Enquanto a direita explora os temores criados pelo neoliberalismo, a esquerda brasileira se mantém paralisada para não desgatar um governo fragilizado pela força conservadora do Congresso, mídia e mercado. Mas como ensinou Antônio Gramsci e a história: só as lutas e mobilizações das massas podem mudar a correlação de força.

Vivemos uma era governada pelo medo, pelo desespero e pelo sofrimento. Essa situação é agravada pela força da extrema direita brasileira — especialmente pelo bolsonarismo — que inventam fantasmas, tais como “fechamento de igrejas”, “kit gay”, “doutrinação comunista nas escolas” e até por frases absurdas como a de que a intenção dos “movimentos de luta pela moradia é tomar sua casa”. Apesar de serem falsas, essas mensagens não surgiram do nada. Há que se admitir, antes de tudo, que vivemos numa mudança de era caracterizada pelo caráter volátil do mundo do trabalho, pela precarização dos vínculos trabalhistas, pelo desemprego em massa e pela concentração de riquezas.
Para muitos, o sonho da estabilidade e da casa própria parecem cada vez mais distantes. As recentes contra reformas neoliberais não procuram, de forma alguma, mitigar essa situação. Pelo contrário, enquanto a (contra) reforma trabalhista fortalece a terceirização e a uberização da economia, a (contra) reforma da previdência produz a sensação de um futuro sem aposentadoria.
Já a (contra) reforma do Ensino Médio ignora o fim de postos de trabalhos, celebrando a informatização da economia, a robótica e a Inteligência Artificial (IA), apresentando esses elementos como signos do progresso e da modernidade. Ironicamente, o “novo senso comum” produzido pelos grupos neoliberais se assentam na ideia do empreendedorismo, da necessidade que cada jovem tenha um projeto de futuro, bem como aulas de educação financeira e inteligência sócio emocional para enfrentar os desafios do mundo atual. Em outras palavras, o “Novo Ensino Médio” foi criado para celebrar o “admirável mundo novo”.
A reação da esquerda frente as incertezas do neoliberalismo
Por causa de tudo isso, o medo ronda o imaginário social. Todavia, vale sublinhar que a postura da direita e da esquerda são diametralmente opostas nesse cenário. Enquanto a primeira se organiza a partir do pânico moral, mobilizando fobias e ódios, parte da esquerda parece paralisada, perplexa e amedrontada pelo trauma gerado pelas Jornadas de Junho de 2013. Refiro-me ao levante popular, iniciada pela demanda por transporte público digno, que se transformou em um turbilhão de insatisfações, pavimentando supostamente o caminho para o impeachment de Dilma, definido, a rigor, como um golpe parlamentar e midiático – sem precedente na história do Brasil. Desde então, muitos setores progressistas encaram qualquer mobilização de rua com desconfiança, temendo que novos protestos possam descambar em uma nova onda reacionária.
A esquerda também tem outros temores, advindo de uma onda neoconservadora, que ameaça destruir o pouco do que restou do “pálido” Estado de bem estar social. O retorno de Donald Trump à Presidência dos EUA, com um forte projeto antipopular e anti-imigração, tem fortalecido a extrema direita no Brasil, intensificando os receios do retorno do bolsonarismo à Presidência da República. Aliás, é fundamental destacar que esse setor político segue bastante influente no Congresso e nas ruas, mobilizando a opinião pública em torno da anistia dos golpistas que buscaram derrubar de forma violenta o governo democraticamente eleito em 2022.
Face a esse contexto de tensão, o discurso da governabilidade, da estabilidade e da moderação tem ganhado força, assentando-se em análise que se ancora na chamada “realpolitik”.
“Antônio Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere, desenvolveu o conceito de correlação de forças para explicar como o equilíbrio entre as pressões sociais e políticas define os limites do possível.”
Vale destacar, contudo, que essa postura produz, acima de tudo, paralisia. Alimentada pelo medo do retorno da extrema direita ao poder, parte da esquerda passa a defender uma postura comedida, de um diálogo que parece mais uma sujeição do governo ao Congresso e ao mercado. É sobre esse tipo de análise que conjuntura realista e pragmática que quero a tratar, com o intuito de se pensar na construção de uma nova correlação de força, de uma disputa por um novo senso comum, que tem como prioridade a classe trabalhadora.
O reducionismo da “correlação de forças” e a armadilha do imobilismo
Antônio Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere, desenvolveu o conceito de correlação de forças para explicar como o equilíbrio entre as pressões sociais e políticas define os limites do possível em um dado momento histórico. Para ele, essa correlação não é, no entanto, fixa: ela se modifica na medida em que as lutas, as alianças e a capacidade de cada grupo se transformam em novos elementos do senso comum, construindo uma nova concepção de sociedade, indivíduo, cultura e natureza.
É importante destacar que essa assertiva gramsciana passou, nos últimos anos, a ser desconsiderada, por razões expostas anteriormente, por parte da esquerda brasileira. Apoiando-se em uma concepção estática da sociedade, esses grupos têm tido uma postura imobilista, concebendo as conjunturas políticas como um dado e não em um processo. Com efeito, essas posturas ignoram o caráter social (construído), histórico e processual das conjunturas, desprezando disputadas, negociações de sentido e na construção de novas formas de interpretação da realidade.
