Quase lá: Intelectualidade negra: relembrando Milton Santos

Nas primeiras décadas do século 21, temos a ilusão de que as portas, finalmente, estão se abrindo para que pessoas negras sejam “aceitas” no mundo acadêmico

Por Gislene Aparecida dos Santos, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

  Publicado: 16/09/2022
 

No ano de 1989, ocorreu o 1º Encontro de Docentes, Pesquisadores e Pós-Graduandos Negros das Universidades Paulistas, realizado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Unesp. Esse evento contou com a palestra O intelectual negro no Brasil, proferida pelo professor Milton Santos.

Nas primeiras décadas do século 21, temos a ilusão de que as portas, finalmente, estão se abrindo para que pessoas negras sejam “aceitas” no mundo acadêmico. Na era das redes e mídias sociais na qual o supostamente coletivo impera tolhendo a independência do pensamento pelo medo do isolamento e dos cancelamentos públicos, recuperar as sábias palavras do professor e intelectual Milton Santos é como reencontrar a bússola perdida no lamaçal de ideias desconexas. É a redefinição de um rumo dentro das universidades, como pessoas que querem pensar o Brasil e contribuir para que versões fáceis e banais não proliferem em busca de “15 minutos de fama”, sem compromisso com a história e com a verdade.

Abro espaço para retomar as sábias palavras de Milton Santos, trazendo trechos da palestra que pode ser lida, na íntegra, no volume 1 da revista Ethnos Brasil.

Com a palavra, Milton Santos.

“Esta reunião tem um grande significado e uma novidade, é o primeiro encontro de professores, pesquisadores, pós-graduandos negros, isto é, intelectuais negros assumindo-se nessa condição, e, por isso, queria vivamente felicitar os que a organizaram.

(…) E os intelectuais têm uma especificidade, que é não temer ficar só. Quem se subordina ao apreço de seus vizinhos e contemporâneos pelo temor de ficar só está fadado a não ser um verdadeiro intelectual. A firmeza de sua posição é avançar com sua ideia pensando que ela é a verdade, porque o intelectual não tem a verdade e sabe que não a alcança, mas a busca permanentemente.

Insistimos nessa questão porque as nossas universidades estão ameaçadas de ficar apenas com os professores, que não são obrigatoriamente intelectuais. Cada vez mais se afunda o fosso entre professores e intelectuais porque, da forma como a universidade se organiza criam-se obstáculos para a formação desses intelectuais.

Para os intelectuais, a sua prática é a prática teórica. As outras serão ocasionais, resultado da prática teórica e não o cotidiano fundamental, para evitar o perigo da subordinação às crises, ainda que estas apareçam com o nome de grupos ou de partidos, ou que se arroguem o nome de sociedade, como se a sociedade fosse uma coisa de definição comum e não de definição múltipla.

O intelectual é aquele que se recusa a toda forma de serialização e que admite estar junto para poder estar só, isto é, livre para pensar, mantendo a independência que é prova da individualidade forte, sem a qual não há pensamento frutífero, há apenas pensamento associado.

(…) Está faltando o papel do verdadeiro intelectual. Sabemos que nem o Brasil nem a universidade estão preparados para esse tipo de intelectual, mas devemos criá-lo independente, malgrado essa falta de condições porque ser intelectual é ser contra a corrente. Ser a favor da corrente é fácil, ser contra a corrente é que não é fácil. Um intelectual que deseja o fácil deve ausentar-se dos lugares onde se pratica a inteligência e se produz a cultura.

(…) Creio que a questão do negro e dos estudos negros na universidade deve ser vista nesse contexto. Desprovidos das alavancas de que os setores hegemônicos dispõem para controlar a pesquisa, devemos construir nossas teses com total liberdade, sem subordinação a qualquer que seja o mandamento externo, para evitar a ameaça de praticar o erro, em vez da verdade.

Por conseguinte, não há uma questão negra fora da formação social brasileira. Estudando o Brasil nas suas relações externas, nas relações internas, ontem e hoje, vamos localizar a questão do negro no Brasil. Não há uma questão do negro isolada da questão nacional. Não há uma análise do negro que se possa fazer de forma válida e com possível eficácia política que não aquela que veja o negro dentro da sociedade brasileira.

(…) Quais são os desafios que nos espreitam nesse fim de século? Pensamos que o maior desafio é a clareza de objetivos. Esta não se dá sem o conhecimento da história do mundo como ele é hoje, na modernidade contemporânea, sem o conhecimento do País como ele é hoje, na sua totalidade e na sua singularidade.”

 

fonte: https://jornal.usp.br/articulistas/gislene-aparecida-dos-santos/intelectualidade-negra-relembrando-milton-santos/

 


Artigos do CFEMEA

Coloque seu email em nossa lista

lia zanotta4
CLIQUE E LEIA:

Lia Zanotta

A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?

ivone gebara religiosas pelos direitos

Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

Violência contra as mulheres em dados

Cfemea Perfil Parlamentar

Direitos Sexuais e Reprodutivos

logo ulf4

Logomarca NPNM

Cfemea Perfil Parlamentar

Informe sobre o monitoramento do Congresso Nacional maio-junho 2023

legalizar aborto

...