Nos dias de Carnaval, as ocorrências de estupro aumentam 50%, e mais da metade das brasileiras dizem que foram vítimas de algum tipo de violência sexual e constrangimento. Até que todas as pessoas se sintam, de fato, seguras e livres para se expressarem, a folia poderá ser chamada de festa mais democrática do país
Por Camila Cetrone, redação Marie Claire — São Paulo (SP) - 22.1.24
Por que o Carnaval no Brasil não é para mulheres? — Foto: Reprodução/Campanha Não É Não
O Carnaval 2024 está quase entre nós. Os dias de folia são a oportunidade perfeita para extravasar e ter um gostinho de uma liberdade que não tem igual no restante do ano. Se você é mulher, pode se sentir mais à vontade para usar maiô e biquíni na rua (ou dispensar a parte de cima do look, por que não?), dançar com as amigas sem hora para ir embora e se jogar na pegação (justo, aliás).
Mas a dita festa mais democrática do país, no entanto, não é tão democrática assim. No cenário atual, por mais que desejemos, pensemos e queiramos o contrário, o Carnaval não é feito para nós, mulheres. Isso fica evidente quando ampliamos as lentes sobre a forma como mulheres são tratadas durante o período. É aí que entra a face mais obscura do período: o exercício de nossa liberdade é confundido com convites e permissividade irrestrita aos nossos corpos mais desinibidos.
Conseguimos te provar esse fato em números. A começar pelo fato de que as ocorrências de estupro aumentam 50% durante os dias de Carnaval. É o que dizem os números apurados pelo Gênero e Número, com base em registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.
O número, que usa como base atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), foi registrado no Carnaval de 2020, o último antes da pandemia de covid – que suspendeu as celebrações nas ruas por dois anos. Naquele ano, aliás, metade das brasileiras afirmaram em uma pesquisa do Ibope Inteligência que passaram por assédio, importunação e constrangimento no Carnaval.
Já na folia de 2023, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e o Ministério das Mulheres apontaram que a cada uma hora, três denúncias de estupro foram feitas. Somando os números de fevereiro e março (ou seja, pré e pós Carnaval, em que a agenda de blocos continua acontecendo), foram mais de 3 mil ocorrências.
Em quesito de vulnerabilidade, também está a população LGBTQIAPN+. Levantamento da organização #VoteLGBT escancara que 61% das pessoas que integram a comunidade dizem ter assédio sexual durante esta época do ano.
Não é como se mulheres não estivessem cientes de que os alvos continuam sobre seus corpos de maneira predatória, mesmo em um momento que era para ser de descoberta, lazer e alegria. Na realidade, nem mesmo neste momento de uma suposta liberdade conseguimos baixar a guarda; a mesma guarda que sustentamos ao circular em outros espaços – nas ruas, no transporte público, em centros religiosos, no ambiente de trabalho, nos bares ou dentro de nossos próprios lares.
Quantas vezes você ou uma amiga sua (ou ambas) não se viram montando um verdadeiro esquema de guerra para entenderem como agir diante de possíveis situações como essas? É muito comum que as mulheres combinem sinais de que não estão consentindo a uma investida (que pode ir de um beijo a uma apalpada), por exemplo.
E quem nunca teve que interromper por alguns minutos a festa depois de perceber que uma completa desconhecida está aparentemente incomodada com a postura de outro homem com ela?
Outros dados do Sinam apontam que, no Carnaval, há um boom na média de casos diários cometidos por desconhecidos (48% dos casos, sendo 37% em outros períodos), mais da metade das vezes alcoolizados (o que não é justificativa), em via pública (24%). Isso que não estamos falando dos casos de importunação sexual – em que podem se enquadrar puxões de cabelo; toques e beijos não consentidos; ou mesmo cantadas que te façam se sentir desrespeitada.
Sejamos justas: a intensificação das campanhas de conscientização contra o assédio e a importunação sexual, e de ações de amparo a possíveis vítimas, está aí para provar do que estamos falando. Mas também é, em parte, por conta delas que mais mulheres têm se tornado mais cientes sobre o que são as violências sexuais e tomado coragem para denunciá-las. Em parte, também, é por este motivo que os números também passaram a ser tão altos.
É verdade que, nos últimos anos, todas as instâncias de governo – desde o Governo Federal às gestões municipais, que organizam a folia em suas cidades – tiraram a venda sobre o assunto e passaram a reconhecer a gravidade destes números. Assim como passaram a mobilizar, anualmente, ações como: campanhas que têm como o tom o slogan “não é não” e similares; intensificação de treinamento de agentes públicos; disponibilização de atendimento móvel; e extensão do horário de atendimento de serviços de saúde, delegacias ou centros especializados no atendimento a mulher.
Em 29 de dezembro, o presidente Lula sancionou a Lei nº 14.786, que pode ser mais uma ferramenta que, a longo prazo, possa auxiliar na intensificação desses mecanismos. Isso porque a legislação cria o protocolo Não é Não, que cria diretrizes de combate e atendimento a vítimas de violência sexual em bares, restaurantes e outros eventos e espaços de lazer em todo país.
Não podemos esquecer que o Carnaval também é uma festa com pés fincados na política. Não são poucos os blocos de rua criados por e para mulheres, que prometem um espaço seguro de celebração; além de serem mobilizações imprescindíveis para mostrar que, como os homens, temos a mesma legitimidade de ocupar as ruas como e quando bem entendermos. Ou assim deveríamos.
Precisa ficar muito claro o fato de que nossos corpos, independentemente de como sejam ou estejam, não estão disponíveis ao bel prazer dos homens; por mais que, dentro de um sistema patriarcal como o nosso, isso fique falsamente subentendido. Não devemos ser culpadas por nossas fantasias, por nosso estado de embriaguez ou pelo horário em que estamos na rua como prerrogativa que viabilize a violação de nossos corpos.
Por outro lado, homens precisam não apenas não nos violentar, mas somar forças conosco. Além de precisarem tomar responsabilidade, também precisam estar alertas e vigilantes – não custa nada brecar seu amigo que está reproduzindo diversas falas machistas ou, caso suspeite que uma mulher esteja em risco, perguntar a ela se precisa de ajuda.
No Brasil, o Carnaval só poderá ganhar o título de democrático quando, de fato, for igualmente próprio e seguro para todes. Até lá, desfrutá-lo sem medo será privilégio de poucos.