Há algo de errado com essa forma de julgar: para as mulheres parecem realmente não valer a disponibilidade para o perdão, a prática da ternura, a distinção entre pecado e crime.
IHU
Realmente parece que ainda teremos que esperar para obter do Papa Francisco um olhar de verdadeira compreensão para com as mulheres. Tivemos a prova disso na longa e interessante entrevista concedida em espanhol a Nicole Winfield, correspondente da Associated Press. Os temas abordados são tantos - a morte de Bento XVI, a liberdade de criticar o pontífice, a próxima viagem à África, a guerra na Ucrânia, os abusos, o caso Rupnik - mas entre as declarações do Papa Bergoglio a que foi imediatamente lançada, e que repercutiu no mundo inteiro, é a frase em que o Papa diz que “ser homossexual não é um crime. Não é um crime. Sim, mas é pecado. Bem, primeiro vamos distinguir entre pecado e crime. Mas é pecado também a falta de caridade para com o próximo”, acrescentou. Referindo-se aos bispos de países onde a homossexualidade é considerada um crime, Francisco disse que “até o bispo tem um caminho de conversão”, e acrescentou: “Mas ternura, por favor, ternura, como Deus tem para cada um de nós”. Afirmações totalmente compartilháveis, certamente inspiradas por um sentimento de misericórdia e, de fato, as mídias exultaram com essa nova abertura.
O comentário é de Lucetta Scaraffia, historiadora italiana, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade de Roma La Sapienza, publicado por La Stampa, 26-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mas para as mulheres que abortam, por outro lado, essa distinção entre crime e pecado não vale: de fato, a instituição eclesiástica sanciona severamente os países que descriminalizam o aborto, considerando-o um crime contra a vida. E nesse caso as leis devem punir a pecadora. Mas o próprio Papa denuncia severamente quem faz aborto, porque já disse várias vezes que é como recorrer a um assassino de aluguel para resolver um problema. Precisamente isso seria o aborto para o Papa Francisco. Tanto é assim que a mulher que aborta é excomungada latae sententiae, automaticamente, ou seja, sem necessidade de uma providência que leve em conta a gravidade do caso específico. Mas também quem abusa de um menor é automaticamente excomungado apenas no caso do abuso ocorrer durante a confissão, e se o sacerdote absolver aquele que é considerado seu cúmplice na transgressão do sexto mandamento, que impõe não cometer atos impuros. Caso contrário, é um pecado simples, que por isso mesmo não se recomenda denunciar à justiça civil.
Não, há algo de errado com essa forma de julgar: para as mulheres parecem realmente não valer a disponibilidade para o perdão, a prática da ternura, a distinção entre pecado e crime. E certamente não basta colocar algumas mulheres aqui e ali em posições de prestígio dentro da igreja para mudar uma situação tão injusta e inaceitável. De fato, a misericórdia não deve ser exercida de vez em quando, mas deve se estender a todos.
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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/625848-papa-absolve-homossexuais-e-ignora-mulheres