Quase lá: Feminismo transfronteiriço por outro futuro

Marcha Notícias faz cobertura latina e feminista das eleições no Brasil. Há menos de uma semana do que podem ser as eleições mais importantes da história recente do Brasil, desembarcaram em São Paulo um grupo de nove ativistas argentinas para fazer uma cobertura latina e feminista do processo eleitoral brasileiro, a #NosotresSim, e trocar experiências com os movimentos sociais locais.

 

 

Vanessa Monteiro Cunha, do Rio de Janeiro (RJ)

 

Há menos de uma semana do que podem ser as eleições mais importantes da história recente do Brasil, desembarcaram em São Paulo um grupo de nove ativistas argentinas para fazer uma cobertura latina e feminista do processo eleitoral brasileiro, a #NosotresSim, e trocar experiências com os movimentos sociais locais.

A campanha #NosotresSim é organizada pela Marcha Notícias, uma mídia independente e autogestionada com base na Argentina, que publica há dez anos entrevistas e notícias sobre protagonismos sociais, processos eleitorais e análises de contextos conjunturais na América Latina e Caribe. A Marcha acompanhou distintos processos de mobilização nos últimos anos em Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guatemala e – compreendendo as eleições brasileiras como um momento chave para o futuro de nossa região – agora também no Brasil.

Representantes da candidatura estadual da Coletiva Feminista do PSOL participaram de uma conversa com as ativistas da Marcha, em passagem no Rio de Janeiro, sobre as lições da luta pelo aborto legal, seguro e gratuito na Argentina, as eleições no Brasil, os próximos para o movimento feminista na América Latina, entre outros temas que compartilhamos a seguir.

Lições da luta pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito

A maré verde contagiou ativistas feministas de todo o mundo e conquistou, em dezembro de 2020, a legalização do aborto na Argentina, se colocando na vanguarda do movimento feminista na América Latina.

Laura Salomé, jornalista, da Marcha e da Campanha Nacional Pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito atuou na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres por mais de dez anos até a conquista da nova legislação e nos relatou um pouco de sua experiencia. A campanha organizou aproximadamente 700 organizações feministas, entre movimentos sociais, territoriais e barriais, organizações políticas entre outras. Na Argentina, ao contrário do corporativismo que marca grande parte da prática sindical no Brasil, as centrais sindicais tiveram importante participação na luta feminista e desempenharam papel chave para a organização dos atos de rua.

A Campanha Nacional Pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito funcionou como uma espécie de “guarda-chuva”, abarcando estes distintos setores sob um acordo mínimo: modificar o código penal em prol da descriminalização do aborto. Ainda hoje, o movimento mantém sua organicidade, funcionando com uma Plenária Nacional anual composta por representantes regionais e quatro comissões: comunicação, territorial, articulação nacional e litígio parlamentar.

Atualmente, um grande desafio tem sido avançar em representação política para o movimento feminista. Apesar do alto nível de organização do movimento de mulheres, carece ainda a construção de uma plataforma programática comum que permita com que a força que se expressou nas ruas se expresse também em representantes no parlamento, onde é esperada uma contraofensiva legal. Neste sentido, as eleições brasileiras e dos demais países da América Latina, que não fogem a polarização da extrema-direita e a luta das mulheres, negras/os/es, indígenas e LGBTIA+, são também fonte de interesse e aprendizados para se pensar os próximos passos da luta em defesa da vida, sobretudo no contexto de crise mundial na qual estamos inseridas.

A pressão de grupos religiosos e conservadores para manter a criminalização do aborto esteve presente com força ao longo de todo o processo. Segundo a jornalista feminista Mariángeles Guerrero até 10 anos atrás falar sobre aborto na Argentina era um enorme tabu. Assim, contou para o sucesso do movimento os acertos táticos de comunicação, o contexto político favorável com a explosão do feminismo em 2015 (bem como sua reverberação nos anos seguintes) e a estratégia da campanha em apostar nas ruas como fator decisivo para a vitória.

“Foi muito emocionante, um grande abraço para o coletivo. Quando viamos alguém com o pañuelo verde nos sentíamos seguros”, relatou Julianite, filmmaker e companheire trans não binárie, sobre o impacto do movimento feminista, desde o Ni Una A Menos, para as pessoas LGBTIA+. A avaliação é que o avanço do aborto legal deu impulso também as demais reivindicações ligadas a questão de genero no país, como o reconhecimento de pessoas não binárias no registro do documento nacional de identidade (DNI). A medida foi feita a partir do decreto presidencial, aprovado em julho de 2021, e se enquadra na Lei de Identidade de Gênero, vigente no país desde 2012. Uma grande conquista, sendo o primeiro país da região latino-americana a reconhecer uma legislação para a população não binária.

Disputas e sentidos do #EleNão

O #EleNão, em 2018, foi uma poderosa unidade de ação do movimento de mulheres, sob a liderança e protagonismo dos movimentos feministas de esquerda. Estima-se que esta tenha sido a maior manifestação de mulheres da história do Brasil e teve como centro a disputa eleitoral contra Bolsonaro. Vale destacar que o #EleNão esteve inserido no contexto do #ViraVoto, um rico e espontâneo processo de disputa sobre os rumos das eleições a partir da disputa feita nas redes e nos territórios por parte do ativismo para reverter os votos em Bolsonaro. Em todo o país, o clima das ruas era de mobilização – descentralizada e de base – com banquinhas instaladas nos bairros e milhares de pessoas, voluntariamente, se dispondo a conversar com eleitores nas ruas e convencê-los de por que votar contra Bolsonaro.

