De uma carreira como intérprete profissional e professora universitária, aos 56 anos Branca Vianna deu uma guinada para fundar, em 2019, a Rádio Novelo, hoje a maior produtora de podcasts jornalísticos em estilo narrativo do país
Fundadora da Rádio Novelo e casada com João Moreira Salles, Branca Vianna conta por que decidiu expor o passado escravocrata do tataravô
De uma carreira como intérprete profissional e professora universitária, aos 56 anos Branca Vianna deu uma guinada para fundar, em 2019, a Rádio Novelo, hoje a maior produtora de podcasts jornalísticos em estilo narrativo do país e uma das pioneiras da profissionalização do formato por aqui.
Casada com um dos homens mais ricos do Brasil, o documentarista e ex-acionista do Itaú Unibanco, João Moreira Salles, ela também é nascida em uma família de elite do Rio de Janeiro, com raízes em Minas Gerais.
Da investigação dessa origem por historiadores, nasceram no ano passado dois episódios do podcast ‘Rádio Novelo Apresenta’ (Mexer no vespeiro e O Visconde), que trazem à tona o passado escravocrata da sua família.
Seu tataravô, o Visconde do Rio Preto, foi um homem riquíssimo, que chegou a ter mais de dez fazendas de café movidas a mão-de-obra escrava no interior mineiro. Ao morrer, o visconde deixou como herança nada menos que 1280 pessoas escravizadas.
Vianna quis revisitar o passado com um objetivo claro em mente: refletir em família, mas também provocar a reflexão de outras famílias da elite econômica, política e intelectual do país.
“A ideia de que é ‘ok’ você enriquecer com o trabalho escravo e se beneficiar disso por 100 anos, 150 anos, incomoda bastante e é algo que precisa ser questionado”, diz ela em entrevista ao Reset.
“Existe uma linha que conecta a escravidão e as atitudes das pessoas brancas hoje em dia no Brasil. Especialmente as pessoas brancas de elite. É nossa responsabilidade lidar com essa questão.”
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Você, sua irmã e a sua prima encomendaram a dois historiadores uma pesquisa sobre a origem da fortuna do tataravô de vocês, o Visconde do Rio Preto. Por quê?
A gente sempre soube da origem da fortuna dele. Passávamos as férias na fazenda da minha avó, que é quem descende do Visconde do Rio Preto. Nessa fazenda, que foi construída depois da abolição por uma filha dele, mas que vem da mesma fortuna, em cima do piano tinha um quadro enorme, com ele vestido com um fardão e uma espada na cintura.
Sempre soubemos que ele plantava café, que era um homem muito, muito rico e que teve muitas fazendas. Também sabíamos que ele tinha tido muitos escravos, mas nunca paramos para pensar no que isso significava hoje em dia.
O estopim [para começarmos a nos questionar] foi a campanha do Trump. Levamos um susto. Como alguém podia falar abertamente coisas tão racistas, xenófobas, machistas, agressivas, violentas e ofensivas?
Começamos a questionar o que sabíamos do nosso passado, o que o resto da família pensava. Será que alguém já tinha parado para pensar que viemos dessa origem escravocrata horrorosa, de um homem que escravizou tantas pessoas, que possivelmente foi traficante de escravos?
Nunca tínhamos visto uma família vinda dessa herança escravocrata falando publicamente sobre isso. E, mais importante, o que a gente pode fazer para trazer esse assunto à tona.
Como começou?
Na infância, quando íamos a cavalo visitar a Fazenda do Paraíso, que foi onde ele morou e morreu, todas nós tínhamos visto um livro dos escravos. Era um livro grande, de capa de couro, bem velho, escrito à mão, onde tinha o registro das pessoas escravizadas da fazenda, com detalhes sobre a vida dessas pessoas, a profissão.
Algumas vezes com a origem, de que região da África a pessoa tinha vindo, se era casada, se não era, quantos filhos tinha, se tinha sido vendido, se tinha sido comprado. Um livro que tinha impressionado a família toda.
