Quase lá: Um olhar interseccional para o futuro

 

Por Eunice A. Jesus Prudente, professora da Faculdade de Direito (FD) da USP

  Publicado: 27/10/2022

Crianças, adolescentes e jovens são o nosso futuro, principalmente quando visitamos lições dos mestres brasileiros pelos direitos humanos. Em especial as preleções do professor Dalmo de Abreu Dallari, que nos introduziu na teoria crítica de direitos humanos com as necessárias propostas de mudanças a partir do combate a todas as formas de opressão. E, para tanto, as pesquisas hão de ser interdisciplinares, visitando a história, os dados econômicos, as culturas dos povos do nomadismo às fixações territoriais com animus de permanência em meio a guerras e apropriações materiais e imateriais forjando as civilizações, assim nos informam a antropologia e a sociologia. Na atualidade, os estudos dos direitos humanos exigem informações fundamentadas na psicologia, nas ciências médicas que nos esclarecem a natureza deste ser humano. Também imprescindíveis esclarecimentos advindos das ciências físicas, elucidando a formação do redondo planeta Terra e as questões ambientais, como desmatamentos e impactos sobre a organização política da convivência. Somente informados a Teoria dos Direitos Humanos será crítica e propiciará o enfrentamento de todas as formas de opressão, desconstruindo paredes patriarcais, racistas, homofóbicas, além das históricas patrimonialistas, construídas durante séculos.

Neste momento importante desta pesquisa, bom atentarmos também para as contribuições do professor Fábio Konder Comparato, quando se refere sobre a preeminência da política nos estudos e análises da convivência humana. A política como ciência e arte que possibilitou os entendimentos da organização de vida na pólis, para nós em sociedade, nos permite visualizar individualidades em sociedade para conclusões críticas dos sistemas socioeconômicos adotados e propostas de inclusão social.

A exclusão social na República Federativa do Brasil alcança crianças, adolescentes e jovens. O futuro deste Estado está comprometido. Um dos principais objetivos de uma sociedade política, chamada de Estado, consiste na previsão de melhor futuro para os grupos humanos que a compõem. Destacando-se como principal providência as previsões futuras para o povo, enquanto conjuntos dos cidadãos. Nisso se incluem a proteção e formação das crianças, adolescentes e jovens. É a educação formadora de seres humanos solidários, como nos ensina Paulo Freire com as teses da educação libertadora que fortalece laços humanos. Laços sociais além da família como núcleo social básico, alcançando diversas formas associativas e, sob este ponto de vista, somos espetacularmente criativos, até chegarmos à instituição pública de fins gerais, políticos, o Estado.

Ocasião de visitarmos os pensamentos de Paulo Freire, “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”. A educação freiriana também é proposta para uma teoria crítica de direitos humanos uma vez que a pessoa humana deve aprender a olhar além dos objetivos (tão) próximos familiares, ver portanto além de seus primeiros interesses culturais religiosos e outros, conseguir também antever e vivenciar outros valores e propostas, enfim, se dedicar aos objetivos políticos que propiciarão convivência solidária entre muitos indivíduos que sequer se conhecem, mas que integram a mesma república, a mesma sociedade política com longa formação histórica. Assim a participação política é também o principal direito humano que possibilita a ingerência de todos na governabilidade do Estado.

A educação libertadora de Paulo Freire possibilita a percepção das diferenças buscando uma convivência pacífica e construtiva, uma vez que as pessoas não são idênticas. Uma personalidade nos identifica e diferencia, as pessoas são iguais para o direito, seja no exercício de direitos ou obrigações, mas há diferenças biológicas, de gênero, étnicas, culturais que exigem respeitabilidade e credibilidade de todos, uma vez que são expressões de personalidade e deduz-se apenas diferenças, e como são interessantes e diversas! Nunca estabelecem sentido de superioridade de uns em relação a outros.

Já as desigualdades, como preleciona Fábio Konder Comparato, são criações racionais, arbitrárias e injustas pois estabelecem relações de exploração e dominação entre pessoas. São históricas e cabe aos cidadãos, às instituições, sobretudo as públicas, providenciar sua extinção.

Esta educação libertadora construirá a sociedade livre e solidária como almejam os brasileiros nas disposições do artigo 3º da Constituição Federal.

A conquista da Constituição Federal de 1988 é um marco na nossa história porque contou com a participação da sociedade política organizada nos momentos constituintes. Os movimentos sociais unidos na luta contra a ditadura participaram da constituinte exigindo que fossem os direitos humanos considerados fundamentais, ou seja, indisponíveis portanto sem a fruição dos direitos humanos individuais, sociais e coletivos, o brasileiro permanecerá prejudicado na sua dignidade.

