Retrato dos patriotas de fachada que capitanearam o voto bolsonarista. Pregam Estado mínimo, mas se esbaldam em dinheiro público. Mais que do PT, têm ranço de tudo que cheira a popular. Veem Brasil como selva, que requer certos predadores
Depois desse mês de outubro passado em campanha de segundo turno, e depois dos “manifestantes” embandeirados nas estradas e em frente a quartéis, penso nessa vergonha nacional que é Bolsonaro, mas penso sobretudo no número grande de “sulistas” que o apoiou, e continuou a apoiar, com ostentação de bandeiras nas casas e carros e cômicas bravatas.
Pode-se dizer que um silêncio civil acompanhou durante esses quatro anos a tática militar da circulação das fakes, prática indecente, imoral, canalha, sobretudo porque integrada ao Palácio da Alvorada por esse espúrio governo.
Sim, os sulistas: sejam sulistas no Sul e Sudeste, ou no Centro-Oeste e até na região Norte, porque eles se espalharam no território nacional junto com a soja e outras produções agropecuárias.
O que desencadeia essa identificação? Esse comportamento ao que parece cego em relação ao que acontece dentro do Brasil e de descaso para com a nossa imagem fora?
Bolsonaro esteve sempre isolado enquanto chefe de Estado. Não houve Relações Internacionais para o Brasil com Bolsonaro. O auge de suas “relações internacionais” enquanto presidente foi assistir com Michelle a cerimônia fúnebre da rainha da Inglaterra na Abadia de Westminster. Pensa! Um sonho de princesa da Disney. O país não tem representante com ele – o que por si só já mostra o absurdo de mantê-lo no governo.
Ou seja, Bolsonaro não é, nunca foi chefe de Estado e ele melhor do que ninguém sabe disso, como mostrou e afirmou algumas vezes, e confirmou no ato falho do último debate, dizendo estar “pronto para novo mandato como deputado federal”.
Ele caiu fora. Sabia que cairia fora da presidência, cargo aliás que nunca conquistou, exerceu, valorizou. Mesmo assim, teve 58 milhões de votos no segundo turno.
Um feito que se deu naturalmente graças às inúmeras estratégias criminosas da capangada bolsonarista e do próprio palácio do governo com Bolsonaro, como o dinheiro roubado do orçamento e distribuído durante a campanha, na forma de auxílios a caminhoneiros, taxistas e população em geral, ou o uso das festividades de 7 de setembro, ou a máquina das fake news impulsionada por uma parcela do empresariado, ou a violência com jornalistas, ou as ameaças de golpe com a conivência de generais e o silêncio das forças armadas e ainda o assédio de empresários e políticos locais etc. etc. Inúmeros foram os mecanismos de coerção pelo medo e violência. Tudo indica que empregados de algumas empresas, famílias carentes e evangélicos foram pressionados, ameaçados, torturados, isolados, amedrontados. Portanto, foi na base da violência — que continuou depois do resultado das urnas em ações de “paralização” das estradas e incitação ao golpe na porta de quartéis.
Gostaríamos de entender o que se passa com o sujeito que ostentou/ostenta essa bandeira como um grito de apoio. O que apoia? Com o que se identifica?
Seguem então, depois das eleições, declarações de que “o Brasil está dividido”, sendo que essa divisão se marca no mapa, destacando o Nordeste com PT e o Sul com Bolsonaro.
Então, lembrei de Ariano Suassuna na sua famosa palestra no Tribunal do Trabalho em 2012, quando conta de um jantar na casa de um casal da elite carioca, em que a anfitriã lhe indaga com a afirmação “Você naturalmente já foi à Disney!”. O jantar em questão se deu no dia seguinte à posse de Suassuna na Academia Brasileira de Letras.
Nessa palestra, em tom jocoso, o escritor, que não tinha ido à Disney ou mesmo aos Estados Unidos, discorre sobre essa expectativa de que uma pessoa como ele, bem-sucedida, “naturalmente” já tivesse ido à Disney; e sobre essa familiaridade, essa intimidade com que a anfitriã se refere ao Parque Disney World, localizado em Orlando, na Flórida, como a “Disney”.
Assim, a pergunta lhe chama a atenção na própria forma em que se dá, com esse advérbio “naturalmente” e essa intimidade com algo que não nos pertence. Essa sintaxe permite a ele considerar sobre uma tal pessoa que divide a humanidade em duas categorias: os que foram à Disney e os que não foram. Permite tirar disso um alerta em relação ao perigo das ideias frívolas e de uma visão superficial do mundo e do ser humano.
