É hora de levar de novo a sério a possibilidade de outro futuro. Quando o horizonte está travado, a imaginação é ferramenta poderosa para romper a banalidade do presente e sacudir o velho mundo. Ou, inclusive, reconstruir um país
Por Alice Carabédian, no Lundi Matin | Tradução: Maurício Ayer
Trecho do livro Utopie radicale (Utopia radical), selecionado pelo site Lundi Matin e traduzido por Outras Palavras. Subtitulado “Além da imaginação de casebres e ruínas”, este livro é como seu tema: difícil de encaixar nas categorias habituais. Uma obra de crítica literária, um ensaio de filosofia política ou nem uma coisa nem outra, trata das ligações entre ficção científica e utopia, e o lugar desta última no desejo de transformar o velho mundo. O deslocamento que ele introduz, convidando-nos a levar a utopia a sério, a ponto de “não subordinar seu poder político apenas à sua realização futura”, perguntando-nos sobre as imagens e palavras que nos guiam, nos abre a perspectivas, como a de um “tempo não linear”, que poderia nos ajudar a sair de um presente onde “a distopia deixou a ficção para vir e fundir-se na realidade como uma horrível bolha viscosa”. Ficção científica e utopia: a fertilização cruzada destes dois mundos imaginários pode ser vista através da apreensão crítica de autores como Damasio, Le Guin, Iain M. Banks, mas também Hannah Arendt ou Miguel Abensour.
Tudo o que é possível foi inicialmente impossível: que a Terra é redonda e gira em torno do Sol; que o homem não é o centro do mundo nem que o eu é senhor de sua morada; que os reis não tenham direito divino; que os humanos descendem dos macacos; que de uma bactéria surgiu a vida, cujo aparecimento talvez se deva a uma chuva de meteoritos que caiu em nossa rocha redonda com grande estrondo há cerca de 4 bilhões de anos, carregando alegremente em suas malas extraterrestres aminoácidos, bases nucleicas e açúcares.
Que ao se manifestar mãos sejam arrancadas, olhos arrancados, pessoas racializadas mortas durante enquadros policiais; que seja proibido filmar as forças da ordem quando estão soltas nas cidades como hordas de lobos raivosos; que os cidadãos e as cidadãs sejam observados/as em suas formas de usar as faixas de pedestres; que ao olhar para uma tela de publicidade no metrô, seu olhar seja captado por uma câmera que permite o reconhecimento facial; que uma mulher morra a cada dois dias sob porradas de seu marido na França em 2020; que enfileiremos as “Black friday” com os “janeiro sem álcool” (“dry January”); que o ex-presidente da primeira potência mundial tuíte que seu “botão nuclear […] é maior e mais poderoso” que o do presidente norte-coreano; que comer quinoa ou abacate contribua para o desmatamento e empobrecimento dos países produtores; que um governo confie a defesa da biodiversidade aos lobbies dos caçadores e que o imposto sobre a riqueza tenha desaparecido, que as fronteiras sejam fechadas, que os acampamentos se multipliquem tão rápido quanto as milícias privadas; que os estados de emergência perdurem; que em resposta aos desastres climáticos presentes e futuros nos sejam oferecidos patinetes elétricos, tecnologia totalmente digital, cidades inteligentes, carros enviados ao espaço e agora flutuando entre os destroços de satélites, como sacolas plásticas imundas no meio dos oceanos; que, mesmo desligado, um telefone seja “inteligente” o suficiente para ouvir e gravar as palavras-chave de nossas conversas, transmiti-las e que, como em um passe de mágica, anúncios direcionados apareçam em nossos diversos aplicativos e sites; que uma cápsula do tempo, contendo, como um tesouro precioso, os vestígios da vida atual e uma carta afirmando que “[quando] esta cápsula for encontrada, provavelmente isso significará que não há mais gelo nesta parte do Ártico”, destinada a gerações futuras e depositado, portanto, no gelo, ressurja apenas dois anos depois de ser depositada, em vez dos estimados cinquenta anos.
Tantas coisas insanas, estranhas, aberrantes, paradoxais e ilógicas – em uma palavra: impossíveis – que agora são possíveis e, pior, que aconteceram. Basta a gente pegar um tema, dinheiro, trabalho, tecnologia, educação, artes, meio ambiente, moda, saúde, amor, turismo ou serigrafia, pode ter certeza que a nossa boa e velha realidade terá se enganchado com a ficção e que encontraremos medidas, decisões, práticas, notícias relacionadas com essas palavras que nos farão gritar: “Mas isso é ficção científica!”.
