remete para a noção de pré-figuração. Mas o que é isto? Que palavra é esta, “pré-figuração”? Também se explica pelo trabalho – o trabalho e seus desdobramentos permitem aquilo que nos distingue dos animais e que o fundador da psicologia concreta do homem denominou as funções ou processos psíquicos superiores (atenção dirigida, decidimos dar atenção a, focar em; memória volitiva, não é a memória involuntária; abstração conceptual; imaginação criadora).

No fundo o que Liev S. Vigotski (1896-1934) diz é que pela educação – daí que seja bárbaro assistir à degradação da educação escolar – é que é pela educação que nós aprendemos a nos desenvolvermos e sermos senhores das nossas próprias decisões, regulando a nossa própria conduta, entre elas aprendemos a criar, decidimos criar, escolhemos inventar.

Nas revoluções sociais trata-se da prefiguração política em ato – criamos em coletivo toda uma nova sociedade, em permanência, “fazemos” o que “sabemos”, e assim o futuro desejado se afigura na ação. Esse é o significado mais profundo da história do povo na revolução portuguesa, e que só a história social pode analisar, interpretar, descrever, narrar, explicar e compreender: nunca antes tanta gente decidiu tanto em toda a história de Portugal. Nunca antes tanta gente aprendeu tanto a decidir o que e como fazer aquilo que virá a ser.

Sem esperar pelo Estado e muitas vezes contra as instituições, tomaram decisões que foram fulcrais para o país e que determinaram um salto de tigre da idade média para a modernidade e a contemporaneidade. Mudaram o país e mudaram-se a elas mesmas. A política deixou então de ser, num Portugal com 300 anos de inquisição e 48 de ditadura, uma profissão de poucos e passou a ser a gestão da coisa pública, comum, de muitos, de todos. A guerra colonial terminou, celebrada nas ruas “nem mais um soldado para as colónias”, no cano das espingardas alçaram-se cravos rubros.

Mas só quer tudo quem não teve nada: os professores em cada escola organizaram a gestão destas, com representantes eleitos, debateram pedagogia e didática, conteúdos e currículos, sempre entre pares; os médicos decretaram que nunca mais a transfusão de sangue humano seria comercializada, os hospitais privados seriam então inseridos num Serviço Nacional de Saúde cujo primeiro esboço é desenhado em 1974 e 1975 com a nacionalização das velhas misericórdias e a abertura de novas urgências, exigidas pelos médicos para ampliar cuidados à população e, assim, o próprio saber-fazer médico.

Nas empresas e nas fábricas os trabalhadores reuniram-se, pela primeira vez na história do país, de forma inteiramente livre, e impuseram limites ao trabalho noturno, salários acima dos mínimos, direito ao trabalho e direito ao descanso, férias pagas, segurança social; centenas de milhar de pessoas tiveram acesso a uma casa arrendada ou autoconstruída.

A liberdade chegou a sério, conquistada e aprimorada: teatros e ballets, onde os artistas debateram o que é a arte, porque é uma necessidade fundamental, atuaram nos locais de trabalho, as mulheres passaram a decidir lado a lado com os homens onde fica a creche, porque as rotas dos autocarros devem servir todos os bairros, mas também passaram a decidir sem os homens, questões essenciais da intimidade, e, até, do sentido da vida – a propriedade privada dos meios fundamentais de produção social encolheu-se, e a liberdade individual de milhões anónimos, libertados do espartilho da escassez brutal, ampliou-se, como nunca antes.

O liberalismo português, iniciado em 1820, nem o direito ao voto garantiu, mas a Revolução dos Cravos, o biênio do PREC, não trouxe só o direito ao voto, reunião, associação, e liberdades e garantias individuais e coletivas, trouxe o direito a viver em democracia, sem medo, no local de trabalho e em todas as esferas da vida.

“O povo é quem mais ordena, dentro de ti oh cidade!”. A revolução portuguesa, que se sucedeu ao 25 de Abril de 1974, e durou sensivelmente quase dois anos a fio, foi o período não só mais extensamente revolucionário, como mais profundamente democrático da história de Portugal. A democracia substancial – muito mais do que a democracia procedimental das urnas eleitorais – ensinou-nos que há outro modo possível de vida e trabalho, em cooperação, solidariedade e liberdade.

Esse passado hoje é glosado e temido pelas classes dominantes que querem fazer do PREC (Período Revolucionário em Curso) um tempo de balbúrdia, confusão e caos generalizado, omitindo que esse tempo histórico, esse sonho lindo porque real, foi o tempo em que mais gente, de forma mais livre, responsável e empenhada (re)construiu o país, trazendo-o da guerra colonial, do trabalho forçado e dos salários miseráveis na metrópole, para um lugar onde se entrava numa escola com alegria e desejo de transformação, num hospital para ser acolhido de braços ternos e abertos, e seguros e nos locais de trabalho.

À paixão triste do medo contrapôs-se , com lutas sociais e coletivas, a paixão alegre da esperança. 50 anos depois devemos celebrar esse tempo para construir o futuro, perceber como podemos, de novo, envolver-nos todos na coisa pública e assim ampliar a nossa liberdade individual e colectiva, a nossa própria humanidade, reconhecermos…em cada esquina um amigo.

*Raquel Varela é professora de história na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Autora, entre outros livros, de Breve história da Europa (Bertrand) [https://amzn.to/3I1EOFs]

Publicado na revista Somos livros.

 

fonte: https://aterraeredonda.com.br/portugal-entre-1974-e-1975/


Artigos do CFEMEA

Coloque seu email em nossa lista

lia zanotta4
CLIQUE E LEIA:

Lia Zanotta

A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?

ivone gebara religiosas pelos direitos

Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

Violência contra as mulheres em dados

Cfemea Perfil Parlamentar

Direitos Sexuais e Reprodutivos

logo ulf4

Logomarca NPNM

Cfemea Perfil Parlamentar

Informe sobre o monitoramento do Congresso Nacional maio-junho 2023

legalizar aborto

...