No primeiro dia do Abrascão, pesquisadores e ativistas populares denunciam privatização das águas e veem chance de revertê-la no novo governo. Eles demonstram: saneamento e preservação ambiental podem ser políticas de Saúde baratas e eficazes
O termo Saúde Coletiva remete ao início da história do movimento de construção do conceito de direito à Saúde, que desembocaria na construção do SUS. Mais do que o direito a um atendimento médico ou farmacológico, saúde é algo que precede a doença. E é uma multiplicidade de fatores que constitui uma condição de saúde desejável, tanto individual como coletiva. É por isso que o Abrascão 2022 abrange debates como o realizado na tarde desta segunda, intitulado “Neoliberalismo e crise ecológica: a insegurança hídrica e o direito humano à água e ao saneamento”. Evento que acontece em Salvador e reúne milhares de pesquisadores, ativistas e gestores de Saúde teve seu início oficial ontem, 21/11, e já permitiu momentos importantes de encontros da academia com movimentos populares.
Mediado por Alexandre Pessoa Dias, teve a participação de Léo Heller, da Fiocruz-MG, Eliete Paraguassu da Convenção, do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil e Marcia Maria Pereira Muniz, da Articulação do Semiárido (ASA) e do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (BA). O painel expressou a interseccionalidade de temas como acesso à água limpa e preservação ambiental com a própria condição de saúde das pessoas expostas a processos de negação de um direito básico ou exploração não sustentável de um recurso natural.
Ao introduzir o conceito de insegurança hídrica, Leo Heller lembrou da aprovação da Lei 14.026/20 no governo Bolsonaro, a chamada privatização do saneamento, defendida por setores de mídia como “conquista” do presidente neofascista. Sancionada há cerca de dois anos, o país até hoje não viu investimento da iniciativa privada em áreas onde seria mais necessário.
“Com base na crença das leis de mercado, corre-se risco de incidir cada vez mais na violação do direito humano do acesso à água. A experiência internacional mostra que privatização não resolveu problemas e o Brasil promove um nível sem igual de privatizações no setor. E não depende apenas do governo federal suspender esse processo”, afirmou, lembrando que, embora estimuladas por lei federal, as concessões do serviço de águas são realizadas por estados ou municípios.
Água e saneamento são mais um exemplo da combinação de um governo que produziu desinvestimentos sociais com a apatia de um capitalismo financeirizado que não se animou a produzir avanços no acesso à água tratada. E, em nome das mitologias neoliberais, experimentos sociais bem sucedidos são punidos.
“O programa de cisternas do governo Lula construiu 1,2 milhão de cisternas e 205 mil famílias tinham acesso à tecnologia para produção de alimentos.
Na seca de 2012 a 2018, não houve nenhuma morte e mesmo assim o financiamento sofreu cortes”, explicou Marcia Muniz, representante da ASA, que protagonizou a construção das cisternas sem nenhuma contribuição da iniciativa privada durante os governos petistas, em uma das grandes histórias do movimento popular brasileiro.
Para se ter ideia do significado desta empreitada, Marcia Muniz fez uma apresentação do histórico de secas documentadas no chamado semiárido brasileiro. Desde 1500, o Brasil registrou 72 períodos de seca, sendo 40 anuais e 32 plurianuais, com destaque para as de 1877-79 e de 1979-1983. “Uma história de grandes obras e construção de açudes em grandes fazendas pelos governos, seguidos de planos de emergência para os momentos cíclicos de crise e seca”, contou Marcia. A partir de 1999, com a formação da Articulação do Semiárido na III Conferência das Partes da ONU, conta ela, a história mudou. Como diz o povo da região, aprendeu-se a conviver com a condição local, e não em confronto com seus ciclos naturais. Uma relação que gera saúde antes do aparecimento das mazelas e doenças que, posteriormente, o Estado brasileiro se vê obrigado a remediar.
