Comunidade ressignificou crime e hoje considera Maria Francelina um símbolo de luta contra a violência
Em uma tarde de domingo, em novembro de 1899, um crime chocou Porto Alegre: Maria Francelina Trenes foi degolada pelo homem com quem mantinha um relacionamento, o soldado da Brigada Militar Bruno Bicudo. O motivo alegado? Ciúmes. Com o tempo, Maria Francelina se transformou em Maria Degolada, nomeou provisoriamente um dos morros de Porto Alegre, se tornou santa popular, assombração e mito. Para além do imaginário que atravessa as fronteiras da cidade, o trágico assassinato é um dos crimes de feminicídio mais conhecidos da história de Porto Alegre e tem sido ressignificado pela comunidade ao longo dos anos. “As mulheres adotaram esse símbolo do feminicídio da Maria Francelina como um símbolo de luta contra toda a forma de violência”, explica a professora Carla de Moura.
Imigrante alemã, Maria Francelina tinha 21 anos quando foi morta. E mantinha um relacionamento de conhecimento público com Bruno Bicudo – ainda que não formalizado como um casamento. O crime ocorreu durante um piquenique, às margens de uma figueira, nas proximidades do Hospital Psiquiátrico São Pedro, atualmente no Morro Maria da Conceição, no Partenon. No local, além do casal, estavam colegas da Brigada Militar, acompanhados de suas namoradas. Eles foram responsáveis por prender Bruno.
Os policiais são as únicas testemunhas ouvidas no julgamento, como relata Carine Medeiros Trindade, historiadora e assistente técnica do Memorial do Tribunal de Justiça do Estado. “Todos sabiam que eles formavam um casal, tanto que justificaram não terem separado a briga, porque falaram que era uma briga muito recorrente. Sobre o motivo da briga, eles dizem que ela teria falado que tinha outro homem com quem ela poderia ficar, ela teria dito que tinha esse direito e preferia o outro. A briga teria se acalmado. Então, Bruno Bicudo esperou as pessoas se afastarem e a matou”.
O brigadiano foi a julgamento em fevereiro de 1900. O processo correu de maneira rápida e, de forma unânime, o tribunal do júri o condenou por homicídio doloso. Bicudo morreu após sete anos, ainda no presídio, em decorrência de complicações renais.
No verbete da Wikipedia sobre Maria Degolada, a biografia informa ainda nas duas primeiras linhas “O que consta nos autos do processo judicial subsequente ao seu assassinato é que tinha origem alemã e ganhava a vida como prostituta”. A boca miúda, essa também é informação corrente. Mas, de acordo com Carine, o único documento relacionado ao caso em que um suposto trabalho com prostiuição aparece é no inquérito policial e no depoimento do assassino.
Revista O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, da edição do dia 8 de dezembro de 1958, pp. 90 a 92. A revista está disponível para pesquisa na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
No tribunal, Bruno deixou a cargo do advogado sua defesa. Na época, apenas os depoimentos dos julgamentos eram transcritos. A sustentação oral da defesa e da acusação não era registrada e, por isso, não há registro se a alegação de que ela era prostituta chegou a ser mencionada. Pelos documentos, as testemunhas – apenas os policiais amigos de Bruno – não apresentam qualquer informação sobre um possível trabalho como prostituta.
Esse boato pode ter, inclusive, contribuído para a transformação de Maria Francelina em uma santa popular. “Há alguns casos em que as mulheres se transformam em santa pela morte trágica. São as santas populares. A imagem de santificação nasce porque a purificação teria sido com a morte. E por que purificação? Porque se espalhou a ideia de que ela seria prostituta. E isso talvez tenha sido um artifício da defesa de Bruno para dizer que, como prostituta, ela não tinha uma vida digna, não tinha o recato necessário e era passível de um crime de ciúmes”, explica Carine.
Assim como Maria Degolada, outros casos de santas não-canônicas a quem é atribuída à prostituição são célebres: Maria Bueno, em Curitiba e Maria do Carmo, de São Borja, por exemplos. Em comum, além da associação com a prostituição, o fato de serem cultuadas por diferentes perspectivas religiosas. “Ela atende católicos, evangélicos, espíritas, umbandistas, batuqueiros. Ela é cultuada por pessoas das mais diversas matrizes religiosas”, explica a professora Carla.
O feminicídio de Maria Francelina Trenes aconteceu no território atualmente denominado de Maria da Conceição. A população da região está entre as mais vulneráveis de Porto Alegre e em uma busca rápida por portais de notícias é possível perceber que as manchetes sobre a localidade geralmente estão situadas em uma editoria: a de polícia.
Revista O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, da edição do dia 8 de dezembro de 1958, pp. 90 a 92. A revista está disponível para pesquisa na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Em 2012, a professora Carla de Moura começou a atuar na Escola Estadual Santa Luzia e um dos projetos desenvolvidos foi o tombamento simbólico de pontos históricos da comunidade – entre eles, a gruta da Maria Degolada. No espaço, pedidos são feitos, velas acesas e placas colocadas em agradecimento pelas graças alcançadas – a mais antiga tem data da década de 1940.
Mais tarde, em 2016, no mestrado, Carla iniciou um trabalho com estudantes para refletir sobre a história de Maria Degolada. A pesquisa foi premiada pela Associação Nacional de História (Anpuh) e também resultou na produção de um documentário construído coletivamente: As Marias da Conceição – Por um ensino de história situado”.
Manoela Teixeira Carneiro da Silva tinha 15 anos e é uma das pessoas que participou do documentário. Na sua avaliação, a comunidade abraçou a santa “porque precisava muito acreditar em um além” diante de tantas desigualdades. No desenvolvimento do projeto, questões como racismo apareceram. Em forma de rap, Ketelyn Caroline Veiga de Oliveira, então com 14 anos, versou junto com colegas: “se você fosse preta, você seria uma santa?”.
A resposta, as próprias moradoras da Maria da Conceição tem na ponta da língua: sim. “Se ela fosse uma mulher negra, ela seria apadrinhada pela comunidade. Mas não sei se ela seria vista pela sociedade como foi, em um caso com tanta repercussão. Não sei se as pessoas dariam a mesma importância que deram. Ela seria uma vítima?”, questiona Manoela.
Revista O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, da edição do dia 8 de dezembro de 1958, pp. 90 a 92. A revista está disponível para pesquisa na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
A veneração em torno de Maria Degolada vem sempre com um alerta: ela não atende pedidos feitos por policiais. A mística em torno dessa interpretação da santidade está relacionada não só ao fato de ter sido assassinada por um policial, mas também porque o território em que ela faleceu é uma das regiões que mais sofre com a violência do Estado.
“Há muito tempo se acredita que ela atende aos pedidos da comunidade e quando a comunidade diz que ela não atende a polícia, de certa forma, ela se torna uma santa protetora da comunidade contra a violência policial”, explica a professora Carla.
Para Manoela, “a comunidade busca uma segurança que nunca foi dada”: “A comunidade precisa crer que existe alguém contra o regime que é implantado no nosso país”.
E essa proteção é pedida especialmente pelas mulheres. Carla interpreta que o mito da assombração de Maria Degolada vagando, um dos mais difundidos em torno da história de feminicídio, é também relacionado ao medo e ao cuidado. “Ouvi de pessoas mais velhas que falar que a Maria Degolada andava por aí era usado como forma de assustar as crianças para que não saíssem de casa. E se tu for pensar, de fato, existe um contexto de violência policial e as mães precisam sair para trabalhar. Essa é uma forma de tentar proteger seus filhos”.