E se conseguíssemos achá-lo? Como há poucos registros dos escravizados no Brasil, talvez fosse útil para pesquisadores. Quem sabe os historiadores pudessem achar outros documentos sobre os escravizados para torná-los disponíveis para descendentes e para quem pesquisa sobre escravidão no Brasil?
Uma das vantagens de você vir de uma família como a minha é que você sabe de onde veio, eu tenho minha árvore genealógica inteira. É muito diferente das pessoas que são descendentes de escravizados no Brasil, que muitas vezes não sabem, ou sabem até a avó, às vezes até a bisavó, mas dali não passa.
Como isso foi recebido por outras pessoas da família?
A minha família é muito progressista, de um modo geral. Mas, mesmo assim, havia um certo mito do Visconde do Rio Preto como sendo um grande homem de negócios, de visão, que tinha modernizado muito a região de Valença, onde as fazendas dele ficavam, de que era normal ter pessoas escravizadas naquela época.
Não nos interessava ficar condenando, hoje em dia, as pessoas daquela época. A ideia era pensar como isso afeta as atitudes que pessoas como nós temos com relação às pessoas mais pobres, às pessoas não brancas.
Existe uma linha que conecta a escravidão e as atitudes das pessoas brancas hoje em dia no Brasil. Especialmente as pessoas brancas de elite, mas acho que as pessoas brancas de um modo geral, com relação às pessoas que não são brancas, sejam indígenas, sejam negras.
A ideia de que é ‘ok’ você enriquecer com o trabalho escravo e se beneficiar disso por 100 anos, 150 anos, incomoda bastante e é algo que precisa ser questionado.
Todo mundo na família deu entrevistas para a pesquisa e gostou muito do resultado. Causou um debate bacana na família.
De alguma forma é uma dor para você?
Não gosto de dizer que seja uma dor ou um sofrimento, porque eu me beneficiei, entende? É desagradável, me incomoda. Mas não fui eu que sofri.
Outra coisa que não sinto é culpa. Culpa é uma coisa, responsabilidade é outra. Culpa eu só posso sentir por algo que fiz. Responsabilidade eu posso sentir por algo que outra pessoa tenha feito, especialmente uma pessoa da minha família.
Nossa responsabilidade, como pessoas brancas no Brasil, sejam pessoas que vêm de uma herança escravocrata, sejam pessoas de imigração mais recente que tenham se beneficiado dos programas de governo que não foram estendidos aos escravizados quando a escravidão foi abolida, é lidar com essa questão.
O Brasil é um país bastante racista e o racismo acontece todo dia. Temos que prestar atenção no sofrimento dos outros, no racismo que é perpetrado por pessoas como nós contra pessoas que não são brancas.
Quando vocês levaram essa história a público, no podcast ‘Rádio Novelo Apresenta’, a ideia foi provocar a reflexão a outras pessoas em posição semelhante à de vocês?
Gostaria muito de ver outras pessoas como nós falando sobre isso, mas é importante que as pessoas entendam que não é uma tentativa de culpabilizar ninguém. Não se trata de dizer ‘Olha, você é culpado pela escravidão e você é culpado por todo o racismo no Brasil e você vai ser culpado por reparar todo o problema do racismo no Brasil, porque o seu antepassado teve escravos em 1830’.
Precisamos de uma discussão sobre racismo, sobre meios de eliminar, ou pelo menos amenizar, os efeitos do racismo na vida das pessoas e admitir que ele existe, admitir que mesmo pessoas que são conscientes e que tentam não cometer atos de racismo fazem coisas racistas sem querer, como fazemos coisas machistas também. Estamos numa sociedade machista, homofóbica e racista, e todos nós estamos sujeitos a isso. Mesmo consciente, a gente erra.
Quando se pensa em pessoas em posição de poder econômico na nossa sociedade, você acha particularmente importante que haja essa reflexão para que mudanças estruturais aconteçam?
Acho fundamental. Falar publicamente desse assunto é difícil para a gente, difícil para qualquer pessoa que esteja nessa posição, difícil para as pessoas que vão ouvir, difícil para as pessoas que são descendentes de escravizados no Brasil, muito difícil, muito difícil.
