Após décadas de lutas, a comunidade conquistou direitos durante a primeira onda de governos progressistas na região. Casamento igualitário foi um marco; e a Argentina, a pioneira. Mas ascensão da ultradireita lembra que conquistas exigem vigilância e defesa ativa
Publicado 10/06/2024 às 19:37
Marcha do orgulho LGBTI+ na Cidade Juarez, México. Foto: JOSE LUIS GONZALEZ (REUTERS)]
Um aviso inicial é necessário: o autor que vos escreve é gay e fala com propriedade sobre as pautas e causos que serão abordados a seguir. Adentramos o mês de junho, conhecido mundialmente como o Mês do Orgulho LGBTQIA+. Esta é uma época de extrema importância e simbolismo para toda a comunidade LGBTQIA+, marcada por lembranças de lutas e conquistas significativas.
O Mês do Orgulho surgiu em resposta a eventos históricos, sendo o mais notável a Revolta de Stonewall. Em 28 de junho de 1969, no bar Stonewall Inn em Nova York, uma abordagem violenta da polícia gerou uma série de protestos que duraram vários dias. A comunidade LGBTQIA+, cansada de ser alvo de discriminação e violência, resistiu de forma contundente, marcando o início de um movimento de direitos civis que ganharia força nos anos seguintes. Em 1970, no primeiro aniversário dos protestos, foram organizadas as primeiras marchas do orgulho em várias cidades dos Estados Unidos, consolidando junho como um mês de celebração e reivindicação dos direitos LGBTQIA+.
Desde então, o mês de junho se tornou emblemático na luta pela igualdade e visibilidade das pessoas LGBTQIA+. É um período para refletir sobre os avanços conquistados, homenagear aqueles que lutaram antes de nós e continuar pressionando por mudanças sociais e legais que garantam direitos plenos para todos.
No entanto, vivemos em um sistema capitalista extrativista que muitas vezes apropria-se de causas sociais para fins comerciais. O Mês do Orgulho não está isento dessa dinâmica. Além de ser um marco de luta e resistência, junho também se transformou em uma oportunidade para empresas explorarem o simbolismo da data em campanhas de marketing. Produtos e anúncios com as cores do arco-íris, símbolo da diversidade sexual, tornam-se onipresentes, muitas vezes sem um compromisso real com a causa que representam.
O movimento na América Latina
Embora nos últimos anos os direitos da comunidade LGBTQIA+ tenham crescido exponencialmente, especialmente na América Latina, que é o nosso foco, há enormes retrocessos devido às idas e voltas do cenário político. Após décadas de repressão, com a maioria dos países da região sendo assolados por ditaduras militares, a redemocratização e o início do século XXI trouxeram uma guinada progressista com a chamada “onda rosa” – período em que vários países latino-americanos elegeram governos de orientação progressista frequentemente associados a esquerda/centro-esquerda, promovendo políticas inclusivas e de direitos humanos. Esses governos, como os de Lula no Brasil, Néstor e Cristina Kirchner na Argentina, e Evo Morales na Bolívia, focaram em reduzir desigualdades sociais e econômicas, e frequentemente adotaram legislações que favoreciam os direitos da comunidade LGBTQIA+.
Por exemplo, em 2010, a Argentina se destacou ao aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, tornando-se o primeiro país da América Latina a fazê-lo. Pouco depois, em 2013, o Uruguai seguiu o mesmo caminho, e em 2015, o México permitiu o casamento igualitário em vários estados. Em 2011, o Superior Tribunal Federal (STF) equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres no Brasil, reconhecendo, assim, a união homoafetiva como um núcleo familiar, mas somente em 2013 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução 175/2013, determinando que os cartórios realizassem casamentos de casais do mesmo sexo. Além disso, vários países adotaram leis que permitem a mudança de nome e gênero em documentos oficiais, garantiram acesso igualitário aos serviços de saúde e proteção contra a discriminação baseada na orientação sexual e identidade de gênero.
No entanto, esses avanços não foram lineares. O cenário político na América Latina é altamente volátil, e as conquistas da comunidade LGBTQIA+ frequentemente enfrentam retrocessos em contextos de instabilidade política e mudanças de governo. A ascensão de governos conservadores e a influência crescente de movimentos religiosos fundamentalistas trouxeram desafios significativos.
No Brasil, por exemplo, o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) adotou uma retórica abertamente homofóbica e implementou políticas que minaram os direitos LGBTQIA+. Em outros países, como a Colômbia e o Peru, grupos conservadores têm usado mecanismos legais e políticos para tentar reverter legislações inclusivas.