A Constituição Federal de 1988 dispõe entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, alicerces que sustentam a República Federativa do Brasil, a cidadania, a dignidade da pessoa, além do pluralismo político. Reconhece as crianças, adolescentes e jovens sujeitos de direito e nunca meros objetos de disposições dos adultos. Crianças e adolescentes têm a personalidade em formação e os jovens têm reconhecidas sua autonomia, emancipação além da participação social e política.

O princípio da proteção integral à criança, ao adolescente e ao jovem tem fundamentos no artigo 227 da Constituição Federal:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Caberá ao Estado, à família e a toda a sociedade propiciar os direitos humanos fundamentais para garantir essa proteção integral com prioridade absoluta. Conforme preleciona a especialista em direitos da criança e adolescente, Denise Auad, o princípio da proteção integral, construído a partir do reconhecimento jurídico do universo infantojuvenil, encontra fundamento nos valores presentes na Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança, afastando ideários antigos preconceituosos do menorismo, do tutelarismo que resultaram em assistencialismos desrespeitadores para uma “nova visão da cidadania e oportunidades facilitadoras do desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”, como diz Denise Auad.

O reconhecimento da condição de pessoa em desenvolvimento significa formação física e da personalidade. Quanto ao jovem deve-se propiciar formação intelectual e profissional de qualidade para a assunção de todas as responsabilidades sociais, vida adulta plena.

A Constituição Federal de 1988 inclusiva expressando necessidades sociais propiciou legislações que obtiveram reconhecimento jurídico de excelência em nível internacional. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8069, de 1990) aplicando-se às crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal, de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou as comunidades em que vivem.

Também reconhece especificidades determinantes à dignidade e ao bem-estar de crianças e adolescentes como a prioridade nas adoções para grupos de irmãos (Arts. 28, §4º e 50, § 15) e em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidade quilombola será obrigatório o respeito à identidade social e cultural, os seus costumes e tradições na ocorrência de colocação familiar (guarda, tutela ou adoção) se dará prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma etnia (Art. 28, § 6º).

E quanto ao jovem, o Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852, de 2013) dispõe sobre direitos e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude garantindo-se aos jovens brasileiros o direito à cidadania, a participação social e política e representação juvenil. Entende-se por participação juvenil a inclusão do jovem nos espaços públicos e comunitários a partir da sua concepção como pessoa ativa, livre, responsável e digna de ocupar uma posição central nos processos políticos e sociais. Determina ainda que a interlocução da juventude com o poder público pode realizar-se por intermédio de associações, redes, movimentos e organizações juvenis.

Entre os direitos garantidos aos jovens destaca-se o direito à educação de qualidade com as seguintes disposições:

Art. 8º O jovem tem direito à educação superior, em instituições públicas ou privadas, com variados graus de abrangência do saber ou especialização do conhecimento, observadas as regras de acesso de cada instituição.

§1º É assegurado aos jovens negros, indígenas e alunos oriundos da escola pública o acesso ao ensino superior nas instituições públicas por meio de políticas afirmativas, nos termos da lei.
§2º O poder público promoverá programas de expansão da oferta de educação nas instituições públicas, de financiamento estudantil e de bolsas de estudos nas instituições privadas, em especial para jovens com deficiência, negros, indígenas e alunos oriundos da escola pública.

Conforme hierarquia normativa, em primeiro lugar decisões políticas da Constituição Federal; depois o Estatuto da Juventude, como legislação nacional, integrando a União, os Estados, Municípios e Distrito Federal na proteção integral ao jovem, instituindo o Sistema Nacional de Juventude – Sinajuve, garantido políticas de ação afirmativa para inclusão de jovens negros, indígenas e alunos oriundos de escolas públicas nos cursos universitários públicos e em terceiro plano as leis federais, estaduais temporárias dispondo sobre cotas nos vestibulares para instituições públicas, formas importantes de política afirmativa. Assim sendo o que o Congresso Nacional está realizando na atualidade é um exame de leis federais e estaduais temporárias dispondo sobre políticas de ações afirmativas mediante cotas

Conclui-se que o direito dos jovens brasileiros à inclusão prossegue, sendo óbvio as mencionadas leis federais e estaduais temporárias poderão ser prorrogadas ou deverão ser substituídas por outras. Não há retrocesso na conquista de direitos humanos, pois são intrínsecos ao direito de ser pessoa humana, por isso fundamentais. Enquanto houver um jovem brasileiro excluído, deverão ser instituídas políticas de ação afirmativa, propiciando equidade no acesso a direitos.