Recebi muitas mensagens, tanto em rede social, quanto em e-mails longos e refletidos, falando sobre o sofrimento causado pelo que falamos no podcast.
De descendentes de escravizados?
Sim. Falando da dificuldade que foi ouvir esse episódio, sabe? Mas, por isso mesmo, eu acho que temos que falar mais sobre isso. E, como a minha família, tem muitas outras.
Recebi também mensagens de amigos meus, que eu não sabia que tinham um passado escravocrata, dizendo ‘Olha, eu ouvi a tua história e eu sou descendente do fulano das quantas, que era um crápula horroroso, que fez isso, fez aquilo… E a família toda sabe, mas acha que ele foi um grande estadista’. São histórias muito parecidas.
Rolou um ‘Me Too’ meio às avessas…
É. O ‘Me Too’ do herdeiro de escravocrata.
E as pessoas dizendo ‘Eu sempre soube, nunca parei para pensar’. Pessoas que conheço e nunca tínhamos conversado a respeito. Só isso já é uma coisa incrível.
Eu achava que isso fazia tão parte da minha história que nunca questionei. A maioria das pessoas que tem esse tipo de história tem lembranças físicas desse passado. Tem prata, tem joias, tem casas, tem louças.
Mesmo que a fortuna não tenha perdurado, existem essas lembranças físicas…
Que é o caso da minha família. Depois dele ninguém mais trabalhou na vida, todo mundo foi vivendo do dinheiro desse cara e, obviamente, acabou. A minha avó dizia: ‘Estou gastando a herança de vocês’. Ela foi a última pessoa que herdou bastante dinheiro. Mas ela nasceu no princípio do século XX, então, o dinheiro desse homem durou várias gerações.
Quando se começa a conversar sobre racismo, a gente começa a ver racismo acontecendo à sua volta o tempo todo. Você não consegue ‘desver’.
Na Inglaterra tem várias coisas super interessantes acontecendo. A equipe do jornal ‘The Guardian’ foi pesquisar seus fundadores e descobriu que todos se beneficiaram da escravidão, eram todos comerciantes de algodão plantado nas colônias do Caribe. Muitos tinham plantações no Sul dos Estados Unidos e eram super liberais e progressistas para a época. Então, contrataram historiadores independentes e fizeram uma pesquisa muito bacana e muitas reportagens a respeito. Fizeram um podcast super bom sobre essa história.
É uma experiência institucional muito interessante, que poderia ser seguida, por exemplo, pelo Banco do Brasil e por várias outras instituições brasileiras.
Bem diferente de Portugal, não é?
A gente não achou nada de Portugal. Achamos aquela moça que foi entrevistada no podcast e ela mesma diz que é a única iniciativa dessas em Portugal. Ela explica que em Portugal, por exemplo, não existe censo por raça. Eles não sabem quantas pessoas negras tem em Portugal e essa é uma maneira de você não criar políticas públicas. Não tem como criar política pública para algo que você não sabe que existe.
No Brasil, as políticas públicas com relação a raça podem ser implementadas com base em dados, o que é totalmente fundamental.
Fiquei frustrada ao ouvir o podcast porque, no fim das contas, os pesquisadores não conseguiram encontrar o tal livro dos escravos da fazenda do visconde…
De uma carreira como intérprete profissional e professora universitária, aos 56 anos Branca Vianna deu uma guinada para fundar, em 2019, a Rádio Novelo, hoje a maior produtora de podcasts jornalísticos em estilo narrativo do país e uma das pioneiras da profissionalização do formato por aqui.
Casada com um dos homens mais ricos do Brasil, o documentarista e ex-acionista do Itaú Unibanco, João Moreira Salles, ela também é nascida em uma família de elite do Rio de Janeiro, com raízes em Minas Gerais.
Da investigação dessa origem por historiadores, nasceram no ano passado dois episódios do podcast ‘Rádio Novelo Apresenta’ (Mexer no vespeiro e O Visconde), que trazem à tona o passado escravocrata da sua família.