Além das pressões internas, a influência externa também desempenha um papel. Organizações internacionais e movimentos transnacionais, tanto de apoio quanto de oposição aos direitos LGBTQIA+, influenciam as políticas locais. A globalização da política identitária significa que a América Latina está inserida em um contexto mais amplo de debates sobre direitos humanos e igualdade.
Ainda assim, a resistência e resiliência da comunidade LGBTQIA+ na América Latina são notáveis. Organizações não-governamentais, ativistas e aliados continuam a lutar por direitos e reconhecimento, utilizando uma combinação de ação direta, campanhas de sensibilização e estratégias legais para pressionar por mudanças. A visibilidade crescente da comunidade, juntamente com o apoio de segmentos progressistas da sociedade, sugere que, apesar dos desafios, os direitos LGBTQIA+ continuarão a avançar na região. Um grande exemplo de representatividade é a deputada Erika Hilton. Em 2022, ela fez história ao se tornar a primeira deputada federal negra e trans eleita no país, recebendo 256.903 votos em São Paulo. Antes disso, em 2020, Erika foi a vereadora mais votada do Brasil. Durante dois anos, ela presidiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo, destacando-se na luta pela igualdade e justiça social. Sua trajetória é um marco na política brasileira e uma inspiração para a comunidade.
No entanto, a realidade ainda é desafiadora para muitas pessoas LGBTQIA+ na América Latina. A violência e a discriminação continuam sendo problemas graves. O Brasil, por exemplo, tem uma das taxas mais altas de violência contra pessoas trans no mundo. Organizações de direitos humanos constantemente relatam casos de assassinatos, agressões e violência psicológica contra membros da comunidade. Em países como Honduras, El Salvador e Guatemala, a violência de gangues e a falta de proteção estatal colocam as pessoas LGBTQIA+ em situações de extremo risco.
Além disso, a influência de grupos religiosos conservadores e a ascensão de lideranças políticas de direita representam uma ameaça constante aos direitos conquistados. Nos últimos anos, vimos tentativas de reverter direitos e implementar políticas que marginalizam ainda mais a comunidade LGBTQIA+. Em alguns países, como o Brasil, o governo Bolsonaro adotou uma postura abertamente hostil, promovendo discursos de ódio e cortando financiamento para programas de proteção e inclusão.
Outro aspecto relevante é a interseccionalidade das lutas LGBTQIA+ na América Latina. A discriminação é frequentemente exacerbada por fatores como raça, classe social e localização geográfica. Pessoas LGBTQIA+ negras e indígenas, bem como aquelas que vivem em áreas rurais ou periferias urbanas, enfrentam desafios adicionais e frequentemente têm menos acesso a redes de apoio e recursos.
Um recente levantamento divulgado pelo Instituto Pólis oferece uma visão contundente desse cenário, mostrando um alarmante aumento de 970% nas notificações de violência contra a população LGBTQIA+ registradas nos serviços de saúde da cidade de São Paulo entre os anos de 2015 e 2023.
Os dados revelam um quadro perturbador: das 2.298 ocorrências notificadas, cerca de 45% delas são resultado de violências físicas, enquanto 29% correspondem a violências psicológicas e 10% a violências sexuais. A maioria dessas agressões (49%) ocorreu dentro do ambiente familiar, apontando para um grave problema de intolerância e rejeição por parte de parentes e conhecidos.
O estudo também destaca a disparidade na distribuição geográfica das agressões, com a maior parte delas ocorrendo em bairros periféricos da cidade, como Itaim Paulista, Cidade Tiradentes e Jardim Ângela. Além disso, o levantamento aponta que, entre os anos de 2015 e 2022, houve um aumento de 1.424% nos boletins de ocorrência registrados pela Polícia Civil, totalizando 3.868 vítimas. Essas agressões, motivadas por homofobia, lesbofobia e transfobia, ocorreram principalmente nos bairros centrais da cidade, como República, Bela Vista e Consolação.
A pesquisa também evidencia a interseccionalidade da violência LGBTQIA+, destacando que a maioria das vítimas é negra (55%) e jovem, com até 29 anos (69%). Um dado alarmante é que 79% das pessoas agredidas por policiais eram negras, revelando uma dupla violência que opera pela dimensão racial e de orientação sexual. Essa interseccionalidade torna as pessoas LGBTQIA+ negras especialmente vulneráveis, expostas não apenas à LGBTfobia, mas também ao racismo sistêmico.