Outra conquista relevante para nossos direitos na luta pela igualdade substancial foi a criminalização da discriminação racial (Art. 5º, XLII) e o advento de legislação punitivista (Lei nª 7716, de 1989, Lei nº 9.459, de 1997) e não por acaso. Sob o ponto de vista técnico jurídico, o Direito Penal protege os principais valores e bens de sociedades politicamente organizadas. E as discriminações ofendem pessoas a partir do direito de ser pessoa humana com direito ao bem-estar constitucionalmente garantido. A primeira manifestação que encontramos pela criminalização da discriminação racial foi nos feitos do Teatro Experimental do Negro, criado e dirigido por Abdias do Nascimento. Artistas negros, atores e atrizes denunciaram discriminações sofridas por volta de 1950 durante o evento Convenção Nacional do Negro. Neste momento histórico do movimento negro, a arte educou, levando o povo brasileiro a pensar seus valores e defendê-los.

Como se conclui, o direito é para pessoas e suas manifestações e não apenas para juristas encerrados em gabinetes e ou tribunais!

A Constituição Federal garante a individualização das penas aplicadas (Art. 5º, XLVI): privação ou restrição da liberdade; perda de bens; multa; prestação social alternativa e suspensão ou interdição de direitos. Não há vingança ou castigos no Estado Democrático de Direito e ressocialização mediante formas de educação. Todavia são visíveis as dificuldades para a reeducação de racistas neste Brasil grande a partir de falhas grotescas na história oficial do Brasil e práticas de políticas de embranquecimento buscando apagar o protagonismo negro.

Cabe ainda informar que as penas privativas de liberdade são cumpridas em estabelecimentos penitenciários e o STF considerou a situação prisional no Brasil “um estado de coisas inconstitucional” com ocorrência de “violação massiva de direitos fundamentais” (ADPF nº 347, 2015). A política de encarceramento em massa adotada pelo governo brasileiro somente vem alcançando injustamente jovens negros e pobres de comunidades periféricas, formadas nas cidades brasileiras.

A inclusão social que buscamos ocorrerá mediante políticas públicas com ações afirmativas. Neste estudo reconhecemos também a importância do Estatuto da Igualdade Racial (LEI Nº 12.288, de 2010) alcançado pelo movimento negro integrado por respeitáveis lideranças intelectuais ativistas. O Estatuto da Igualdade Racial garante a efetivação de igualdade de oportunidades a defesas dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos previstos na Constituição Federal. Além do combate à discriminação e à demais formas de intolerância étnica. Note-se que se trata também de lei nacional, integrando em torno dos direitos garantidos aos negros, a União como governo federal, os Estados, municípios e o Distrito Federal, assim todas as entidades federais brasileiras.

Ocorre que diferentemente das imposições determinadas nas leis nacionais comentadas (Lei n° 8069, de 1990 e Lei n° 12.852, de 2013) para Estados e municípios vinculando-os às suas disposições, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.88,de 2010) não submete obrigatoriamente os Estados, municípios ou Distrito Federal ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial – Sinapir, garantidor dos direitos fundamentais à população negra, ou seja, conjunto de pessoas que se autodeclararam pretas e pardas, conforme quesito cor ou raça usado pelo IBGE. Mas assim é disposto o Sinapir:

Art. 47. É instituído o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) como forma de organização e de articulação voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público federal.

§1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão participar do Sinapir mediante adesão.
§2º O poder público federal incentivará a sociedade e a iniciativa privada a participar do Sinapir.

A integração de Estado como o brasileiro com dimensões continentais e pleno em diversidade étnica e ambiental não é tarefa fácil, sobretudo se reconhecendo a autonomia das entidades federadas. Por isso entendemos que também este sistema nacional Sinapir deveria submeter municípios e Estados a suas normas, inclusive pelo seu histórico. Observe-se que estudiosos e ativistas do movimento negro não conseguiram que fosse incluído na Constituição Federal de 1988, título ou capítulo sobre o protagonismo negro. Conquistou-se finalmente a criminalização (Art. 5º, XLII) das práticas de racismo tipificadas como crime (Lei nº 7716, de 1989). Mas a intelectual dra. Edna Rolland, em suas conferências esclarece como se lutou para que o texto da Constituição Federal contivesse tais explicitações. A conquista do Estatuto da Igualdade Racial adveio somente em 2010 após a exitosa Conferência de Durban, evento da ONU realizado na África do Sul, quando a ONU declarou 2001 o Ano Internacional de Mobilização contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Com participação de 173 países, muitos da América Latina, com destaque para o Brasil com representantes oficiais e intelectuais estudiosos dos temas da inclusão do negro, acabou firmando compromissos para legislação inclusiva e a dra. Edna Rolland foi a secretária deste evento internacional.

