Quase lá: Um convite ao feminismo de Marianne Weber

Ela foi uma grande pensadora e liderança feminista – muito além de “esposa de Max Weber”. Denunciava a “prisão ao natural” imposta às mulheres e defendia a remuneração do trabalho reprodutivo. Sua obra, no entanto, permanece eclipsada

 

OutrasPalavras

Publicado 27/03/2024 às 19:12 - Atualizado 27/03/2024 às 19:15

 

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Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), com o título A mulher e a cultura moderna nas reflexões de Marianne Weber. Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

Abro esse breve texto com uma anedota levemente trágica. Na biografia que dedicou ao seu companheiro Max Weber, Marianne Weber (1984) conta que, no fim de 1908, esteve com o marido em uma reunião política. A ideia dele era apenas fazer companhia e permanecer em silêncio, mas acabou tomando a palavra duas vezes, falando com “paixão e ímpeto controlados” e impressionando os presentes. Na saída do evento, alguém teria perguntado quem era esse tal Max Weber. Ao que recebeu como resposta: “é o companheiro da Marianne”.

Em seu registro, Marianne Weber ainda comenta: “não é engraçado e ao mesmo tempo grotesco e trágico?”. Seu lamento é em relação ao fato de o companheiro não se mostrar em público com mais frequência, agora que sua saúde permitiria, e sim preferir usar seu tempo no trabalho científico. Para nós, que olhamos desde o presente como estudantes, pesquisadoras e professoras de sociologia, o engraçado, trágico e grotesco da história está no fato de que as coisas tenham se invertido ao longo da institucionalização da ciência. Contemporaneamente, é o nome de Marianne Weber que nos chega como o nome da companheira de Max e não como o de uma intelectual autônoma, com forte atuação na vida pública, política e no movimento feminista de sua época. Parece uma ironia da história, mas é somente mais uma manifestação do seu caráter androcêntrico, bem lá onde esse fenômeno é tão criticado.

 
 

Não sou uma grande especialista em Marianne Weber. Meu interesse por sua obra cresceu recentemente a partir do meu próprio trabalho como professora que frequentemente ministra a disciplina dedicada a Max Weber nos currículos de ciências sociais. Nos limites das possibilidades institucionais, com a intensão de descentrar do ponto de vista do gênero o conteúdo, passei a incluir ao menos um de seus textos em meus cursos e, assim, obtive uma desculpa para conhecer melhor seu trabalho. Essa desculpa acabou se tornando demasiado licenciosa, justamente por conta da grande riqueza temática de seus textos e, por isso, resultou em um aprofundamento nas obras da autora e nos debates em torno dela e na redação de um artigo, a ser publicado em breve (Santos, 2024).

Conto essas dimensões pessoais do meu contato com a obra de Marianne Weber porque de fato passa muito por aí o choque de saber que as ciências sociais conseguiram apagar sua obra dos horizontes sociológicos de uma maneira tão efetiva e fixá-la tão limitadamente na imagem de divulgadora da obra do companheiro.

De maneira quase exclusiva, a extensa obra de Weber (estarei sempre me referindo a ela quando usar esse sobrenome daqui em diante) esteve voltada justamente a pensar o lugar que as mulheres podem ocupar nas sociedades modernas e suas instituições. Enquanto intelectuais importantes da época ainda defendiam uma divisão sexual entre cultura subjetiva e cultura objetiva, Weber defende que, caso o desejassem, as mulheres deveriam atuar também no âmbito do que ela chama de cultura suprapessoal. Sua participação ativa no movimento feminista da época esteve muito dedicada a lutar pelo direito das mulheres de atuarem na política, na universidade e na vida profissional em geral – a sair dos limites das esferas privadas e contribuir também (e de maneira mais direta) com a conformação da vida pública.

Nós ouvimos hoje muitas vozes que querem limitar o desenvolvimento do ser humano feminino à sua determinação especial e conduzir a mulher à prisão ao natural. Para a mulher moderna não há dúvidas de que aquela reivindicação é um equívoco alimentado por diversas fontes, que ela, do mesmo modo que o homem, não pode nem deve regressar do caminho de seu desenvolvimento milenar rumo à cultura e que, por isso, a ela é também devido um direito ao desenvolvimento e efetivação de suas capacidades extrafemininas. Ela deve responsabilizar-se em ser autêntica mulher e autêntico ser humano, e é sua disposição unificar ambas as direções do ser (Weber, 1919a: 139).

Além disso, suas reflexões generificadas também se voltaram ao âmbito doméstico e do cuidado, conforme designação contemporânea. Ela reflete acerca do casamento, por exemplo, mobilizando o binômio autoridade e autonomia e cobrando que o pensamento de grandes autores iluministas como Kant e Fichte seja avaliado de maneira generificada, pois “também é imoral para a mulher sujeitar a própria consciência ao desejo alheio” (Weber, 1919b: 72). Em termos kantianos, ela defende que o imperativo da própria consciência não pode ser submetido ao imperativo da consciência do marido. Isso significa que ambos deveriam compartilhar as decisões a respeito da vida familiar. Pensando nas dimensões econômicas do patriarcado, Weber fez defesa enfática de que as mulheres tivessem direito a um percentual do salário dos maridos exclusivo para suas próprias necessidades, quando estivessem impossibilitadas de trabalhar fora por causa do cuidado com os filhos.