Seu tataravô, o Visconde do Rio Preto, foi um homem riquíssimo, que chegou a ter mais de dez fazendas de café movidas a mão-de-obra escrava no interior mineiro. Ao morrer, o visconde deixou como herança nada menos que 1280 pessoas escravizadas.
Vianna quis revisitar o passado com um objetivo claro em mente: refletir em família, mas também provocar a reflexão de outras famílias da elite econômica, política e intelectual do país.
“A ideia de que é ‘ok’ você enriquecer com o trabalho escravo e se beneficiar disso por 100 anos, 150 anos, incomoda bastante e é algo que precisa ser questionado”, diz ela em entrevista ao Reset.
“Existe uma linha que conecta a escravidão e as atitudes das pessoas brancas hoje em dia no Brasil. Especialmente as pessoas brancas de elite. É nossa responsabilidade lidar com essa questão.”
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Você, sua irmã e a sua prima encomendaram a dois historiadores uma pesquisa sobre a origem da fortuna do tataravô de vocês, o Visconde do Rio Preto. Por quê?
A gente sempre soube da origem da fortuna dele. Passávamos as férias na fazenda da minha avó, que é quem descende do Visconde do Rio Preto. Nessa fazenda, que foi construída depois da abolição por uma filha dele, mas que vem da mesma fortuna, em cima do piano tinha um quadro enorme, com ele vestido com um fardão e uma espada na cintura.
Sempre soubemos que ele plantava café, que era um homem muito, muito rico e que teve muitas fazendas. Também sabíamos que ele tinha tido muitos escravos, mas nunca paramos para pensar no que isso significava hoje em dia.
O estopim [para começarmos a nos questionar] foi a campanha do Trump. Levamos um susto. Como alguém podia falar abertamente coisas tão racistas, xenófobas, machistas, agressivas, violentas e ofensivas?
Começamos a questionar o que sabíamos do nosso passado, o que o resto da família pensava. Será que alguém já tinha parado para pensar que viemos dessa origem escravocrata horrorosa, de um homem que escravizou tantas pessoas, que possivelmente foi traficante de escravos?
Nunca tínhamos visto uma família vinda dessa herança escravocrata falando publicamente sobre isso. E, mais importante, o que a gente pode fazer para trazer esse assunto à tona.
Como começou?
Na infância, quando íamos a cavalo visitar a Fazenda do Paraíso, que foi onde ele morou e morreu, todas nós tínhamos visto um livro dos escravos. Era um livro grande, de capa de couro, bem velho, escrito à mão, onde tinha o registro das pessoas escravizadas da fazenda, com detalhes sobre a vida dessas pessoas, a profissão.
Algumas vezes com a origem, de que região da África a pessoa tinha vindo, se era casada, se não era, quantos filhos tinha, se tinha sido vendido, se tinha sido comprado. Um livro que tinha impressionado a família toda.
E se conseguíssemos achá-lo? Como há poucos registros dos escravizados no Brasil, talvez fosse útil para pesquisadores. Quem sabe os historiadores pudessem achar outros documentos sobre os escravizados para torná-los disponíveis para descendentes e para quem pesquisa sobre escravidão no Brasil?
Uma das vantagens de você vir de uma família como a minha é que você sabe de onde veio, eu tenho minha árvore genealógica inteira. É muito diferente das pessoas que são descendentes de escravizados no Brasil, que muitas vezes não sabem, ou sabem até a avó, às vezes até a bisavó, mas dali não passa.
Como isso foi recebido por outras pessoas da família?
A minha família é muito progressista, de um modo geral. Mas, mesmo assim, havia um certo mito do Visconde do Rio Preto como sendo um grande homem de negócios, de visão, que tinha modernizado muito a região de Valença, onde as fazendas dele ficavam, de que era normal ter pessoas escravizadas naquela época.
Não nos interessava ficar condenando, hoje em dia, as pessoas daquela época. A ideia era pensar como isso afeta as atitudes que pessoas como nós temos com relação às pessoas mais pobres, às pessoas não brancas.
Existe uma linha que conecta a escravidão e as atitudes das pessoas brancas hoje em dia no Brasil. Especialmente as pessoas brancas de elite, mas acho que as pessoas brancas de um modo geral, com relação às pessoas que não são brancas, sejam indígenas, sejam negras.