Ariano conta ainda na mesma palestra que a anfitriã lhe pergunta se ele e a esposa não tinham tido dificuldade com a educação dos filhos, queixando-se da falta de nível dos professores dos dela. Segundo essa mãe, os professores não têm nível suficiente para conversar com seus filhos. Suassuna conclui que não se trata de nível cultural mas de nível econômico – pois a expectativa dessa mãe não era ver no professor dos filhos o domínio do que ensinam mas o conhecimento/reconhecimento quanto às frivolidades consumistas, já que o tal professor mencionado por ela não sabia o que era vídeo “Sound Boris Volcane” (sic).
Suassuna, que era do sertão da Paraíba, dizia-se cético quanto ao humano, mas apontava a necessidade urgente de uma humanização da sociedade e alertava já naquele momento para esse processo violento de vulgarização e descaracterização da cultura brasileira.
Penso que essa divisão do país (dos brasileiros) entre aqueles que foram (ou querem ir) à Disney, e “os outros”, é bastante significativa.
Primeiro porque traduz a imagem de um sujeito de tal modo afetado pelos valores da cultura do entretenimento e do consumo que, mesmo não sendo abastado, sente-se em pertencimento a essa rede midiática que se naturaliza o tempo todo na nossa sociedade. Com um agravante, pois a mercantilização está ainda presente se tomamos o Saci como competidor do Dia das Bruxas (em São Luiz do Paraitinga comemora-se, no dia 31 de outubro, o Dia do Saci, com uma grande festa turística). O quanto é diferente tomar como nossa a festa americana do Halloween ou transformar o Saci em um produto de consumo, pode ser discutível. Mas há no colamento com a cultura e ideologia americana o desprendimento em relação a nossa própria memória, o que me parece muito complicado mesmo.
“Da Disney” são, naturalmente, os do Sul, enquanto posição ideológica. Quer dizer, é o apego usurpado à bandeira de quem olha para lá, para as princesas da Disney, e não olha para a nação. Os enrolados na bandeira são aqueles que não se orgulham da trajetória histórica de um país que recentemente superou um período de ditadura e avançou muito nas políticas públicas, na estruturação dos órgãos de atenção social na Saúde e na Educação e na legislação e instituição de estruturas para atender os direitos constitucionais de todos: por exemplo, as delegacias especiais para mulheres, e a especificação de um crime como o de feminicídio; a delimitação de terras da União para quilombolas, indígenas, caiçaras, e as leis para coibir e punir crimes ambientais; as medidas e leis voltadas para o reconhecimento social da cidadania do negro e dos crimes de racismo.
Segundo porque esse sujeito que está olhando para a Disney quer naturalmente sentir-se distante dessa população outra, que não deve poder ir à Disney. E lembramos da indignação de Paulo Guedes dizendo que qualquer empregada doméstica estava indo pra Disney (na época do PT, né?).
Quanto a Bolsonaro, para ele certamente o país e a sociedade não importam; importa a família, como ele afirma o tempo todo, importa manter a possibilidade dele e de seus filhos continuarem se enriquecendo às custas de dinheiro público e falcatruas cujo alcance ainda desconhecemos. Para isso, como sabemos, ele troca quem for nas autoridades policiais, silencia o que for preciso.
Bolsonaro representa muito bem, nesse sentido, a ausência de Estado “de corpo presente” no Palácio. “Deus, Pátria, Família e Liberdade”, com a frase dita com as mãos e olhos para cima ao final do 3º bloco do último debate, frase que faz parte da memória do fascismo brasileiro, Bolsonaro “causa”, faz a cena voltada para esse engajamento em um “bolsonarismo”, seja lá o que for isso.
Penso que o “bolsonarismo” até já teve a ver com o que chamamos de antipetismo, mas deve ser compreendido hoje não apenas como decepção e rancor pela suposta corrupção dos/nos governos petistas. Mas principalmente como negativa de reconhecimento do Estado e a afirmação de um individualismo (a tal da “liberdade”) estúpido, senão suicida. Há entre estes bolsonaristas o brado do incômodo com o Bolsa Família: “trabalhei a minha vida toda, nunca recebi bolsa família!”.
E se quanto menos o Estado fizer melhor, esse é Bolsonaro.