Em seguida, o debate viveu seu momento mais tocante, a partir do testemunho de Eliete Paraguassu da Convenção, marisqueira da área de mangue da Baía de Todos os Santos, ponto de passagem da indústria petroquímica que cada vez mais polui suas águas e coloca em xeque o sustento de pescadores e marisqueiros como ela.
“Saneamento básico é assunto novo para gente, coisa que a gente achava que era para vocês, acadêmicos, porque só recentemente começamos a lidar com a água suja, por conta da exploração do petróleo. Pecém, Suape são outros exemplos que conhecemos a partir das atividades da Petrobrás. Não bastasse as associações de mães que perderam filhos pro Estado, temos de fazer movimentos de proteção dos danos ambientais deste modelo de desenvolvimento. Precisamos de muita luta para ter acesso a água e direitos básicos que o racismo nos nega”, denunciou Eliete.
Para ela, trata-se da ilustração do chamado racismo ambiental, pois o processo de exploração de recursos naturais passa ao largo das comunidades diretamente afetadas, que veem seus benefícios passando pelo barco que os leva para longe. Isso associado às violências pouco divulgadas por que passam aqueles, como Eliete, que ousam se levantar contra.
“Agora vão cortar a Baía de Todos os Santos para escoar a produção e extração, afetando comunidades pesqueiras. Vão mexer sedimentos que estão há décadas dormentes nas águas sem nenhuma responsabilidade, sem humanidade. Como se os encantados e orixás não fossem nada. Mas são importantes, são a nossa ancestralidade. O mangue é esse portal que nos alimenta. Vocês não têm dimensão dos horrores que estão se dando nessa região. Não dá mais só para pesquisar, é hora de combater, porque as pessoas estão morrendo de doenças não detectadas. A Ilha de Maré está morrendo, não tem uma escola digna, uma UPA, tudo depende de denúncia e luta na Justiça. Mas não somos doutores. Precisamos de vocês. Não vamos conseguir sozinhos. Minha vida e luta hoje são para dizer que…” Ela não consegue continuar, se emociona e a plateia se levanta para aplaudir em pé por cerca de um minuto.
“A gente só vai combater injustiças sociais e ambientais juntos. Desde que fui candidata a vereadora em 2020 vivo foragida, ameaçada de morte”. Eliete é mais uma das Marielles que seguem a existir pelo Brasil. Sua insurgência já causou violentas reações da elite local e ventríloquos midiáticos. “Não tentaram me matar porque temos uma rede de apoio boa”. Uma breve pesquisa na internet é suficiente para mostrar a que se refere.
Bem estar social e privatização; preservação e destruição ambiental; convívio pacífico com o ecossistema e insalubridade a partir de processos externos de superexploração econômica. São essas as dicotomias que se colocaram nesta sala do Centro de Convenções de Salvador. Testemunhos potentes de que o respeito aos ciclos naturais da terra é garantia de saúde – portanto, democracia em sua concretude.
O governo de Lula representa a retomada dos desejos pela construção deste mundo. Mas as lutas são longas, estruturais. A guerra pelo orçamento e a arrogância dos homens de mercado em defender seus fracassos socioeconômicos deixam claro. “No curto prazo, o governo deve retomar o orçamento público, dentro do qual a política de saneamento se inclui. Afinal, bem estar não é só picanha. Dentro do atual contexto, o governo pode capacitar municípios e atualizar o planejamento para um novo momento na política de saneamento”, analisou Leo Heller.
