Berenice Bento
Com gestos silenciosos, todos entram no refeitório. Parecia que os corpos ainda estavam dormindo. Nos aglomerávamos na cozinha para preparar um café rápido, antes da reunião. A tripulação do navio era formada por 25 pessoas, entre voluntários e contratados. Nos sentávamos ao redor de mesas e a reunião começava. Antes das 7 horas da manhã, iniciava-se o planejamento do dia. Pela escuridão da portinha, eu tentava adivinhar quando o sol iria nascer e desconcentrava-me dos encaminhamentos da reunião. Estávamos no Porto de Burriana, na Espanha, em um navio que faz resgate de pessoas no Mar Mediterrâneo. O navio precisava de reparos estruturais para reiniciar o trabalho. Não havia tempo a perder. Cada dia a menos de resgate, mais vidas poderiam ser perdidas.
Acompanho, há muito tempo, com perplexidade, as informações que chegam sobre as mortes no Mar Mediterrâneo. Pessoas que tentam, em embarcações precárias, chegar à Europa. Muitos morrem, desaparecem no mar, transformando o Mediterrâneo na maior vala comum da contemporaneidade. Foi para tentar entender como, mais uma vez, a Europa faz o impossível tornar-se possível e, ainda, normaliza suas aberrações políticas, que fui para um navio que faz resgate de pessoas e trabalhei como auxiliar de cozinha.
No auge da crise migratória, houve iniciativas de Estados europeus para a realização dos resgastes. Mas não demorou muito e alterou-se radicalmente a orientação política. Não apenas suspenderam os resgastes. As políticas de controle da fronteira e de negação de entrada vêm intensificando-se nos últimos anos. Na absoluta falta de políticas estatais voltadas para salvar as pessoas que estão no limiar da vida e morte, iniciou-se uma intensa mobilização da sociedade civil europeia. São inúmeras Organizações Não Governamentais que fazem os resgastes. No Porto de Burriana, estavam os barcos dos coletivos Sea Punk, Sea Eye, Open Arms, Louise Michelle e o SOS Humanity I, onde fiz o trabalho voluntário. Esse é apenas um dos muitos portos em que os navios param para fazer os reparos. O tempo que leva para fazê-los estará condicionado aos recursos para aquisição das peças e da mão de obra disponível. O Sea Punk trabalhava com uma equipe reduzida e a previsão para retornar aos resgastes não era certa. Em todo porto, as bandeiras antifascistas estavam espalhadas em camisetas, adesivos, e na coragem anarquista do Sea Punk, que trazia no seu mastro, como principal bandeira, a “AÇÃO ANTIFASCISTA”.
Foi na cozinha do navio, entre alhos, cebolas e faxinas, que escutei histórias e tentei encontrar respostas para questões que me angustiam: como é possível que o continente que inventou os Direitos Humanos segue deixando pessoas morrendo no mar e, em parcerias com a Líbia, provoca as mortes? Durante a escravidão, dizia-se que a Europa não tinha conhecimento das atrocidades cometidas nas colônias, mas, como aponta o historiador Conrad (no seu livro Tumbeiros), há relatos de que os navios que faziam o tráfico tinham um odor insuportável e inconfundível. Não era possível não os identificar antes mesmo de atracar nos portos e não conhecer os horrores que aconteciam na travessia e nas plantações nas colônias.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a civilizada Europa mostrou-se horrorizada com os genocídios cometidos nos campos de extermínios nazifascistas. Mas o que era aquela fumaça escura que cobria os céus das cidades? Ninguém desconfiou que estava respirando restos mortais, que a morte entrava pelas narinas e alojava-se, não nos pulmões, mas nas almas? E agora? Estima-se que 85 mil pessoas perderam suas vidas ou estão desaparecidas ao tentar atravessar o Mediterrâneo. Todos os dias, os jornais trazem notícias das mortes no Mediterrâneo. Não é por desconhecimento que as mortes acontecem. É uma política intencional que segue aprimorando seus métodos de gestão da produção da morte das pessoas negras no Mediterrâneo. O que se demanda da Comunidade Europeia já está previsto em Leis Internacionais: 1) caminho para Europa seguro e legal; respeito ao direito de asilo; recepção das pessoas que buscam proteção na Europa.
A perseguição às ONGs
Qual a diferença para o que acontece no Mediterrâneo hoje com a escravidão e a Segunda Guerra Mundial? Tornou-se impossível se jogar ou se manipular o argumento do “desconhecimento”. Se isso é verdade, ou seja, todos sabem o que está no Mediterrâneo, estamos diante de outra sensibilidade, em que nem o argumento do direito à vida, nem as leis internacionais que protegem e garantem o direito ao pedido de asilo, nem argumentos de ordem religiosa são suficientes para produção da indignação coletiva. É como se estivéssemos diante de uma redução da empatia. É isso que estou chamando de uma sensibilidade neofascista. Ou seja, o critério, aqui, para se analisar a emergência do fascismo e suas novas ressignificações não está na eleição de um candidato de extrema direita, mas na relação que os Estados têm o Outro, o imigrante, o refugiado. Essa relação irá alterar-se de acordo com os fenotípicos raciais que o corpo do demandante de proteção porte. Assistimos à comoção europeia em relação aos ucranianos e o desprezo pelos pedidos de socorro das pessoas que são levadas a morrer no Mediterrâneo. Empatia seletiva é fascismo.
Fui encontrar fissuras no racismo europeu no trabalho de coletivos que se negam a serem cúmplices com a política de promoção da morte e por isso pagam preços. A Itália aprovou um decreto que criminaliza as ONGs que fazem resgastes. O horror dos Estados com a solidariedade com e entre os oprimidos não é uma invenção “made in Italy”. Como não lembrar dos inúmeros decretos do Reino de Portugal, que criminalizava as pessoas livres que “acoitassem” (dessem proteção) as pessoas escravizadas fugitivas ao longo de toda escravidão?
O início dos trabalhos de resgate pela sociedade civil europeia começou em 2014, mas foi com o legendário “Aquarius”, em 2016, que o trabalho se intensificou. Parece estranho falar de “legendário” para um período histórico tão curto. Foi esse navio, no entanto, que começou a resgatar grandes quantidades de pessoas. A perseguição oficial ao Aquarius foi implacável: acusação de tráfico de pessoas, navegar com sobrepeso, não autorização para desembarcar os sobreviventes. Entre 2016-2018, o Aquarius resgatou 29.523 pessoas. Hoje, o Aquarius não existe mais.
Depois do resgate, é preciso a autorização para que se proceda ao desembarque das pessoas. A demora nessa autorização leva à exaustão da tripulação e dos sobreviventes. Outra técnica de produção da exaustão é autorizar o desembarque em um porto mais longe, o que pode demandar mais dias de viagem. Imaginem a situação: os sobreviventes, quando são resgatados, já estão no mar há dias. Até chegar aos portos da Itália (porque são os próximos da costa da Líbia), se gasta mais dois ou três dias. As condições de instalação de um navio são limitadas e, muitas vezes, precárias. Então, exigir o deslocamento para portos mais distantes é uma mensagem não dita: “faremos tudo para não facilitar o resgate dessa gente.”
Confira aqui o artigo na íntegra. Texto publicado originalmente em 13 de fevereiro no portal Outras Palavras.
Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e doutora em Sociologia pela UnB/Universidade de Barcelona.
fonte: https://noticias.unb.br/artigos-main/6348-mar-mediterraneo-um-mar-de-sangue