A ideia de que é ‘ok’ você enriquecer com o trabalho escravo e se beneficiar disso por 100 anos, 150 anos, incomoda bastante e é algo que precisa ser questionado.
Todo mundo na família deu entrevistas para a pesquisa e gostou muito do resultado. Causou um debate bacana na família.
De alguma forma é uma dor para você?
Não gosto de dizer que seja uma dor ou um sofrimento, porque eu me beneficiei, entende? É desagradável, me incomoda. Mas não fui eu que sofri.
Outra coisa que não sinto é culpa. Culpa é uma coisa, responsabilidade é outra. Culpa eu só posso sentir por algo que fiz. Responsabilidade eu posso sentir por algo que outra pessoa tenha feito, especialmente uma pessoa da minha família.
Nossa responsabilidade, como pessoas brancas no Brasil, sejam pessoas que vêm de uma herança escravocrata, sejam pessoas de imigração mais recente que tenham se beneficiado dos programas de governo que não foram estendidos aos escravizados quando a escravidão foi abolida, é lidar com essa questão.
Nós, brancos, temos que conversar sobre isso e tentar entender o mal que a gente causa.
O Brasil é um país bastante racista e o racismo acontece todo dia. Temos que prestar atenção no sofrimento dos outros, no racismo que é perpetrado por pessoas como nós contra pessoas que não são brancas.
Quando vocês levaram essa história a público, no podcast ‘Rádio Novelo Apresenta’, a ideia foi provocar a reflexão a outras pessoas em posição semelhante à de vocês?
Gostaria muito de ver outras pessoas como nós falando sobre isso, mas é importante que as pessoas entendam que não é uma tentativa de culpabilizar ninguém. Não se trata de dizer ‘Olha, você é culpado pela escravidão e você é culpado por todo o racismo no Brasil e você vai ser culpado por reparar todo o problema do racismo no Brasil, porque o seu antepassado teve escravos em 1830’.
Precisamos de uma discussão sobre racismo, sobre meios de eliminar, ou pelo menos amenizar, os efeitos do racismo na vida das pessoas e admitir que ele existe, admitir que mesmo pessoas que são conscientes e que tentam não cometer atos de racismo fazem coisas racistas sem querer, como fazemos coisas machistas também. Estamos numa sociedade machista, homofóbica e racista, e todos nós estamos sujeitos a isso. Mesmo consciente, a gente erra.
Quando se pensa em pessoas em posição de poder econômico na nossa sociedade, você acha particularmente importante que haja essa reflexão para que mudanças estruturais aconteçam?
Acho fundamental. Falar publicamente desse assunto é difícil para a gente, difícil para qualquer pessoa que esteja nessa posição, difícil para as pessoas que vão ouvir, difícil para as pessoas que são descendentes de escravizados no Brasil, muito difícil, muito difícil.
Recebi muitas mensagens, tanto em rede social, quanto em e-mails longos e refletidos, falando sobre o sofrimento causado pelo que falamos no podcast.
De descendentes de escravizados?
Sim. Falando da dificuldade que foi ouvir esse episódio, sabe? Mas, por isso mesmo, eu acho que temos que falar mais sobre isso. E, como a minha família, tem muitas outras.
Recebi também mensagens de amigos meus, que eu não sabia que tinham um passado escravocrata, dizendo ‘Olha, eu ouvi a tua história e eu sou descendente do fulano das quantas, que era um crápula horroroso, que fez isso, fez aquilo… E a família toda sabe, mas acha que ele foi um grande estadista’. São histórias muito parecidas.
Rolou um ‘Me Too’ meio às avessas…
É. O ‘Me Too’ do herdeiro de escravocrata.
E as pessoas dizendo ‘Eu sempre soube, nunca parei para pensar’. Pessoas que conheço e nunca tínhamos conversado a respeito. Só isso já é uma coisa incrível.
Eu achava que isso fazia tão parte da minha história que nunca questionei. A maioria das pessoas que tem esse tipo de história tem lembranças físicas desse passado. Tem prata, tem joias, tem casas, tem louças.
