A comitiva pediu ações contra o marco temporal e a violência no PR e no MS; 'isso tudo tem nome', dizem: 'agronegócio'
Sobrevivente do ataque de fazendeiros contra os Avá-Guarani no Paraná em 27 de agosto discursa na ONU - Renato Santana / Cimi
Uma delegação de indigenistas e indígenas Guarani Kaiowá, Avá-Guarani, Xokleng, Munduruku e Pataxó está em Genebra, na Suíça, para denunciar à Organização das Nações Unidas (ONU) a violência contra os povos originários no Brasil.
“A Lei 14.701 parou as demarcações. Forçam nosso povo a desistir das terras sagradas. Montam armadilhas e oferecem outras terras. O Congresso avança contra nossos direitos. O STF, com o ministro Gilmar Mendes, criou Câmara de Conciliação para negociar direitos e favorecer os fazendeiros”, expôs Simão Guarani Kaiowá em Genebra.
Ao Brasil de Fato, Alessandra Korap, do povo Munduruku, ressaltou que, ao falar “da questão da seca, da morte do nosso rio, da floresta queimada e tudo que está acontecendo”, estão explicitando à comunidade internacional que “isso tem um nome: agronegócio”.
Vilma Rios, da Terra Indígena (TI) Guassu Guavirá, do Paraná, é outra das lideranças que fez um pronunciamento às Nações Unidas. A jovem Avá-Guarani tomou tiros de chumbo em um ataque de fazendeiros contra a retomada tekoha Yvho´i no último 27 de agosto.
Com o metal tóxico alojado no corpo, Vilma pediu aos Estados membros do Conselho da ONU que “tomem medidas claras” para “prevenir este genocídio em curso, perpetrado por agentes estatais e milícia armada”.
“Estamos tentando fazer com que a violência que nós estamos sofrendo seja visível não só no nosso país, mas também fora”, disse Vilma ao Brasil de Fato.
“Os povos Avá-Guarani têm sofrido muito desde que fizemos a auto-demarcação da TI Guassu Guavirá”, completa, se referindo a retomadas de terra feitas no oeste do Paraná desde julho.
“Há um protagonismo das mulheres diante de toda essa situação, e crianças e jovens estão nas retomadas sofrendo, passando fome, deixando de ir para a escola porque esse conflito se expande também para fora do território, chegando no espaço público, na escola, na cidade”, descreve Vilma Avá-Guarani.
"O quadro é muito complicado", definiu Paulo Lugon Arantes, assessor internacional da Comissão Arns que acompanha a comitiva em Genebra. "As lideranças indígenas vieram aqui denunciar o forte esquema de violência armada, principalmente contra os contextos de retomada. Vieram também denunciar a milícia Invasão Zero e o desmatamento", afirmou.
Evento paralelo
Na manhã desta quinta-feira (26) a delegação fez um evento paralelo dentro da sede da ONU para tratar destes temas. O espaço permitiu aprofundá-los, diferente do plenário geral, onde cada liderança teve um minuto e meio de fala. Para Alessandra Korap, o tempo reduzido é também “uma violação”.
“Para falar de todos os problemas que a gente está vivendo, sofrendo, os ataques e as empresas entrando dentro do território, o marco temporal - um minuto e meio não é nada”, afirma Alessandra.
“Entendi que a ONU precisa ouvir mais, precisa saber o que está acontecendo realmente com os povos indígenas”, diz a liderança Munduruku. “Precisamos continuar pressionando a ONU, mas também pressionando o governo brasileiro”, defende.
Participaram da mesa desta quinta (26) o relator do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre os povos indígenas, o diplomata José Francisco Cali Tzay, Erilsa Braz dos Santos, Pataxó da TI Barra Velha, da Bahia; Brasílio Priprá, do povo Xokleng da TI Ibirama Laklano de Santa Catarina; Maurício Terena, diretor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), além de Alessandra e Vilma. Luís Ventura, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), fez a mediação.
Sob o título “Direitos territoriais dos povos indígenas – O marco temporal e a violência contra povos”, o debate foi organizado pelo Cimi, Apib, Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani Kaiowá), Comissão Arns, Fian Brasil, Fian Internacional, Conselho de Missão Entre Povos Indígenas (Comin), Vivat, Minority Rights Group e WBO – Brazil Office Washington.
Edição: Nathallia Fonseca
Indígenas pedem na ONU cobranças ao Estado brasileiro sobre recomendações contra o marco temporal
Desde as recomendações, feitas por 25 países em 2022, o marco temporal virou lei e hoje mobiliza uma Câmara de Conciliação no STF
Estamos em 2022, último ano do governo Bolsonaro. Erileide Guarani Kaiowá, representando o movimento indígena, se dirige aos países membros das Nações Unidas na pré-sessão da Revisão Periódica Universal (RPU). A fala de Erileide se desenvolve a partir de três pontos: a tese restritiva do marco temporal, a proteção pelo Estado dos territórios e dos defensores de direitos humanos indígenas e as demarcações – ou melhor, a ausência delas.
Como resultado, 25 países recomendam ao Estado brasileiro um conjunto de medidas a partir da exposição de Erileide. Entre elas, barrar o marco temporal, proteger os territórios e os defensores de direitos humanos e demarcar as terras indígenas. O governo Bolsonaro não se pronunciou e decidiu empurrar a decisão para 2023. Derrotado, o ex-presidente declaradamente anti-indígena viu seu sucessor, o presidente Lula, acatar as medidas logo no governo de transição.
