Bolsonaro lançou mão de todos os recursos para atacar a ciência e tecnologia. Universidades e entidades mobilizam-se e resistem. Em novo governo democrático, multiplicar orçamento será essencial para reconquistar a soberania
Um jargão político muito utilizado é: “Brasil, o país do futuro!”. O vazio desta frase acoberta muitos erros dos dirigentes políticos, representando uma mistificação de fatos e sérias omissões. O tema do presente e do futuro do Brasil não se faz esperar, é grave e exige medidas urgentes.
Diante do desafio de enfrentar o vírus da covid-19, muitos países perceberam o alerta para a necessária defesa da saúde pública, a importância da ciência e do conhecimento científico e a aplicação dos resultados das pesquisas científicas para melhorar a qualidade da vida, fortalecer a saúde com a vacina e evitar a disseminação do vírus. Grande parte da população do Brasil entendeu esta conexão, apesar de manifestações negando a validade da ciência da parte do chefe do governo, sem apresentar qualquer fundamento. Ficou evidente a dependência do fornecimento de vacinas por países mais adiantados na área da ciência para atender à demanda dos países subdesenvolvidos ou do “Terceiro Mundo”, ou qualquer outra denominação que se queira usar para definir “um país do futuro”.
Mas como alcançar o desenvolvimento da ciência diante da crueza dos valores numéricos nos orçamentos públicos? Sem dúvida, a ciência e a pesquisa científica devem receber atenção especial dos governos. Lamentavelmente, no Brasil, apesar de exigência constitucional de se desenvolver a ciência, ela vem sendo cada vez mais relegada na atribuição de verbas pelo governo federal.
A proposta de emenda constitucional (PEC) n.º 187/2019, apresentada por parlamentares representando vários partidos (MDB, Cidadania, PSD, DEM, PP, Podemos, PSDB, PL, PSL, Republicanos, PROS e PSC), propunha a extinção de 240 fundos públicos, entre eles o Fundo Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que financia a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico no país, sendo que o Ministério da Economia solicitou urgência ao Senado para apreciação da matéria.
Vários segmentos sociais manifestaram repúdio à proposta da PEC diante da possibilidade de perda de verbas direcionadas para gastos sociais oriundas de muitos fundos com risco de extinção. Entre eles, o Conselho dos Direitos do Idoso do Distrito Federal, Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara/Arquidiocese de Campinas, Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da União (Fenajufe), entre outros.
O então presidente da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Ildeu de Castro Moreira, condenou essa proposta na audiência pública promovida pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado para debater a PEC n.º 187, que tem como relator o senador Otto Alencar (PSD-BA), audiência essa que reuniu especialistas de vários setores. A PEC estabelece que a instituição de fundos públicos exige lei complementar e, em relação aos fundos já existentes, obriga que sejam ratificados pelos respectivos Poderes Legislativos, por meio de Lei Complementar específica para cada um dos fundos públicos, até o final do segundo exercício financeiro subsequente à data da promulgação da Emenda Constitucional, sob pena de extinção do fundo e transferência do respectivo patrimônio para o Poder ao qual ele se vinculava. É evidente a dificuldade de operacionalizar esses procedimentos em tempo tão curto!
Valores da previsão orçamentária para a ciência entre 2010 e 2019
Em nome da SBPC (entidade que reúne 145 sociedades afiliadas de todas as áreas do conhecimento) e representando na audiência a Academia Brasileira de Ciências; o Confies – Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica; o Conif – Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica; a Andifes – Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, o cientista Castro Moreira afirmou categoricamente: “somos contrários à extinção do FNDCT”.
A proposta de emenda constitucional passou pela Comissão de Constituição e Justiça com a aprovação do relatório do senador Otto Alencar, que passou a constituir o parecer da CCJ favorável à proposta e parcialmente favorável a algumas emendas apresentadas. Encontra-se, desde 10/03/2020, aguardando inclusão na Ordem do Dia do Plenário do Senado Federal para a primeira sessão de discussão, em primeiro turno (DSF, 10/03/2020, p. 72 – DSF nº 18).
O resultado prático dessa PEC para o governo federal está contido no seu artigo 5º, porquanto o superávit financeiro das fontes de recursos dos fundos públicos, apurados ao final de cada exercício, será destinado à amortização da dívida pública do respectivo ente. Enquanto isto, outro artigo menciona que parte das receitas públicas desvinculadas em decorrência do disposto neste artigo poderá ser destinada a projetos e programas voltados à erradicação da pobreza e a investimentos em infraestrutura que visem à reconstrução nacional. Isto, evidente, a depender da vontade política do governo de plantão, sem compromisso específico.