O Estatuto da Igualdade Racial ilumina nossa complexa situação social com visão interseccional quando conceitua discriminação racial ou étnico-racial reconhecendo a ocorrência no Brasil de “desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais” (Art. 1º, Parágrafo Único, III). Além de propor como direito as ações afirmativas mediante programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e a promoção da igualdade de oportunidades.

Os brasileiros integram sociedade pluriétnica com cultura fundada em saberes e valores de todos os povos do mundo. Todavia a realidade vivenciada é muito grave posto que formas violentas discriminatórias estão presentes na nossa convivência além de insuportável desigualdade socioeconômica insuportável até mesmo para capitalistas do agronegócio. Estes muitas vezes estão na mídia denunciando que não há público consumidor suficiente para o leite e produtos laticínios, imprescindíveis à saúde do povo. Tão empobrecida se encontra a sociedade brasileira!

Instituições governamentais como o Ipea, IBGE bem como a sociedade civil representada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Sou da Paz, todos pela Educação, Fundação Abrinq, Transparência Brasil, vêm a público com informes e dados estatísticos revelando as injustiças a que é submetido nosso povo. Relatórios anuais do Ipea nos informam que o problema mais grave do Brasil não é a escassez, mas a distribuição dos recursos. Além de uma linha expressa por fenótipos negroides delinear bolsões de miséria por este Brasil grande. Na base larga da pirâmide social estão as famílias negras, tendo por responsáveis as mulheres negras. São as famílias mais pobres do Brasil. Sujeitas às diversas formas de violências perpetradas nas comunidades de todas as cidades brasileiras.

Pesquisando origem ou origens, nos deparamos com quatrocentos anos de monarquia escravizadora e pouco mais de centro e trinta anos da República desigualizadora com naturalização de infeliz distribuição de papéis sociais oitocentistas que nos legaram patriarcalismos e racismo estrutural.

O Anuário de Segurança Pública de 2017 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública informa que das pessoas mortas pelos órgãos de segurança pública naquele ano 99,3% são homens, 81,8% têm entre 12 e 29 anos, mas 76,2% são negros. Já a Ouvidoria de Polícias do Estado de São Paulo em pesquisa sobre o uso da força letal por policiais de São Paulo e vitimização policial em 2017 informa que 65% das vítimas ou tinham até 17 anos, “16%” ou estavam na faixa entre 18 e 25 anos “49%”. O mesmo estudo revela que dos mortos até 17 anos, 70% eram negros, e das vítimas de 18 a 25 anos, 68% eram negros. Conclui a Ouvidoria: “Ou seja, a principal vítima de letalidade por intervenção policial é o jovem negro de até 25 anos” (Ouvidoria de Polícias do Estado de São Paulo. Pesquisa Sobre o Uso da Força Letal por Policiais de São Paulo e Vitimização Policial em 2017. São Paulo, agosto de 2018).

O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, a partir de dados da pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua e anual – Pnad, em levantamento de 2019, informa que no Brasil aproximadamente 84 mil crianças e adolescentes de 5 a 17 anos exerciam trabalhos domésticos, sendo 48,6% como cuidadores de outras crianças e 40,3% desempenhado outros serviços domésticos. Informa a secretária executiva do Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil, Katerina Volgov: “Diz que o rosto do trabalho doméstico infantil reflete o que ela considera o modo colonial e a herança do trabalho reprodutivo doméstico”. “O trabalho infantil reproduz o desequilíbrio de gênero de que esses papéis são destinados às mulheres”. A jornalista Fernanda Brigatti que a entrevistou para a Folha de S. Paulo, seção Mercado, 7 de outubro de 2022, ainda informa que Katerina Volgov esclarece que o trabalho infantil doméstico é principalmente feminino e negro, reproduzindo ao mesmo tempo desiquilíbrio de gênero e racismo estrutural, pois 85,2% das crianças e adolescentes eram mulheres e 70,8% negras.