Mesmo que a fortuna não tenha perdurado, existem essas lembranças físicas…
Que é o caso da minha família. Depois dele ninguém mais trabalhou na vida, todo mundo foi vivendo do dinheiro desse cara e, obviamente, acabou. A minha avó dizia: ‘Estou gastando a herança de vocês’. Ela foi a última pessoa que herdou bastante dinheiro. Mas ela nasceu no princípio do século XX, então, o dinheiro desse homem durou várias gerações.
Quando se começa a conversar sobre racismo, a gente começa a ver racismo acontecendo à sua volta o tempo todo. Você não consegue ‘desver’.
Na Inglaterra tem várias coisas super interessantes acontecendo. A equipe do jornal ‘The Guardian’ foi pesquisar seus fundadores e descobriu que todos se beneficiaram da escravidão, eram todos comerciantes de algodão plantado nas colônias do Caribe. Muitos tinham plantações no Sul dos Estados Unidos e eram super liberais e progressistas para a época. Então, contrataram historiadores independentes e fizeram uma pesquisa muito bacana e muitas reportagens a respeito. Fizeram um podcast super bom sobre essa história.
É uma experiência institucional muito interessante, que poderia ser seguida, por exemplo, pelo Banco do Brasil e por várias outras instituições brasileiras.
Bem diferente de Portugal, não é?
A gente não achou nada de Portugal. Achamos aquela moça que foi entrevistada no podcast e ela mesma diz que é a única iniciativa dessas em Portugal. Ela explica que em Portugal, por exemplo, não existe censo por raça. Eles não sabem quantas pessoas negras tem em Portugal e essa é uma maneira de você não criar políticas públicas. Não tem como criar política pública para algo que você não sabe que existe.
No Brasil, as políticas públicas com relação a raça podem ser implementadas com base em dados, o que é totalmente fundamental.
Fiquei frustrada ao ouvir o podcast porque, no fim das contas, os pesquisadores não conseguiram encontrar o tal livro dos escravos da fazenda do visconde…
A gente queria muito ter achado esse livro. Ele virou uma espécie de símbolo, mas a gente não sabe o nível de detalhamento que ele tem, se seria útil ou não.
Algo que me impressionou muito foi a informação de que o inventário da herança do visconde apontou que ele deixou 1280 pessoas escravizadas. Nunca tinha parado para refletir que, naquela época, alguém morria e deixava outras pessoas como herança.
É uma coisa óbvia, só que a gente nunca parou para pensar. Era posse, né? Deixava os imóveis, a casa, o gado e deixava as pessoas. Para eles era igual. E eu acho que ele, ao longo da vida, deve ter tido mais. Um sujeito que teve 10, 12 fazendas produtivas, com uma mão de obra escrava muito intensa, vendeu, comprou. Se ele chegou a importar pessoas da África eu não sei, mas ele certamente comercializou dentro do Brasil.
Vocês não conseguiram descobrir se ele traficou?
Não conseguimos. A gente pode dizer que ele, entre aspas, comercializou. O sujeito que morre com 1.280 escravos passou a vida inteira comprando e vendendo. Você dizer que uma pessoa, e isso acho que é importante, é um grande homem de negócios, sendo que a mão-de-obra dele não só era de graça, como a própria mão-de-obra era uma mercadoria que dava lucro, que podia ser usada como lastro para um empréstimo, isso não faz dele um grande homem de negócios.
A escravidão existe desde sempre na humanidade; não com esse viés de raça, que é todo um horror muito pior por causa da ideia de que uma raça é inferior e pode ser escravizada.
Até hoje, no Brasil, vemos casos de trabalho análogo à escravidão. Quem faz isso desumaniza as pessoas que estão trabalhando porque não quer ter que pagar um salário, não quer ter que pagar imposto trabalhista, não quer ter custo com mão de obra. Quer essa mão de obra de graça, para ter mais lucro. É muito perverso.
fonte: https://www.geledes.org.br/entrevista-minha-familia-enriqueceu-com-a-escravidao/