Recentemente, em texto jornalístico, dirigentes de universidades do Estado de São Paulo, Edson Cocchieri Botelho (Pró-reitor de Pesquisa da Unesp), João Marcos T. Romano (Pró-reitor de Pesquisa da Unicamp) e Paulo Alberto Nussenzveig (Pró-reitor de Pesquisa e Inovação da USP), manifestaram-se contra a nova iniciativa de corte de verbas na área da ciência, considerando que “ela pode comprometer nosso futuro”. Afirmam que nos últimos seis anos vem caindo o financiamento de ciência, tecnologia e inovação: “Enquanto nos países europeus, norte-americanos e asiáticos o investimento no setor varia entre 2% até mais de 5% do Produto Interno Bruto, no Brasil a mobilização da sociedade luta para que esse investimento não caia abaixo de 1,2% do PIB”.
Em sentido contrário a essa tendência nesses países, a Medida Provisória nº 1.136/2022, de 29/08/2022, editada pelo presidente Bolsonaro juntamente com o Ministro da Economia e o Ministro de Ciência, Tecnologia e Inovações pretende promover cortes de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), com perda estimada em R$ 2 bilhões em 2022 e limitando despesas no setor até 2026. (Folha de S.Paulo, Opinião, “Basta de tentativas de ciencídio”, 8/9/2022) Isto significaria quatro anos de atraso para a ciência numa época em que a ciência e a tecnologia evoluem de forma dinâmica no mundo, resultando para o Brasil redução na capacidade de concorrer internacionalmente.
Nos termos da Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 307, de 25/8/2022, dos Ministérios citados, essas alterações objetivam “compatibilizar o apoio financeiro da União às ações de Ciência, Tecnologia e Inovação, realizadas por intermédio do FNDCT, ao regramento fiscal vigente bem como às restrições fiscais por que passa o Orçamento Geral da União (OGU)”. (Sumário Executivo de Medida Provisória)
É a mesma ladainha de sempre, o lema do “regramento fiscal” sem o necessário detalhamento e, ainda, carecendo de fundamentação e avaliação quanto à distribuição de verbas dentro dos limites do orçamento. Percebe-se a clara intenção do governo federal em contornar a falta da extinção do FNDCT, cuja proposta continua pendente, por meio do corte de recursos por meio dessa MP, causando uma enorme perda para o desenvolvimento da ciência no Brasil.
Tentando entender esse malabarismo de números dos gastos públicos, no orçamento de 2022, do total de R$ 9 bilhões do FNDCT, mais da metade integraria uma conta de recursos reembolsáveis, que certamente nem seriam utilizados, considerando a limitação do teto que seria imposta pela MP nº 1.136 resultando no valor de R$ 5,5 bilhões para este ano. É o que vem ocorrendo no decorrer dos últimos anos para atender a exigência das metas fiscais, afastando a possibilidade de ampliar investimentos na área da ciência. Mesmo estabelecendo valores nominais mais elevados no orçamento anual, são realizados contingenciamentos de verbas do FNDCT que vedam os necessários investimentos em ciência e tecnologia. Traduzindo, mesmo aumentando os valores no orçamento, o investimento real na ciência é reduzido pelo aumento crescente do valor da reserva de contingenciamento, fato registrado desde 2017 com recursos disponíveis que caíram de cerca de R$ 1,6 bilhão (em valores atualizados) para menos de R$ 600 milhões em 2021.
Segundo o “Dicionário informal”, os contingenciamentos são o retardamento ou ainda a inexecução de parte da programação de despesa prevista na Lei Orçamentária. Sem dúvida, eles seguem a tendência política estabelecida com a aprovação da Emenda Constitucional n.º 95, de novembro de 2016, que limitou o teto dos gastos sociais nos orçamentos até o ano de 2026. As sete ADINs apresentadas contra a emenda, sob a relatoria da ministra Rosa Weber, do STF, aguardam pauta para julgamento faz seis anos.
Para melhorar essa situação, foi aprovada a Lei Complementar n.º 177, de 2021, contendo um dispositivo que proíbe contingenciamentos ou limitações de verbas do FNDCT. O governo federal vetou esse dispositivo, mas o veto foi derrubado no Congresso Nacional em 17 de março de 2021. É uma luta constante dos defensores da ciência contra a ditadura imposta pelos números do “regramento fiscal”!
Apesar disto, o Ministério da Economia buscou um bloqueio de R$ 2,5 bilhões para burlar a regra. A MP n.º 1.136/2022 representa nova tentativa de descumprir a vontade popular expressa por decisões do Congresso. No entanto, em face de vários requerimentos de parlamentares pertencentes a diversos partidos, a tendência é que a Comissão Mista da Medida Provisória n° 1136, de 2022, do Congresso Nacional, opte por devolver a MP ao Executivo por vício de inconstitucionalidade. Vamos torcer para que isto aconteça passadas as eleições…
Estes casos seguidos de redução de verbas para a ciência representam um dos grandes impasses a serem superados pelo Brasil e indicam a necessidade de boas escolhas nas eleições que estão próximas. Teremos que optar por candidatos que tenham compromisso sério em assegurar níveis mais elevados de investimento no campo da ciência, tecnologia e inovação, buscando diminuir a distância entre o desgastado “Brasil, país do futuro” e a construção efetiva de um “Brasil, país do presente”!
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