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GABRIEL BRITO
Para enxergar a luta global pela Saúde
Livro lançado no Abrascão reflete sobre os sistemas sanitários de todo o mundo, tensionados após o surgimento da covid. E descreve as lutas sociais para fortalecê-los, em confronto com a visão mercadológica que tenta engoli-los
Uma das riquezas do Congresso da Abrasco, o Abrascão, é reunir pessoas uma vasta diversidade de atores sociais, em debates decisivos para os rumos da Saúde Coletiva no Brasil e no mundo. Essa sinfonia de vozes esteve presente numa mesa realizada nesta terça-feira – Saúde Global nas Sombras da Pandemia de Covid-19 – com a presença de expositores do Brasil, Colômbia, Argentina e Venezuela. Tratava-se do lançamento da 6ª edição do Observatório Global da Saúde, organizado pelo Movimento pela Saúde dos Povos.
Além de seu coordenador global, Román Vega, estiveram presentes os membros do MSP Matheus Falcão, que também faz parte do Cebes, e Oscar Feo, professor da Universidade de Carabobo, da Venezuela. Uniram-se a eles Livia Angeli Silva, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UFBA) e Damián Verzeñassi, diretor do Instituto de Saúde Socioambiental da Faculdade de Ciências Médicas da UNRosario, Argentina. Na variedade de sotaques, um olhar em comum: como fazer com que a Saúde seja um direito à população do Sul Global, reconhecendo seus determinantes sociais e lutando pela igualdade.
O Observatório Global da Saúde é um documento publicado periodicamente desde 2005, cinco anos após a criação do Movimento pela Saúde dos Povos. Reúne textos de autores do mundo inteiro, que analisam os sistemas de saúde e apresentam propostas baseadas no contexto global. Sua primeira edição trazia uma crítica à globalização, que falhava em trazer benefícios à redução das desigualdades, tão prometida. Nas publicações subsequentes, registrava-se a crise do capitalismo e o recrudescimento do neoliberalismo econômico, que continuava por impedir o acesso universal à Saúde e que se recusava a encarar a crise climática que despontava no horizonte. Em 2019, o roteiro estava pronto para a 6ª edição… até que veio a pandemia.
Como não podia deixar de ser, a crise sanitária causada pela covid-19 é o eixo que guia o Observatório Global da Saúde lançado em 2022, cujo subtítulo é “sob a sombra da pandemia”. Román deu o tom da urgência da publicação, ao ponderar que talvez o correto não fosse chamá-lo “observatório”, mas “acionatório”: um neologismo que carrega a necessidade da ação não-espectadora. O coordenador do MSP enxerga o documento como um instrumento que deve ajudar na luta pela saúde em todos os países onde é necessária. Oscar Feo dá um passo além, e afirma que o livro também é uma prova de que os povos já estão firmes na resistência contra o neoliberalismo. Mas frisa o fato de que, dos autores do livro, a maior parte é do Norte Global – e é preciso buscar reverter essa tendência no próximo Observatório.
A participação de Livia na mesa, inclusive saudada por pessoas que estavam assistindo, foi essencial para marcar a posição dos trabalhadores da saúde que estão em maior número: aqueles do campo da Enfermagem. Eles inclusive costumam ser a profissão mais numerosa em muitos países. Mesmo assim, estão em situação mais frágil que a de outras categorias. Livia destaca a desigualdade de condições entre os trabalhadores da saúde e enxerga a enfermagem em posição menos favorecida. Destaca que há condicionantes de gênero, raça e classe nessa disparidade – o que inclusive mostrou-se com mais clareza durante a pandemia. Mulheres, pessoas negras e pobres morreram mais que a média entre os profissionais de saúde. Todos esses são problemas globais que, para Livia, não podem ser enfrentados separadamente da luta pelo fortalecimento dos sistemas de saúde.
Em paralelo ao Observatório Global da Saúde nº 6, também foi lançado o projeto Corpoterritório, uma publicação argentina em formato de infográfico que relaciona problemas à saúde causados ao corpo humano com o extrativismo que prejudica o meio ambiente latino-americano (veja aqui). Apresentado por Damián, mostra como o avanço do desmatamento, da extração do petróleo e da mineração causam problemas não apenas para o meio ambiente como um todo, mas também são responsáveis por doenças que afetam as populações.
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