A fome se tornou maior nos domicílios chefiados por mulheres.
Por Fernanda Baeza Scagliusi, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, e Dirce Maria Lobo Marchioni, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e coordenadora do INCT Combate à Fome*
JORNAL DA USP
As mulheres enfrentam, muito mais do que homens, condições como o desemprego, o subemprego, o trabalho doméstico não remunerado, os empregos informais, desvalorizados e mal remunerados, as condições precárias de trabalho, a diferença salarial em relação aos homens e a responsabilidade pelo cuidado dos membros da família. Tais relações entre gênero e pobreza colocam as mulheres em situações de vulnerabilidade social e insegurança alimentar.
Contudo, possivelmente para a surpresa de leitores e leitoras, as inferências supracitadas são excludentes. Como nos lembra Grada Kilomba, “a raça não pode ser separada do gênero e nem o gênero pode ser separado da raça. A experiência envolve ambos porque construções racistas baseiam-se em papeis de gênero e vice-versa”.
É neste sentido que o feminismo negro trabalha a perspectiva da interseccionalidade. Pode-se pensar na interseccionalidade como uma disposição analítica útil, porém ainda subutilizada, para entender os efeitos de sistemas convergentes de poder e opressão, focando nas relações entre processos entrecruzados que causam iniquidades diversas, como a insegurança alimentar. Essa disposição analítica concebe os marcadores sociais da diferença (como cor/raça, etnia, gênero, classe social, sexualidade, tamanho corporal, idade, incapacidades, entre outras) não como distintos, mas sim entrecruzados, fluidos, mutantes e permeáveis por outros marcadores.
Assim, o INCT de Combate à Fome pretende se lançar a este novo desafio interseccional em, pelo menos, duas frentes. Uma pretende analisar se e como os sistemas alimentares, e seus impactos nas práticas alimentares, constituem processos socioculturais complexos e interseccionais, que são criados por e criam dinâmicas de poder. A segunda se volta para uma análise mais complexa das estratégias e políticas públicas para o combate à fome e a realização do direito humano à alimentação adequada, uma vez que a interseccionalidade permite ir além da investigação dos efeitos dos determinantes sociais da saúde em tais estratégias e políticas.
Estas frentes se coadunam com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, da ONU, especialmente com o compromisso assumido pelo Brasil de, até 2030, erradicar a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e as pessoas em situações interseccionalmente vulneráveis, à alimentação adequada e saudável. Ademais, o foco no poder e suas relações permite que a interseccionalidade seja uma práxis para promover justiça social e inclusão, extremamente necessária neste momento histórico.
O desafio científico e a demanda da sociedade são enormes, mas apostamos nos reposicionamentos teóricos e metodológicos que virão a partir do uso inovador de uma lente primorosa que faz emergir, na encruzilhada, a complexidade dos marcadores sociais da diferença.
* Membro do GT USP “Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome”
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