Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP
Em 2017, o então vereador Chiquinho Brazão foi relator de um projeto de lei que propunha dar o nome de Pasquale Mauro a uma rua do Recreio dos Bandeirantes, bairro da zona oeste do Rio. Pouco conhecido do grande público, Pasquale foi um dos maiores grileiros das áreas valorizadas da região, que viveu intenso processo de urbanização a partir da década de 1970. Tinha dezenas de processos nas costas por posse ilegal de terras. Sua movimentação no mercado informal já era conhecida desde pelo menos 1979, pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), assim como sua proximidade com autoridades policiais e do Judiciário, que lhe davam cobertura. Em seu voto para torná-lo nome de rua, Chiquinho se refere a Pasquale como “grande empreendedor imobiliário da Barra da Tijuca”. Domingos Brazão, irmão de Chiquinho, já havia homenageado o grileiro em 2003 na Assembleia do Rio com a Medalha Tiradentes.
No inquérito feito pela Polícia Federal sobre os mandantes da morte de Marielle Franco e Anderson Gomes, a grilagem e a construção de casas nas terras apropriadas na zona oeste foram apontadas como a principal motivação para que os irmãos planejassem o crime, executado pelo policial-pistoleiro Ronnie Lessa. A delação de Lessa serviu de base para a prisão dos Brazão e do chefe da polícia civil do Rio, Rivaldo Barbosa. Marielle, junto com a bancada do PSOL, vinha atuando para que o Estado garantisse moradias populares nesses lotes cobiçados pelo mercado ilegal.
O papel da divisão e do controle de território no submundo do crime no Rio de Janeiro é antigo. Já vem desde pelo menos a segunda metade do século passado, liderado pelo jogo do bicho, mas se aprofundou com a expansão do varejo das drogas, depois dos anos 1980. Bairros e morros foram dominados pelo tráfico para garantir a venda nas ruas e festas. As milícias elevaram o controle territorial a um novo patamar porque perceberam como tirar dividendos políticos e econômicos desse arranjo que mistura clientelismo e violência. O domínio de um bairro permite a extorsão a moradores e comerciantes, receitas capazes de financiar esse poder. A verba aumenta com a regulamentação dos negócios ilegais, como furto de energia, de água, internet irregular, “gatonet”, cigarros piratas, transporte e construção de moradias em áreas griladas.
Além do dinheiro com a venda de lotes e casas, o adensamento populacional dos bairros promove o crescimento do total de eleitores, que passam a apoiar candidatos vinculados aos interesses econômicos dos grupos armados. Os grupos milicianos ainda se associaram aos empresários do jogo do bicho, cuja relação histórica com as polícias, parlamentares e governantes fortaleceu o poder dessas quadrilhas. As redes criminosas, antes divididas, começaram a costurar alianças que as tornaram cada vez mais sólidas.
Com o passar do tempo, esse modelo ilegal e clientelista de controle de territórios se espraiou e tomou de assalto as instituições fluminenses. A república parecia desmoronar, ao mesmo tempo que lideranças locais passavam a ganhar cada vez mais influência governando seus próprios feudos. Em vez de debater e pensar sobre políticas públicas para reduzir as igualdades e injustiças da sociedade, o Estado foi sequestrado para garantir os ganhos privados desses grupos que dominam territórios e elegem seus representantes para beneficiar seus aliados.
Nos demais Estados brasileiros, a luta entre grupos armados pelo controle territorial em bairros pobres também foi vitaminada pelos recursos de atividades ilegais diversas. O movimento do mercado de drogas se ampliou pelo Brasil desde que as facções do Sudeste perceberam o potencial de lucro do mercado atacadista e ampliaram o acesso aos produtores de cocaína e maconha na América do Sul. O Brasil, com um mercado interno forte, se tornou ainda um corredor estratégico para a venda em dólar de mercadorias para o exterior, multiplicando o lucro dos empreendedores nacionais. O Primeiro Comando da Capital (PCC), por exemplo, segundo registro de seus tesoureiros, movimentava cerca de R$ 200 milhões por ano há cerca de uma década. Atualmente, já ultrapassa os R$ 5 bilhões, conforme os dados do Ministério Público paulista. Faz aliança com gangues brasileiras regionais e locais, que assumem a bronca de exercer o controle armado de territórios em suas cidades para garantir a venda varejista.