Em virtude do medo do retorno do bolsonarismo à Presidência, qualquer mobilização hoje é vista com certo risco de desidratar o governo, bem como “desunir a esquerda”. Ademais, qualquer tentativa de pressionar o governo para implementar mudanças estruturais é compreendida como “aventurismo” ou até mesmo como “fogo amigo”. Parece-me que esse medo sintomático tem produzido comportamentos semelhantes aos das teorias conspiracionistas, aproximando-se muito dos chamados terraplanistas.
“A vitória de Lula não ocorreu apenas pela habilidade de negociação do presidente com setores da direita e do mercado, mas principalmente porque os movimentos sociais se mobilizaram contra o bolsonarismo.”
Isso pode ser notado quando se coloca em questão os interesses dos trabalhadores, uma das pautas decisivas para a vitória de Lula. Quando alguém denuncia, por exemplo, os interesses do “centrão” e os efeitos funestos do orçamento secreto para organização de políticas públicas, há sempre grupos de esquerda que pede que sejamos cautelosos, pois essas críticas podem enfraquecer o governo, colocando em xeque sua base no Congresso. Contudo, é importante que se notem que o “centrão” não cede em nenhum ponto de pauta. Pelo contrário, basta se atentar, por um lado, à pressão dos ruralistas com o intuito de frear o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que tem sido descrito como criminosos. Por outro lado, há que se observar as formas pelas quais os rentistas buscam ter o controle do orçamento da União, não abrindo mão do controle da política de gasto do governo federal.
Aqui vale uma reflexão: se a frente é ampla e o governo é de coalizão, por que as pautas dos movimentos sociais têm sido ofuscadas?
Como se sabe, a vitória de Lula em 2022 não ocorreu apenas pela habilidade de negociação do presidente com setores da direita e do mercado, mas principalmente porque os movimentos sociais, sindicatos, coletivos e parte expressiva da sociedade se mobilizaram contra o bolsonarismo. Não se pode esquecer dos atos, das manifestações e até das vigílias feitas durante o governo Bolsonaro. Por tudo isso, considero que os movimentos sociais tiveram um peso imenso na correlação de força que tornou possível a eleição de Lula. No entanto, após a eleição, esses mesmos atores têm se colocado no papel de espectadores, limitando-se ao exercício do direito de voto e apostando que a “canetada” dos burocratas possam reduzir as grandes desigualdades sociais e assegurar a justiça social num país marcado historicamente pela concentração de renda.
Um exemplo assustador foi como parte da esquerda demorou a aderir a pauta do fim da escala 6×1. Trata-se de uma pauta trabalhista, coletiva e unificadora, que seria facilmente abraçada por toda esquerda. Todavia, tornou-se necessário que Lula fizesse um pronunciamento para que alguns grupos parassem de conspirar a ideia de que os atos pela redução de escala de trabalho não era um “cavalo de troia”.
As conquistas históricas que as mobilizações sociais trouxeram
Compreendo que o terceiro mandato de Lula enfrenta, de fato, uma correlação de forças desfavorável, com um Congresso dominado por conservadores, bem como por uma mídia hostil e uma economia frágil. Isso só agrava os discursos de ódio e fobia da extrema direita. Mas essa situação não pode produzir resignações, nem imobolismo dos grupos da esquerda organizada. Pelo contrário, é justamente em momentos assim que a mobilização dos movimentos populares se torna ainda mais urgente.
“O medo é compreensível, mas nossa construção política não pode ser guiada por ele.”
Historicamente, as maiores conquistas sociais não vieram de governos iluminados, tidos como comprometidos com os interesses populares. A historiografia tem sido pródiga em evidenciar o peso pressão organizada dos sindicatos na luta pelos direitos trabalhistas; da luta do movimento de educação popular para a conquista da educação de jovens e adultos como política de Estado; da luta dos movimentos populares para ampliação da educação básica, para construção de creches e educação infantil. Não se pode esquecer que os movimentos sociais são responsáveis pela mobilização das “Diretas Já”; o movimento negro para conquista das ações afirmativas e implantação dos sistemas de cotas raciais; o movimento de mulheres tornou possível a criação da lei Maria da Penha.
Entender que o povo é parte decisiva para a construção da correlação de forças se torna condição sine qua non para pensar tanto no aprofundamento de políticas públicas que reduzam as desigualdades sociais quanto em pautas como da reforma tributária progressiva, da demarcação de terras indígenas ou regulação das mídias digitais.
O medo é compreensível, mas nossa construção política não pode ser guiada por ele. Se a esquerda se recolher, esperando que o perigo da extrema direita se dissipe sozinho, ela só fará com que o próximo ciclo político seja ainda mais hostil e perverso contra a classe trabalhadora. Como diz o poeta mineiro Fernando Brant, “nada a temer senão o correr da luta, nada a fazer, senão esquecer o medo”. Afinal de contas, “o que a vida quer da gente é coragem,” conforme sentencia João Guimarães Rosa.
Sobre a autora
Laura Sabino
é militante socialista nascida e criada na periferia, estudante de História e produtora de conteúdo para as redes.
fonte: https://jacobin.com.br/2025/05/o-problema-do-medo-na-politica/