A França está entre os países que fizeram as recomendações. Nesta terça-feira (24), em Genebra, a delegação indígena e indigenista, que participa da 57ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, se reuniu com a Missão Francesa na ONU para denunciar: o governo Lula avançou pouco quanto às recomendações acatadas e o Estado brasileiro ainda não enterrou de vez o marco temporal, que no final de 2023 se tornou a Lei 14701.
“Estamos nos defendendo com a nossa própria vida porque parece que as leis que determinam os nossos direitos não valem”, Vilma Avá-Guarani
Por não atender às recomendações, o Estado brasileiro pode sofrer penalidades. No entanto, a história não é tão simples e envolve procedimentos diplomáticos regimentais da própria ONU, além das relações políticas e econômicas dos países com o Brasil. A volta de Lula à Presidência contribui com a imagem do país no exterior por se tratar de um governo que demonstra compromissos com os direitos humanos. O esperado é que conversas bilaterais entre os países ocorram. A delegação indígena também se reunirá com outras missões na ONU.
“Estamos nos defendendo com a nossa própria vida porque parece que as leis que determinam os nossos direitos não valem. Essas conciliações propostas não servem para garantir o nosso direito, mas para transformar ele em algo que não é mais um direito”, destacou Vilma Avá-Guarani, da Terra Indígena Guasu Guavirá, no oeste do Paraná. A indígena tem chumbo alojado no corpo por conta dos tiros que recebeu ao defender a retomada tekoha Yvho´i durante ataque.
“Os países recomendaram ao Brasil que anulasse esse marco temporal, mas ele virou lei e os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) não a anularam ainda”, Simão Guarani Kaiowá
Os indígenas ressaltaram que a Lei do Marco Temporal está diretamente associada à violência crescente apresentada neste ano. “Os países recomendaram ao Brasil que anulasse esse marco temporal, mas ele virou lei e os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) não a anularam ainda. Isso tem incentivado a violência. A Polícia Militar agora mata a gente, faz despejo ilegal. Essa lei incentiva isso”, disse à Missão Francesa Simão Guarani Kaiowá, das coordenações da Aty Guasu e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Mesmo com a solução definitiva do STF em declarar como inconstitucional a tese do marco temporal, no âmbito da repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, o Congresso Nacional aprovou a chamada Lei do Marco Temporal, em vigor. Ainda que ela não impeça o governo de demarcar terras indígenas, ações diretas de Constitucionalidade e Inconstitucionalidade referente à lei, impetradas junto à Corte Suprema, levaram a uma decisão salomônica do ministro Gilmar Mendes, relator das ações.
“Falta vontade política ao governo federal. O que reivindicamos aos países membros é que voltem a cobrar o Estado brasileiro sobre as recomendações da RPU”, Maurício Terena
“Com o avanço da extrema direita no Congresso Nacional (grupo formado por ruralistas responsáveis pela Lei do Marco Temporal) há um desentendimento entre os poderes da República. O STF, infelizmente, optou por uma Câmara de Conciliação (formada pelos que defendem a lei e os que argumentam contra a lei). Os povos indígenas se retiraram desta Câmara. O STF deveria determinar a inconstitucionalidade da lei”, explicou à Missão Francesa o assessor jurídico da Apib, Maurício Terena.
Para o advogado, por outro lado, “falta vontade política ao governo federal. O que reivindicamos aos países membros é que voltem a cobrar o Estado brasileiro sobre as recomendações da RPU. Os povos indígenas estão sendo duramente atacados diariamente”. Os casos recentes de violências foram levados à Missão Francesa, com destaque ao assassinato de Neri Guarani Kaiowá, de 23 anos, morto durante ataque da Polícia Militar à retomada de seu povo na Terra Indígena(TI)Nhanderu Marangatu, e aos ataques contra os Avá-Guarani da TI Guasu Guavirá, no oeste do Paraná.
“Há uma decisão dos povos indígenas de não saírem de suas terras, trocá-las ou deixar de reivindicá-las”, Luís Ventura
O secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Luís Ventura entregou um exemplar do ‘Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados 2023’ à Missão Francesa. Conforme disse Ventura, “há uma decisão dos povos indígenas de não saírem de suas terras, trocá-las ou deixar de reivindicá-las. Eles entendem que lutam por um direito amparado pela Constituição Federal (…) em troca recebem ataques do Estado brasileiro com o marco temporal e propostas de conciliação em meio a ataques e mortes”.
Ventura tratou ainda da impunidade que permeia esses ataques sofridos pelas comunidades. Erilza Uruba Pataxó lembrou que as polícias estaduais têm atuado nas terras indígenas, realizando despejos forçados, sem decisão judicial, criminalizando lideranças e levando violência para áreas retomadas. “Quando eles nos atacam ou nos matam, são eles que fazem os boletins de ocorrência e fazem a perícia dos corpos. O Estado brasileiro precisa garantir a nossa proteção. Já os territórios vivem sob tentativa de grilagem. Cadê a proteção?”, disse.
A agenda dos indígenas na sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas segue durante esta semana com mais reuniões junto a missões de países na ONU, Evento Paralelo e pronunciamentos em Plenário.