Quase lá: Por que é preciso repolitizar a Economia

 

Monica de Bolle: Por trás da visão segundo a qual ela é uma ciência “técnica”, que trata “da escassez”, há um truque ideológico. É o de ocultar as disputas sociais pela riqueza coletiva e, ao fazê-lo, tratar como “naturais” as piores desigualdades.

O artigo é da economista Monica de Bolle, pesquisadora do Instituto Peterson de Economia Internacional e professora da Universidade Johns Hopkins, em Washington, publicado em seu blog e reproduzido por Outras Palavras, 12-01-2023. 

Eis o artigo. 

Qual é o objeto de estudo da economia e porque a resposta é tão importante para os rumos do Brasil? Comecemos pelo objeto de estudo. Pregam os livros-básicos de economia que a disciplina tem como foco a análise da escassez, ou, dito de outro modo, em um mundo em que há restrições de todo tipo — orçamentárias, de acesso, de oferta — a economia busca revelar os mecanismos que levam às alocações mais eficientes, guardadas as inescapáveis limitações.

Essa forma de orientar o olhar sobre a ciência econômica é relativamente “nova”, tendo vindo à tona mais ou menos em meados do Século XX, durante o período do pós-guerra. Não por acaso, foi nessa época que a disciplina se distanciou da política e adquiriu ares de ciência exata com a matematização crescente e o desenvolvimento de variadas técnicas quantitativas de análise. Desde então, a economia, parte integrante das ciências sociais, tendeu a se enxergar como uma ciência mais científica do que as demais. Afinal, o arsenal matemático e a crescente tecnocracia que passou a envolvê-la eram vistos como superiores às metodologias utilizadas por outras áreas das ciências sociais. Essa redefinição da economia foi possibilitada pela ótica da escassez: a partir do momento em que a economia é entendida como o estudo das privações e das restrições, tudo passa a ser uma questão de demanda e de oferta. O que determina a demanda? O que determina a oferta? Identificados esses fatores de ordem técnica, pouco sobra para a política, e, sobretudo, para a ordenação dos direitos conferidos pela Constituição às pessoas que integram a economia.

economia como ciência da escassez é o que permite a soberania dos argumentos tecnocráticos sobre gasto e inflação, é o que dá o espaço para que medidas equivocadas como o Teto de Gastos instituído em 2016 sejam articuladas e postas em prática. Pouco importa se são ou não compatíveis com a Constituição. O que vale é que estejam bem concatenadas com as noções de demanda e oferta e com seus determinantes. Essa forma de olhar a economia, portanto, a afasta da política, da vida das pessoas, dos direitos que possuem como cidadãos. Não espanta que, em última análise, essa forma de olhar a economia gere resultados como o rebaixamento normativo da Constituição Federal, como vimos acontecer com o Teto de Gastos e suas sucessivas alterações ao longo desses últimos seis anos.

Mas, a economia como ciência da escassez está com os dias contados ao menos desde a crise financeira global de 2008. De lá para cá, vimos ruir os pilares da macroeconomia conforme a entendíamos e nada ainda conseguimos pôr no lugar. Testemunhamos a volta do debate sobre o aumento da desigualdade e da pobreza, além das convulsões políticas geradas por essas mazelas: a ascensão da ultradireita mundo afora, a vitória de líderes autoritários, os questionamentos sobre a Democracia, a insatisfação popular, o nacionalismo em suas piores vertentes. O Brasil não escapou dessas tendências, como bem sabemos após 4 anos de intenso sofrimento. Direitos foram pisoteados, vidas foram descartadas, instituições foram abaladas. A tecnocracia em excesso resultante dessa visão aparentemente inócua a respeito da economia pavimentou o caminho para os “conservadores nos costumes” e os “liberais na economia”. Os liberais na economia, sobretudo os mais extremados, se orientam pelos preceitos da escassez — da demanda e da oferta. Não há lugar para a Constituição naquilo que propõem. Portanto, os defensores de um Estado diferente daquele que foi pactuado em 1988 inadvertidamente abrem os caminhos para os anti-democratas.

Como deslocar esse olhar pernicioso da economia? A disciplina, na verdade, jamais tratou simplesmente da escassez, dos fatores técnicos que determinam as restrições. A economia nasceu há séculos da economia política, e a economia política sempre tratou de estudar os conflitos distributivos existentes em qualquer sociedade, e sob qualquer regime político. Os conflitos distributivos são a essência do nosso convívio em sociedade. Como distribuir os recursos públicos? Quem deve deles mais se beneficiar? Essas são perguntas fundamentais da economia que tratam, sim, de escassez. Contudo, a tratam de forma indireta. A questão é: os recursos são limitados. Logo, quem deve recebê-los? E o quê garante tal ordenação de prioridades, qualquer que seja? Definida dessa forma, a economia é, também, política, por óbvio. Vista dessa maneira, a economia é indissociável da Constituição. A resposta para “o quê garante a ordenação de prioridades” é “a Constituição Federal”, a Lei das leis que define os direitos fundamentais e aponta os caminhos para a resolução dos conflitos distributivos. Entendida assim, a economia não haverá de gerar políticas econômicas inconstitucionais como o Teto de Gastos, e menos ainda pavimentará a ascensão do autoritarismo. O motivo é simples: a economia desse modo definida não é algo apartado da Constituição, mas por ela legitimado.

Ao longo dos próximos meses o Brasil nos oferece uma oportunidade única de pôr a discussão econômica dentro dos marcos constitucionais a partir do entendimento aprofundado de nossos conflitos distributivos. Fazer o esforço de reconfigurar o que a economia de fato representa e tornar esse esforço o centro do debate, extirpando de vez a tecnocracia que anima fiscalistas e desgasta a população, é um dever civilizatório. Ou melhor, é o dever civilizatório. Só assim seremos capazes de evitar o retorno de uma ultradireita anti-democrática, ainda que repaginada, em 2026.

Leia mais


Matérias Publicadas por Data

Artigos do CFEMEA

Coloque seu email em nossa lista

lia zanotta4
CLIQUE E LEIA:

Lia Zanotta

A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?

ivone gebara religiosas pelos direitos

Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

Violência contra as mulheres em dados

Cfemea Perfil Parlamentar

Logomarca NPNM

Direitos Sexuais e Reprodutivos

logo ulf4

Cfemea Perfil Parlamentar

Informe sobre o monitoramento do Congresso Nacional maio-junho 2023

legalizar aborto

...