Feira à beira da estrada indo para a cidade de Mongu. Foto: Iris Pacheco
Por Iris Pacheco*
Do Brasil de Fato
No cotidiano aqui do outro lado do Atlântico, quando sinto saudade do Brasil, da minha comunidade familiar, espiritual e afetiva, para aquecer o coração eu busco cozinhar alguma comida que me remete aos momentos saudosos.
A comida envolve um ato social e político profundo de partilha não apenas sobre o que se come, mas como se come e, antes de tudo, como se produz o que se come.
Esses fatores indicam a cultura na qual somos parte e que se manifestam em diversas formas, sobretudo, em nossas possibilidades alimentares. Por esse motivo, sempre que estou imersa em outra cultura me dedico a conhecer como outros povos dialogam com essa dimensão do alimento, desde às formas de produção e preparo até o momento da partilha.
Quando cheguei aqui na Zâmbia, logo nos primeiros dias, tive contato com a principal comida típica, a Nshima, feita a partir da farinha de milho branco, mas também tem uma versão feita com a farinha de mandioca, geralmente é servida acompanhada por diversos acompanhamentos (vegetais refogados, carnes, peixes, molho de tomate).
Nshima comida tradicional zambiana. Foto: Iris Pacheco
Enredado na vida local de forma tão costumeira, é super comum encontrarmos um balde com água e sabão para higienizar as mãos antes das refeições. Seguindo as orientações, ao higienizar as mãos e me sentar, me atentei ao fato de usarmos as mãos e não talheres para comer.
Isso me fez acessar de forma imediata uma memória afetiva de quando ainda criança minha avó e minha mãe faziam bolinho de feijão com farinha amassado na mão para comer. Nesse momento pude compreender que durante minha estadia por aqui faria não apenas um mergulho profundo na cultura zambiana africana, mas também em mim. Por que nunca mais eu havia comido o bolinho de feijão com a mão? Me perguntei.
Já falei aqui nesta coluna sobre minha reorientação de sentidos. Tenho estado em constante reflexões. E a palavra tem sido parceira nessa caminhada. Digo isso para comentar que na sociedade em que vivemos, em geral, tudo o que nos remete à cultura dos antigos – leia-se aqui heranças indígenas e africanas – tentaram nos retirar. Ora pela tacada implacável do açoite, depois pelo discurso ferino de que era preciso se modernizar. Logo, comer com a mão não é tido como “bons modos” na comensalidade da sociedade ocidental moderna.
Por isso, é importante assimilarmos a perspectiva do alimento como um ato político. Essa relação não é apenas nutricional. Perpassa a cultura e os costumes diversos de um povo, que carregam laços profundos de identidade, inclusive espiritual religiosa, a partir de um modo de produção e reprodução da vida.
O alimento carrega a base identitária de um povo. E é nesse movimento de não mais dar permissão para que os apagamentos continuem crescendo, que me reinvento. Aqui no continente mãe, a partir da minha memória afetiva ancestral, preparo meu bolinho de feijão com carne de sol frita (preparada por mim) e me sento para degustar essa iguaria tal qual fazia quando criança.
*Iris Pacheco é jornalista, especialista em Teologia das Religiões Afro-brasileiras e especialista em Estudos Latino-americanos. É comunicadora popular e internacionalista na Zâmbia.
fonte: https://mst.org.br/2023/05/08/comida-e-memoria-afetiva-e-identidade/