Seus debates acerca dessas situações de desigualdade de gênero cotidianas são moldados por reflexões teórico-filosóficas mais abstratas. E aqui lembro que Weber não teve uma formação universitária formal, embora tenha frequentado alguns cursos. De todo modo, o que parece decisivo em suas reflexões é sua atuação no movimento de mulheres de sua época, também como liderança – entre outras coisas, Marianne Weber presidiu a Liga das Associações Alemãs de Mulheres, que foi um meio muito importante para a “primeira onda feminista”, ou para o “antigo feminismo” (como se diz em contexto alemão) e reunia diversas organizações espalhadas pela Alemanha. É a esse movimento coletivo que Weber atribui as mudanças que passaram a ocorrer na existência das mulheres, como sugere a passagem a seguir:

Que, contrariamente a toda tradição, exista há algumas décadas um “movimento” criado, suportado e conduzido apenas por mulheres para elevação de seu sexo e que se afirma contra um mundo de resistências internas sem qualquer meio de poder externo, é apenas um dos rebentos manifestados por essas forças antes ocultas (Weber, 1919c: 128).

Weber esteve intensamente envolvida nesse movimento, participando de discussões diversas, escrevendo inúmeros textos, promovendo a inserção das mulheres na academia, atuando politicamente como deputada etc. Sua obra abarca 9 livros e quase uma centena de artigos. Faço nesse texto apenas algumas poucas referências aos seus debates para deixar uma breve ideia de suas reflexões, que são certamente muito ricas, mesmo representando uma posição feminista específica dentre muitas outras disponíveis em seu tempo. De todo modo, a ideia é apontar, ainda que introdutoriamente, o fato de que, além de ter contribuído de maneira definitiva para que a obra de Max Weber se tornasse um referencial canônico para as ciências sociais, Weber produziu com autonomia uma obra própria, que ainda carece de reconhecimento por parte da história das ideias. Salvo eventual engano, de sua autoria temos disponível no Brasil e em português até o momento apenas a biografia de Max Weber (Weber, 2003), o texto “Autoridade e autonomia no casamento” (Weber, 2022) e o artigo “Esposa e mãe no desenvolvimento jurídico: excertos” (Zanon et al, 2021).

Ironicamente, quando confrontamos seus textos aos de Max Weber, é como se fosse possível perceber, em negativo, que o período de dominação racional-legal não pode ser compreendido de maneira independente da divisão sexual que permeia todas as nossas instituições sociais. Essa não era, certamente, a intensão de Marianne Weber, mas tal perspectiva acaba surgindo como “consequência[s] imprevista[s] e mesmo indesejada[s]” (Weber, 2004: 81) de suas reflexões generificadas. Faço esse apontamento, embora não seja possível desenvolvê-lo de maneira apropriada nos limites desse texto, pois ele contribui para a constatação de como a incorporação de mais vozes às bases clássicas da sociologia pode afinar seu repertório. Por muito tempo, a ciência abriu mão desses contrapontos aos pressupostos pretensamente universais que a configuram. Ainda de maneira muito tímida, os debates contemporâneos procuram escovar a contrapelo experiências divergentes, sejam do ponto de vista do gênero, étnico-racial, geográfico ou interseccionando mais de uma dessas dimensões.

 
 

No caso específico de Weber, mais uma vez percebemos que caminham de mãos dadas os processos de conformação social das mais diversas ordens – incluindo a esfera científica – e o sexismo. Se quiser fazer justiça a si mesma como ciência crítica, a sociologia precisa manter-se alerta para reconhecer esses processos e revertê-los. Marianne Weber é um caso paradigmático justamente porque seu nome sempre esteve presente nos cursos de ciências sociais, mas somente como o da esposa que foi decisiva para levar a obra do marido à posteridade. Sabemos bem que a configuração dos nomes da sociologia clássica atual não é isenta de relações de poder, por isso é muito importante o movimento de recuperação de autoras e autores esquecidos que observamos contemporaneamente.

Para concluir, em consonância com o dia de comemoração das lutas feministas representado pelo 8 de março, sublinho novamente o fato de que grande parte das contribuições de Marianne Weber foi feita em estreito contato com vertentes do movimento feminista. Em um de seus textos, ela afirma que à “nova mulher” buscaria combinar esforços de autoconfiguração a esforços de configuração do mundo. Weber sustenta que as mulheres o fazem “não apenas como singulares, não apenas para si mesmas, mas em comunidade e, na verdade, em comunidade organizada com muitas companheiras de sexo com a mesma disposição” (Weber, 1919a: 135). De certo modo, o legado e também a trajetória intelectual de Marianne Weber testemunham a importância do envolvimento da autora com o pensamento feminista para a configuração de uma visão específica do mundo social. Muito mais do que “a companheira do Max” que costuma ser apresentada nos cursos de ciências sociais, ela se sustenta sobre pés intelectuais autônomos, mas de algum modo leva consigo a arena de politização conformada pela “comunidade organizada” de mulheres de seu tempo.



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