Mas, com unhas e dentes, Bolsonaro, que não defende o Estado, dilacera as instituições e o orçamento público. E talvez seja essa uma imagem que pode parcialmente explicar esse apoio que intriga pelo absurdo da situação atual do país (de miséria, fome, carestia etc.), pela nulidade desse governo findo, pelo desprezo em relação à vida humana e aos valores cristãos desse sujeito e pelo amplo conhecimento da população com relação ao desvio de verbas praticado.
Lembrem que, como a Amazônia, em declaração de Bolsonaro, é uma “selva”, o jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira foram mortos porque entraram na selva, porque se expuseram (na sua defesa). Na realidade, o país tornou-se uma selva, os CACs (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador) espalharam-se e como se sabe caçador tem alvo.
Eis então que essa outra imagem que já esteve aí em circulação faz link: tem os que podem se transformar em alvos e os outros, os predadores. A identificação pela bandeira é a identificação com o lugar de predador na sociedade, essa ideia fascista mesmo de se separar de um conjunto maior, que pode ou não ser justificada por alguma fantasia de superioridade, como a afirmação do lugar privilegiado do homem branco, mas ao que parece está voltada para o investimento no “negócio próprio” enquanto ideal, esse sonho de ser empresário.
Bolsonaro representa um momento em que, entre: 1) o Estado de bem estar social, 2) o Estado mínimo e 3) a “selva/ selvageria”, o sujeito escolhe a selvageria – que é, digamos, a possibilidade de ausência de política de proteção social. (Veja isso e isso).
Quem apoiaria algo assim?
Luciano Hang talvez seja exemplar da figura de um empresário que considera o Estado um empecilho. O sujeito deve R$168 milhões para a Receita Federal e o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), dívida que conseguiu parcelar em 115 anos. Apesar da dívida gigantesca, no início desse ano comprou um jatinho que custa quase R$ 250 milhões.
Assim como diversos gestos e palavras de Bolsonaro, também nessa história de Hang mostra-se um escárnio com o lugar do Estado de direito, com a sua autoridade e efetividade. A questão é a da possibilidade de confronto com o Estado, junto a essa expectativa de uma abolição total dos “encargos trabalhistas”, entre outros impostos: “Afinal, como um empresário pode ir pra frente em um país que subtrai através dos impostos valores como esses!”
Além desse tipo de empresário de sucesso, tem também os pastores, lembrando que as igrejas não pagam impostos e por isso mesmo são tão atraentes para quem quer enriquecer. Entre tantos criminosos pastores, podemos exemplificar com o pastor Ivonélio, “amigo de longa data” do deputado federal e pastor Marco Feliciano (PL-SP). Seu filho Patrick Abrahão é líder da Trust Investing, investigada por pirâmide financeira.
Patrick tem 3 milhões de seguidores no Instagram e é casado com uma cantora gospel, Perlla, que tem 2,5 milhões de seguidores na mesma rede sociais. Fotos ao lado de carros de luxo, dentro de aviões e hotéis de luxo configuram uma vida agitada em lugares como Dubai e Cancun, no México. Um de seus vídeos se chama “Primeiro milhão aos 21 anos, minha história no marketing multinível”. Ele alega que, durante a sua infância, ou seja, apenas cerca de dez anos antes do “primeiro R$ 1 milhão”, seu pai Ivonélio gerenciava uma padaria e recebia “R$ 300 ao mês para sustentar nossa casa”.
A imagem do empresário de sucesso está presente nas Igrejas, como a Igreja Universal e a igreja de Ivonélio, em que pai e filho se valem da rede social como multiplicadora de sua “obra”, e em que o altar desloca-se e se transforma, por meio da mídia digital, em uma história de sucesso.
Então, temos que as redes sociais colocam em cena a imagem desse paraíso que é a ausência de Estado, atiçando o desejo de empreender do sujeito, que não conseguiria ter sucesso porque o Estado é um obstáculo. Certas figuras vem encarnar esse empresariado de sucesso, alguém como Hang, um grande e bem-sucedido sonegador de impostos; outras figuras vem atiçar o desejo de “empreender”, o desejo de ser abençoado com o sucesso de seu empreendimento. O sujeito que se encontra pego por essa rede digital não se reconhece como trabalhador, é como não-trabalhador que a posição do empresário bem sucedido lhe acena.
Sonegador de impostos, destruidor da natureza, explorador da terra e do trabalho, são esses os patriotas. Mas são também os sujeitos que, de olhos voltados para as princesas da Disney, encontram-se indiferentes ao empobrecimento do país, indiferentes à destruição da Amazônia e à morte de negros, índios e mulheres.
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