Apesar dos desafios, a resistência e a resiliência da comunidade LGBTQIA+ na América Latina são impressionantes. Movimentos sociais, ONGs e coletivos têm desempenhado um papel crucial na luta por direitos e na promoção da visibilidade. As Paradas do Orgulho LGBTQIA+ em várias cidades, como São Paulo e Buenos Aires, se tornaram eventos maciços, atraindo milhões de participantes e destacando a diversidade e a força da comunidade.
Crônica: Ser LGBTQIA+ em São Paulo
São Paulo é uma cidade que pulsa, vive e respira diversidade. Caminhar pelas ruas do centro, com seus prédios antigos e grafites coloridos, é uma experiência que mistura o velho e o novo, o tradicional e o moderno. Como jovem de 25 anos, de classe média e universitário, a cidade me oferece um palco vibrante, mas também uma série de desafios.
No centro, sinto a liberdade de ser quem sou. A Av. Paulista, especialmente aos domingos, transforma-se num mar de cores e alegria. Pessoas de todas as idades, gêneros e orientações sexuais caminham livremente, celebrando a diversidade. No entanto, a sensação de segurança é efêmera. A mesma cidade que acolhe também pode ser cruel.
A violência é uma realidade constante. Recentemente, um amigo foi agredido perto do metrô República por simplesmente andar de mãos dadas com seu namorado. Casos como esse não são isolados. A agressão verbal e física ainda é um risco para qualquer pessoa que se atreva a desafiar as normas heteronormativas em espaços públicos.
Nas periferias de São Paulo, a situação é ainda mais complexa. A discriminação e a violência são amplificadas pela pobreza e pela falta de acesso a recursos. Mulheres trans são as que mais sofrem. Muitos são os relatos de agressões brutais, de exclusão social e de dificuldade de acesso a empregos formais. O SUS, embora essencial, muitas vezes falha em atender essas mulheres com o respeito e a dignidade que merecem. É comum ouvir relatos de descaso e preconceito nos hospitais e postos de saúde, onde a identidade de gênero é ignorada ou tratada com desdém.
O preconceito enraizado na sociedade brasileira é perpetuado e reforçado por setores religiosos, especialmente pelos neopentecostais. A influência dessas igrejas é forte, não só nas periferias, mas também nos centros de poder político. Em muitos lares, o sermão do pastor tem mais peso do que qualquer legislação ou discurso de direitos humanos. Cresci ouvindo discursos inflamados contra “os pecadores” e, por muito tempo, isso me fez esconder quem eu era.
Minha realidade como jovem branco de classe média me proporciona alguns privilégios. Viver em um país que enfrentou mais de três séculos de escravidão é, infelizmente, observar que o preconceito racial e de classe permanecem enraizados. No entanto, isso não me isenta das dificuldades. Na universidade, a sensação de segurança e inclusão é palpável. O preconceito, quando existe, é prontamente combatido, e as piadas de corredor são raras e reprimidas. Os olhares tortos quase não se veem, graças a políticas efetivas de inclusão que estão sempre em prática. Em ambientes acadêmicos, o discurso de diversidade não é apenas exaltado, mas também vivenciado diariamente, garantindo um espaço de respeito e acolhimento para todos. Porém, fora da bolha, a violência está à espreita. Apesar do ambiente inclusivo dentro da universidade, enfrentamos discriminação e até mesmo violência quando saímos desse espaço protegido. A realidade fora dos muros da academia pode ser cruel e hostil.
Viver em São Paulo é um constante ato de resistência. É buscar espaços seguros em meio ao caos urbano, é lutar contra o preconceito diário, é apoiar e ser apoiado pela comunidade. A Parada do Orgulho LGBTQIA+ na Av. Paulista é um momento de celebração e a maior do mundo, mas também de lembrança de todas as lutas e conquistas. Cada rosto que vejo ali, cada bandeira erguida, é um símbolo de resistência e esperança.
Apesar de tudo, há progresso. Vejo jovens como eu, nas universidades, nas ruas, nos coletivos, levantando suas vozes e exigindo um futuro melhor. Vejo iniciativas de apoio a mulheres trans, projetos de inclusão e educação que começam a fazer a diferença. O caminho é longo e tortuoso, mas cada passo adiante é uma vitória.
Em São Paulo, ser LGBTQIA+ é um desafio constante, uma batalha diária por aceitação e respeito. Mas é também um ato de amor, de coragem e de esperança por dias melhores. E é essa esperança que me mantém firme, que me faz acreditar que um dia a cidade que tanto amo será verdadeiramente acolhedora para todos nós.
