Muitos se referem ao voto feminino como sendo uma concessão de Getúlio Vargas, mas a história não é bem essa: trata-se de uma conquista e não uma concessão.
Bertha Lutz em Natal (RN), fazendo campanha pelo voto feminino – Foto: Arquivo Nacional
RICARDO ORIÁ
Consultor legislativo da Câmara dos Deputados
A conquista do voto feminino no Brasil se deu em 1932, resultado de um processo de lutas, avanços e recuos que se iniciou por volta de 1910. Apesar desse movimento, em virtude da cultura política predominante no país, de caráter personalista e autoritário, costuma-se assumir o direito ao voto como uma concessão do governante, passando-se a ideia de que Getúlio Vargas deu à mulher brasileira o direito de votar; mas a história não é bem essa.
Em 1910, seguindo uma tendência mundial do movimento feminista sufragista, a professora carioca Leolinda de Figueiredo Daltro (1860-1935), em protesto à recusa de seu pedido de alistamento eleitoral, fundou o Partido Republicano Feminino. Considerado o primeiro partido político feminino do país, defendia o direito ao voto para as mulheres e a abertura dos cargos públicos a todos os brasileiros, indistintamente. Em 1917, o referido partido promoveu uma marcha pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, com a participação de 90 mulheres. Por sua atuação como feminista e indianista, Leolinda sofreu perseguições, chegando a ser chamada de “mulher do diabo”. A década de 20 do século XX assistiu a importantes movimentos de contestação à ordem vigente. Somente no ano de 1922, houve importantes acontecimentos que colocavam em xeque a República Velha, a saber: a Semana de Arte Moderna, o movimento tenentista e a fundação do Partido Comunista do Brasil.
Nesse contexto, não podemos esquecer a emergência do movimento feminista, tendo à frente a professora Maria Lacerda de Moura (1887-1945) e a bióloga Bertha Maria Júlia Lutz (1894-1976),que fundaram a Liga para a Emancipação Internacional da Mulher, um grupo de estudos cujafinalidade era a luta pela igualdade política das mulheres.
Posteriormente, Bertha Lutz, que viria a ser a segunda mulher a ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados, criou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, considerada a primeira sociedade feminista brasileira. Essa organização tinha como objetivos básicos:
(...) promover a educação da mulher e elevar o nível de instrução feminina; proteger as mães e a infância; obter garantias legislativas e práticas para o trabalho feminino; auxiliar as boas iniciativas da mulher e orientá-la na escolha de uma profissão; estimular o espírito de sociabilidade e cooperação entre as mulheres e interessá-las pelas questões sociais e de alcance público; assegurar à mulher direitos políticos e preparação para o exercício inteligente desses direitos; estreitar os laços de amizade com os demais países americanos.
Durante os trabalhos da primeira Assembleia Constituinte da República, alguns parlamentares apresentaram propostas concretas de extensão do direito de voto às mulheres. Lopes Trovão, então deputado pelo Distrito Federal, apresentou uma emenda que foi subscrita por Nilo Peçanha, Epitácio Pessoa e Hermes da Fonseca. A emenda foi rejeitada e a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 não contemplou as mulheres com esse direito de cidadania. A nova Constituição instituiu o voto secreto e universal, mas continuou alijando as mulheres do direito à participação na vida política do país.
Na verdade, a República recém-instalada era para poucos. Muitos brasileiros ainda não podiam exercer sua cidadania política com a instauração do novo regime republicano. Por sua vez, o texto constitucional aprovado, em seu art. 70, não deixava claro se as mulheres tinham ou não o direito de votar, uma vez que a expressão genérica “cidadão” foi utilizada em sua composição. Não havia, portanto, texto constitucional que proibisse as mulheres votarem.
Art. 70 – São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei.
§ 1º – Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados:
1º) os mendigos;
2º) os analfabetos;
3º) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior;
4º) os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual.
§ 2º – São inelegíveis os cidadãos não alistáveis.
No Congresso Nacional, começaram a surgir proposições legislativas com o objetivo de estender o direito de voto às mulheres. Em 1924, por exemplo, na Câmara Federal, o deputado Basílio de Magalhães, representante de Minas Gerais, apresentou o Projeto de Lei nº 247/1924, que concedia “o direito de voto à mulher, mediante as condições (...)”.