Contradizendo aqueles que julgaram o #EleNão como um processo que “ajudou o bolsonarismo”, o que vemos atualmente é uma disputa pelo nome, estética e perfil do movimento que simbolizou o antagonismo direto com a extrema-direita no Brasil.

Nestas eleições, as mulheres se tornaram alvo prioritário das campanhas de todos os espectros políticos, uma vez que se mostraram como um setor decisivo para derrotar eleitoralmente Bolsonaro. O presidente neofascista segue seu discurso de ódio contra as mulheres, por outro lado – contraditoriamente – a principal candidatura apoiada pelas organizações de esquerda e setores progressistas da sociedade, a chapa Lula-Alckmin, não só não representa em seu perfil como não vocalizou em seu programa as principais bandeiras históricas dos setores oprimidos. Assim, permitiu-se uma lacuna por onde as candidaturas de Tebet e Thronicke, representantes da direita tradicional, buscaram capitalizar o eleitorado feminino. Não à toa, Simone Tebet passou a utilizar em seu slogan de campanha “ela sim, eles não”.

A representação de mulheres ainda é minoritária na política institucional, mesmo de mulheres brancas. Porém, quando avaliamos a subrepresentação do gênero combinada com os recortes de raça e sexualidade temos um panorama do quanto é preciso avançar para chegarmos próximos aos nossos países vizinhos. O primeiro debate presidencial de 2022 explicitou também a ausência das questões de raça e sexualidade entre todos os presidenciáveis, como se estes não fossem temas-chave da candidatura de Bolsonaro e dos demais candidatos conservadores. A ausência do debate de gênero em uma perspectiva classista – onde as demandas de combate a fome, geração de trabalho e renda e fortalecimento dos serviços públicos com um programa antiausteridade urgem – demonstram ainda a insuficiência de respostas na disputa presidencial frente aos reais problemas das mulheres trabalhadoras, negras e periféricas.

Por outro lado, a perspectiva de avanço na representação de mulheres, negres, indígenas e LGBTIA+ entre os proporcionais nos permitem ser otimistas quanto aos avanços na consciência e uma disputa em curso na sociedade, onde já não pode ser naturalizada a hegemonia na política institucional daqueles que são herdeiros do poder. Assim, o número de candidaturas de mulheres e pessoas negras nestas eleições é recorde, sendo a maior parte delas ligadas aos partidos de esquerda. Vale destacar também o ineditismo da campanha impulsionada pela APIB por uma bancada indígena no Congresso, apoiando 30 candidaturas indígenas em 20 estados, representando 45 povos. Outro movimento em expansão é o das candidaturas coletivas, pautando uma nova forma de fazer política, combatendo o personalismo e representando os movimentos sociais aos quais se ligam seus membros. Em todas estas frentes, o PSOL tem cumprido papel de vanguarda, mantendo sua coerência como alternativa socialista no Brasil.

Das eleições rumo a aliança feminista antifascista

Há muito em jogo nestas eleições, que terão seu primeiro turno no próximo domingo, dia 2. Após quatro anos do governo de extrema-direita, que conduziu o país sob a pandemia para um genocídio em massa contra pobres, negros e indígenas, virar esta página de nossa história será decisivo para a América Latina. A vitória da candidatura Lula representa um primeiro passo para o fim do pesadelo bolsonarista e por isso, nos próximos três dias, não há nada mais importante do que elegê-lo. Uma vitória ainda em primeiro turno, o que é possível, abrirá ainda mais os caminhos para a derrota do bolsonarismo e, neste sentido, todo apoio e solidariedade de classe internacional são valiosos.

As eleições na Itália, com a vitória de Georgia Meloni, são um sinal de alerta para a o movimento feminista mundial. A jovem se tornou primeira-ministra do primeiro governo de extrema direita desde Mussolini, com um discurso abertamente xenófobo, racista e antiLGBTIA+ e é a prova de que para defender a vida das mulheres será preciso coerencia com um programa feminista e anticapitalista, para os 99%, em contraponto a perspectiva liberal de representatividade. Nossa luta continuará após as eleições e, como disse Maru Dobleu, jornalista da Marcha “Não podemos sair das ruas (…) porque a crise, a fome, o desemprego e o empobrecimento são muito grandes”.

A luta feminista e antifascista transfronteiriça deve ser um compromisso coletivo para que as conquistas eleitorais avancem para a derrota efetiva dessas alternativas que ameaçam nossa existência. O próximo período exigirá coragem para não deixarmos de disputar nossas ideias e programa; coragem para abandonar a postura reativa que parte do que os fascistas impõem ao debate; coragem para seguir nas ruas e arrancar o direito à vida. Com a solidariedade internacional, venceremos!

Apoie a mídia independente e acompanhe a cobertura das eleições brasileiras, em uma perspectiva latina e feminista, em: https://marcha.org.ar/

Fora Bolsonaro! Lula no 1º turno!

Viva o feminismo afro-latinoamericano!

 

fonte: https://esquerdaonline.com.br/2022/09/30/feminismo-transfronteirico-por-outro-futuro/

 


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