Entre avanços e retrocessos
Na América Latina, os avanços e retrocessos nos direitos LGBTI+ contam uma história complexa de lutas, conquistas e desafios persistentes. Enquanto marcos legais foram estabelecidos em alguns países, como Argentina, Brasil, Colômbia e México, garantindo direitos como o casamento igualitário, adoção conjunta e proteção contra discriminação, a região ainda enfrenta graves problemas relacionados à violência e à precarização no trabalho para a comunidade LGBTI+.
O movimento LGBTI+ na América Latina tem suas raízes nos anos 60, ganhando maior visibilidade a partir da década de 80. No entanto, a luta por direitos não seguiu necessariamente a mesma trajetória da Europa. Enquanto lá os direitos das mulheres foram conquistados primeiro, na América Latina, direitos LGBTQIA+ foram reconhecidos antes de algumas reivindicações feministas, como os direitos reprodutivos.
Apesar dos avanços legais, a brecha entre o reconhecimento institucional e a realidade cultural persiste. A violência contra pessoas LGBTI+ continua sendo um problema grave na região, com um número alarmante de assassinatos registrados ao longo dos anos. Essa discrepância entre o legal e o cultural destaca a necessidade de uma mudança mais profunda na mentalidade e nas atitudes da sociedade em relação à diversidade sexual e de gênero.
O casamento igualitário é um marco importante na luta pelos direitos LGBTQIA+ na América Latina. Países como Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, México e Uruguai reconhecem o casamento entre pessoas do mesmo sexo, enquanto outros ainda não têm legislação que o permita. No entanto, mesmo onde o casamento igualitário é legal, há resistência cultural e política significativa, refletida em estratégias de “lavagem rosa” que buscam encobrir ações conservadoras com uma fachada de progressismo.
Além do casamento igualitário, outros direitos foram conquistados ao longo dos anos, como a adoção conjunta, reconhecimento da identidade de gênero autodeclarada e proteção contra discriminação. No entanto, essas conquistas muitas vezes coexistem com altos níveis de violência e discriminação contra pessoas LGBTI+ em suas vidas cotidianas.
A influência das mulheres na conquista de direitos LGBTI+ na região é notável, com líderes como Cristina Kirchner, Dilma Rousseff e Michelle Bachelet sendo responsáveis por importantes avanços durante seus mandatos. A introdução da perspectiva de gênero nas políticas governamentais também desempenhou um papel crucial na promoção dos direitos LGBTI+.
Apesar dos avanços, uma nova onda conservadora de direita tem emergido na América Latina, representando uma séria ameaça aos direitos LGBTI+. Líderes como Jair Bolsonaro, no Brasil, promoveram discursos e políticas abertamente hostis à comunidade LGBTI+, criando um ambiente de maior intolerância. Em 2018, o referendo na Colômbia rejeitou o casamento igualitário, evidenciando a resistência a avanços na igualdade de direitos. Em 2021, Nayib Bukele, presidente de El Salvador, enfrentou críticas por sua abordagem insuficiente em relação aos direitos humanos, incluindo os direitos LGBT’s.
Este cenário de retrocesso e violência não apenas ameaça os direitos conquistados, mas também coloca em risco a vida e a dignidade de milhões de pessoas LGBTQIA+. A falta de políticas de proteção eficazes, combinada com um discurso oficial que marginaliza e demoniza a comunidade, cria um ambiente propício para a perpetuação da violência e da discriminação.
A resistência, no entanto, continua forte. Movimentos sociais, ONGs e ativistas estão na linha de frente, lutando para proteger os direitos conquistados e avançar em novas frentes. A mobilização popular, as campanhas de conscientização e os esforços legais são fundamentais para enfrentar a onda conservadora. Além disso, a solidariedade internacional e o apoio de organizações de direitos humanos globais são essenciais para manter a pressão sobre os governos e garantir que os direitos sejam respeitados e protegidos.
A situação na América Latina é um lembrete poderoso de que os direitos humanos, uma vez conquistados, não são permanentes. Eles exigem vigilância constante e defesa ativa. A comunidade LGBTQIA+ na região continua a enfrentar desafios significativos, mas a luta por igualdade e justiça persiste. Em meio a um cenário político adverso, a coragem e a resiliência da comunidade são inspirações para todos aqueles que acreditam em um mundo mais inclusivo e igualitário. A luta continua, e a história ainda está sendo escrita.
Bruno Fabricio Alcebino da Silva
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