Pretas que escrevem no DF encaram e vencem os obstáculos criados por uma sociedade machista e racista
O Festival Latinidades se tornou tradicional na cidade. Pessoas de todas as cores e origens, principalmente o povo negro, vêm esperando a sua realização, como espaço de debate e mostra de cultura e de experiências individuais e coletivas. O espaço do Museu da República virou o point do encontro, que é promovido sempre em julho. Isso ficou bem nítido na noite de 8 de julho, quando centenas de pessoas participaram do evento literário Julho das Pretas que escrevem no Distrito Federal, criado pela jornalista e escritora WalesKa Barbosa, que chegou à terceira edição. Foi um desfile de obras publicadas e livros que revelam a potencialidade criativa e inspiradora de mulheres nascidas na capital federal, ou que chegaram a Brasília e fincaram raízes. Muitas estavam, e estão, no anonimato. São desconhecidas pelo público brasiliense.
A criatividade das mulheres pretas descortina uma vitrine de sentimentos, experiências de vida, formas de engajamentos nas lutas contra o racismo, a misoginia e em defesa da equidade de gêneros. Elas chegam com textos impressos que emocionam e, queiramos ou não, despertam reflexões sobre as dificuldades e a superação de adversidades que entravam uma relação mais humana e harmoniosa entre as diferentes etnias deste país latino-americano.
Este ano, assim como nos anteriores, a cerimônia de homenagem a três mulheres do DF —Sarah Benedita, Memei Bastos e Verenilde Pereira —, a meu ver, foi muito emocionante. As estrelas da periferia, na tarde de 8il de julho, foram Sarah Benedita, 22 anos, preta, lésbica, nascida e criada em Ceilândia. "Quando não se tem com quem falar e que não se sabe o que tá rolando no seu íntimo, mas quer gritar e se expor, escrever é o grito de liberdade", diz ela, que optou por fazer um diário, a cada ano, para exercer o seu direito de fala. E como fala bem! Sem pincel nem tinta, pinta, com propriedade e beleza, a sua trajetória de superação, após descobrir que era prisioneira da depressão. Liberta, ela encanta ao declamar suas poesias e faz o público se emocionar. Hoje, é empreendedora, militante do movimento Levante Popular da Juventude e assessora parlamentar na Câmara Legislativa.
Meimei Bastos nasceu em Ceilândia, foi criada em Samambaia, quando a cidade ainda não tinha uma urbanização satisfatória. Orgulha-se de ser uma "jovem mulher periférica" e vitoriosa ante os obstáculos enfrentados. Ela é escritora, professora, produtora cultural, graduada em artes cênicas e mestranda em culturas e saberes, pela Universidade de Brasília. Suas duas décadas de vida podem ser marcadas pela superação. De improviso, declamou uma poesia, enaltecendo a força da "palavra". Discorreu sobre a sua trajetória de vida e se libertou da opressão imposta pelos não negros por meio da escrita. Graças a sua opção foi premiada em eventos literários tanto em Brasília quanto fora do país.
A afro-indigena Verenilde Pereira nasceu em Manaus, sua mãe era negra, e pai, indígena do povo Sataré Mawé. Doutora pelo Departamento de Comunicação da UnB e mestre pela mesma universidade. Em Brasília, foi docente em várias faculdades de jornalismo e, ainda neste ano, terá um dos seus livros — Um rio sem fim — relançado pela Companhia das Letras. Hoje, ela se dedica aos movimentos de resistência indígena e de proteção a outros grupos socialmente minoritários.
Em conjunto, as três homenageadas — aplaudidas de pé por uma plateia de miscigenados — são mulheres, pelas suas origens étnicas, vitoriosas ante as barreiras impostas pelos não negros e não indígenas plenos de preconceitos, para os quais não ser branco significa inferioridade e incapacidade intelectual. Elas, movidas pela força da palavra oral ou escrita, reduzem a pó o racismo. Merecem respeito, e suas obras visibilidade, a fim de forçar uma reflexão sobre o potencial das mulheres (pretas ou brancas, não importa a cor da pele), a força da boa educação e a batalha diária do universo feminino contra os valores incivilizatórios impregnados na nossa sociedade.