Essas tantas coisas impossíveis-possíveis – escolhidas de forma puramente arbitrária – são distribuídas ao longo de dois eixos que poderiam ser descritos como centrais para esse gênero mutável que é a ficção científica. O primeiro leva a questionar o lugar e o futuro da humanidade (mas também do planeta), à evolução das sociedades humanas e não humanas, a questionar as normas e saberes estabelecidos propondo arcos narrativos mais ou menos menos excêntricos, aventurescos, ousados, lúdicos – mas cujo sentido permanece muito sério. Em suma, grandes epopeias que põem em movimento o que achamos adequado chamar de realidade. O segundo eixo, ao extrapolar a partir de dados de um aqui e agora localizado, situado, permite à ficção científica levantar hipóteses, tirar as consequências lógicas e prováveis e, assim, revelar os medos e esperanças sociais, políticas, físicas, biológicas ou tecnológicas, suscitados pelas nossas sociedades contemporâneas. Deslocando essas esperanças e medos para outros espaços, sejam “galáxias muito, muito distantes” ou dimensões paralelas, e para outros tempos, seja no passado ou mais frequentemente no futuro, a ficção científica nos convida a abrir nossas portas trancafiadas em demasia, a olhar fora, trocar os óculos e mais ainda trocar de sapatos para, por um momento, caminhar com as botas cibernético-mutantes de criaturas de outros lugares e assim provocar esta pequena e tão poderosa pergunta “E se? E se fosse diferente?”. Em suma, a ficção científica nos oferece utopia e, infelizmente, o mais comum nos dias de hoje, distopia.
Mas logo aparece um problema, ou pelo menos uma perturbação. O que qualificaríamos de distópico, ou seja, digno das ficções do pior, do “mau lugar”, tem uma infeliz tendência a cruzar fronteiras dimensionais para se realizar, não mais no registro desse futuro distante que devemos temer e que poderia “tornar-se realidade” se não tomarmos cuidado e que assombra as estantes de ficção científica das bibliotecas, mas no nosso presente, no nosso aqui e agora. Que a realidade alcança a ficção é um truísmo. Que a realidade alcança a distopia em vez da utopia é, ousamos dizer, uma catástrofe. Ou para usar uma imagem de Susan Sontag, um desastre: “Pois vivemos sob a ameaça permanente de dois destinos igualmente assustadores, mas aparentemente opostos: uma banalidade implacável e um terror inconcebível. A banalidade da distopia que se tornou terror real. Hoje não é mais o terror que é inconcebível, esse terror que Isabelle Stengers, num eco muito marcante desse texto de Sontag de 1965, chama de “a barbárie que chega”. Coisas impossíveis e improváveis acontecem. Especialmente as piores. O que nos parece inconcebível é, ao contrário, a serenidade, a alegria, o amor, a igualdade, a atenção aos outros, a liberdade, a pluralidade, enfim a boa vida, não “a imaginação do desastre”, portanto, mas sim a imaginação da felicidade. O que nos parece inconcebível é utopia.
Como fazer que as coisas impossíveis, improváveis, principalmente as melhores, aconteçam? Você tem que correr o risco de imaginá-las. Especialmente se forem impossíveis. Para devolver todo o seu poder de impacto à utopia (e esta é mais vigorosa do que cinquenta ogivas de laser neuro-subatômicas), devemos questionar sua relação com a realidade e com a história. A Utopia, muito mais que uma ilha, é um oceano e nele devemos mergulhar por inteiro, com valentia, e deixar-nos levar por este espaço contínuo. Porque a utopia não é um destino, um ponto no final da frase, um fim a ser alcançado, um espaço estriado e codificado, padronizado e normatizado. Na extremidade dos desastres atuais e futuros encontra-se a extremidade da utopia. Essa extremidade, eu a qualifico como utopia radical. E, em primeiro lugar, encontra-se na ficção. Esta é precisamente a molécula de H2O deste oceano: a ficção.
Por isso, pode parecer muito ingênuo, duvidoso ou mesmo ilógico querer contrapor à virulência dos desastres atuais algo tão fútil e superficial quanto a ficção, ou o imaginário. Ainda mais: pode até parecer perigoso que essa ficção destaque histórias irrealistas, ilusórias e quase desconhecidas, como a boa vida, na qual já imaginamos criaturas inocentes e amigas correndo alegremente pelos prados, desconhecendo qualquer dos males que atualmente assolam nosso planeta. O que essas criaturas poderiam nos dizer sobre nosso presente, nosso futuro? A que força eles poderiam se opor diante do ultraliberalismo, totalitarismo, aumento das águas, racismo, sexismo, homofobia, fome e pandemias, autoritarismo e desmatamento, colonização e extinção de espécies, injustiças, massacres e genocídios, vigilância generalizada e o desaparecimento sorrateiro de nossas liberdades? O que essas criaturas utópicas poderiam fazer diante da violência de distopias bem menos fictícias do que reais?
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fonte: https://outraspalavras.net/poeticas/ensaio-nadadeve-parecer-impossivel-de-mudar/