Esse dinheiro do atacado nacional e internacional retorna para a economia formal em sistemas de lavagem cada vez mais sofisticados, que incluem Fintecs, criptomoedas e fundos privados de investimentos, permitindo a seus empresários ampliar sua influência política, econômica e social. O sucesso desse modelo de negócio criminal pode ser medido pelo fato de ter sido replicado em todos os Estados do Brasil, que atualmente conta com pelo menos 70 gangues de base prisional, gerindo um comércio mais estruturado que o de antigamente, atomizado e violento. O Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, é a única facção capaz de fazer frente ao PCC no atacado de drogas e assim vem ampliando sua presença em diferentes Estados brasileiros. Na Bahia, por exemplo, onde o CV se aliou ao grupo local Comando da Paz, a facção chega ao território expulsando moradores, criando taxas de extorsão e negócios ligados à venda de gatonet e gás, semelhantes aos modelos de domínio das milícias fluminenses.
Cada capital do Norte e Nordeste tem seu cenário criminal, normalmente polarizado entre CV, PCC aliados a grupos locais. Policiais também se aproveitam dessa cena mais capitalizada e formam tipos diferentes de milícias. Esse movimento de expansão também alcança as zonas rurais do interior do Nordeste e no Norte brasileiro e parte do Centro-Oeste, incluindo a região da Amazônia Legal. Nesses espaços, o dinheiro do tráfico se juntou ao do crime tradicional, ligado à grilagem de terra, garimpo e venda de madeira ilegal, que desde os anos 1970 formou o poder político das pequenas cidades da região. Esse poder armado voltado ao crime ambiental se fortaleceu com a facilidade de acesso de diversos calibres e munições nos quatro anos bolsonaristas e ganhou apoio de integrantes das polícias e de seguranças privados, contra políticas públicas de demarcação de terras indígenas e a agricultura familiar.
A retomada do controle dos territórios pelo Estado democrático está no centro da disputa pelo fortalecimento e restauração do poder político republicano. Mais do que nunca, tornou-se necessária uma articulação nacional para libertar bairros e cidades tiranizados por grupos armados, que subjugam seus moradores para ficarem mais ricos e poderosos com dinheiro do crime. Mais do que meramente uma questão de segurança pública, a expansão e o controle territorial do crime são um desafio político.
Duas frentes são estratégicas para lidar com o problema. A redução das taxas de homicídios brasileiras é uma delas. Quanto mais elevado o número de homicídios em um território, maior e mais cruel é o peso da tirania local. Identificar e punir essas homicidas é um passo urgente para a retomada do papel do Estado moderno como garantidor do monopólio legítimo da força em defesa do Estado de direito e da defesa da vida. O mesmo esforço deve se voltar para o controle da letalidade policial. Uma polícia que mata é uma corporação sem controle, mais sujeita a vender seu poder armado e letal para o crime organizado. Policiais com carta branca para matar são instrumentos na disputa entre quadrilhas, desejados pelo capital criminal. Reduzir a letalidade e aumentar o controle das polícias são fundamentais para evitar o espraiamento das milícias e da parceria entre polícia e crime.
Juntamente a essa frente voltada à libertação dos territórios, é urgente aprimorar a investigação financeira para reduzir a influência desses grupos criminosos sobre a economia e a política. Não é tarefa fácil, mas é uma forma dos partidos progressistas, compromissados com a defesa da democracia, proporem um discurso de manutenção da ordem, ao mesmo tempo que defendem a vida. Dessa forma, podem se contrapor ao discurso da extrema direita, que incentiva a truculência policial, a superlotação dos presídios e a desregulamentação do comércio de armas. A direita abraça um falso discurso da ordem, ao defender a violência policial numa guerra fracassada contra o crime dos outros – não o dos seus aliados. Para piorar, esse discurso da barbárie e a mentalidade de curto prazo fazem enorme sucesso nas redes sociais.