Outro caso é a situação gravíssima de discriminação racial institucional que vem vitimando o jovem músico, cidadão negro, Luiz Carlos Justino. Que foi preso injustamente duas vezes. Em 2020 foi preso acusado por crime que não cometeu, sendo absolvido. Mas foi preso novamente a partir de abordagem policial porque o seu nome constava de mandado de prisão em aberto no sistema do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões. Conforme noticiado pela imprensa, a ocorrência se deu em Niterói. Ocorre que o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões – BNMP 2.0 sistemas eletrônico esclarece às autoridades judiciárias da Justiça Criminal informações a partir da gestão de documentos atinentes às ordens de prisão e soltura expedidas em todo Brasil, expedindo um cadastro nacional de presos. Presume-se ser serviço público imprescindível à segurança da sociedade e deveria ser sempre atualizado e expressar situações verdadeiras. Como titulares do poder, fomos enganados e mais um jovem negro injustiçado.

Outra situação grave envolvendo a morte, aos 22 anos, do jovem motoboy Briner de César Bitencourt ocorreu na cidade de Palmas, Tocantins. Acusado e preso em 2021 foi absolvido em 2022, mas morreu na cadeia pública um dia antes da soltura. Preso há um ano, na prisão perdeu a saúde por razões desconhecidas, passando os últimos 14 dias de vida sem conseguir se alimentar e com dores abdominais. Levado a uma Unidade de Pronto Atendimento – UPA, aonde chegou em cadeira de rodas, veio a óbito. O jornalista Francisco Lima Neto (Folha de S. Paulo, seção Cotidiano, de 14 de outubro de 2022) comenta o triste fato.

São muitas e recentes situações de violências vitimando crianças, adolescentes e jovens, principalmente negros e pobres, demonstrando ineficiência e ou inexistência de políticas públicas para implementação de direitos imprescindíveis para o estado de justiça que buscamos na convivência.

Como saber e entender tudo isso? É fundamental a vigência de um Estado Democrático de Direito que possibilite acesso a dados e informes sobre todas as questões sociais. Não se trata de expor opiniões e sim demonstrar realidades. Ressalta-nos a metodologia interseccional que mediante cruzamento de informações e dados temos conhecimento de realidades complexas. Ocorre que dados e informes múltiplos e quadros estatísticos encontram-se sob responsabilidade de instituições públicas e precisam ser disponibilizados à sociedade. É mediante política de dados abertos permitindo aos cidadãos bem como as instituições públicas e privadas o acesso e disponibilização de todos de todos os tipos de informações como preceitua a Constituição Federal (Art. 5ºXXIII) e a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 2011) que conheceremos realidades e democraticamente criticamos e propomos políticas públicas. Com os dados podemos desenvolver interseccionalidades analisando todos os eixos da questão social por mais complexa que se nos apresente. Muito aprendemos com feminismo negro a partir das teses das pensadoras Angela Davis, Patricia Collins, bell hooks e Kimberlé Crenshaw e entre nós as intelectuais pensadoras negras Leila Gonzales, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, entre outras, cujas contribuições vêm alertando a sociedade no entendimento das questões sociais buscando sempre interagir aspectos da racialização, questões de gênero e a inafastável questão socioeconômica. Racismo, patriarcalismo e miserabilidade atingem e violentam pessoas tendo como resultado a vulnerabilidade de ser criança, adolescente ou jovem negro no Brasil. São os sujeitos por natureza carecedores de atenções, mas os vitimados pelas exclusões discriminatórias.

O questionamento persiste, por que nos agredimos e comprometemos negativamente o nosso futuro? Como preleciona Denise Auad, “o princípio da dignidade sob a perspectiva da alteridade é essencial”, o “enfoque da alteridade permite que visualizemos os problemas a partir da multiplicidade de consequências que acarretam o corpo social”, acrescentamos como forma importante de nos colocarmos “no outro” para prevenir situações injustas exigindo planejamento e políticas públicas.

Enquanto persistir o descaso com os direitos humanos, descumprimento flagrante de compromissos internacionais, inclusive de direitos constitucionais e das legislações conquistadas com ações inteligentes e pacíficas dos movimentos sociais e de entidades da sociedade civil, não alteraremos os quadros de injustiças.

Retornando à educação e a Paulo Freire, somente pela formação de nova cidadania e firme participação política revolucionaremos.

 

fonte: https://jornal.usp.br/articulistas/eunice-aparecida-de-jesus-prudente/um-olhar-interseccional-para-o-futuro/


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