Integrantes do movimento sufragista do Rio Grande do Norte – Foto: Arquivo Nacional
Em âmbito estadual, o Rio Grande do Norte foi o pioneiro na concessão do voto feminino no Brasil. Quando assumiu o cargo de presidente do referido estado, Juvenal Lamartine solicitou aos deputados estaduais que elaborassem uma nova lei eleitoral que assegurasse o direito de voto às mulheres. Foi sancionada a Lei nº 660/1927, que regulava o serviço eleitoral no estado e estabelecia que no Rio Grande do Norte não haveria mais distinção de sexo para o exercício do voto e como condição básica de elegibilidade. Nesse mesmo dia, a professora potiguar Celina Guimarães Viana (1890-1972), natural de Mossoró (RN), entrou com uma petição ao juiz eleitoral solicitando sua inscrição no rol dos eleitores daquele município. Schumaher e Brazil (2000, p. 148) afirmam que “Celina fincou o marco da vanguarda política feminina na América do Sul, tornando realidade o voto feminino no Brasil”.
Após esse ato, várias mulheres norte-rio-grandenses solicitaram seu alistamento eleitoral e, por ocasião das eleições para o Senado, em 1928, 15 mulheres votaram no Rio Grande do Norte. Fato interessante ocorreu posteriormente quando da diplomação do senador José Augusto Bezerra de Medeiros no Congresso Nacional. No ato de sua diplomação, os votos das 15 mulheres não foram computados por serem considerados “inapuráveis” pela Comissão de Poderes do Legislativo Federal. Em protesto a esse ato arbitrário, que revelou o preconceito, reinante à época, acerca do acesso da mulher à participação política, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino lançou um Manifesto à Nação.
Outra potiguar conseguiu inscrever seu nome na história do feminismo no Brasil. Trata-se de Alzira Soriano de Souza (1897-1963), que foi eleita prefeita do município de Lajes (RN), sendo considerada, portanto, a primeira mulher a ocupar o cargo máximo da municipalidade.
Ainda no âmbito da luta pelo voto feminino, não se pode deixar de mencionar o nome da mineira Maria Ernestina Carneiro Santiago Manso Pereira (1903-1995). Como já afirmado, o texto da Constituição de 1891 não vedava expressamente o direito de as mulheres votarem. Valendo-se disso, a estudante de direito Maria Ernestina, conhecida como Mietta Santiago,114 impetrou mandado de segurança e obteve sentença que lhe permitiu votar em si mesma para um mandato de deputada federal. Embora não tenha sido eleita, Mietta foi a primeira mulher a exercer, plenamente, os seus direitos políticos. Carlos Drummond de Andrade, impressionado com a ousadia de Mietta, dedicou a ela o poema “Mulher eleitora”:
Mietta Santiago
loura poeta bacharel
Conquista, por sentença de Juiz
direito de votar e ser votada
para vereador, deputado, senador, e até Presidente da República, 211
Mulher votando?
Mulher, quem sabe, Chefe da Nação?
O escândalo abafa a Mantiqueira,
faz tremerem os trilhos da Central
e acende no Bairro dos Funcionários,
melhor: na cidade inteira funcionária,
a suspeita de que Minas endoidece,
já endoideceu: o mundo acaba.
Vargas era simpatizante da causa feminista, sobretudo no tocante ao direito de voto. Assim, em 1932, foi promulgado o novo Código Eleitoral, cuja comissão de redação contou com a participação de Bertha Lutz. Estava assegurada a cidadania política às mulheres brasileiras, embora sem a exigência da obrigatoriedade do alistamento eleitoral e do voto. Os arts. 2º e 21 do novo Código Eleitoral continham os seguintes textos:
Art. 2º. É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código.
(...)
Art. 121. Os homens maiores de sessenta anos e as mulheres de qualquer idade podem isentar-se de qualquer obrigação ou serviço de natureza eleitoral.
Posteriormente, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 ratificou o direito constitucional de voto das mulheres.