Quase lá: Precariado: a esquerda permanece à distância

Com o veloz desmanche de direitos, a ultradireita promete “eliminar o peso do Estado”– e conquista parte dos trabalhadores. Esquerda precisa disputá-los, mas está atrasada às mudanças laborais — e sequer apresenta um projeto de social-democracia

 

OUTRASPALAVRAS

Publicado 26/06/2023 às 19:34 

Foto: Tânia Regô/Agência Brasil

Título original: O mundo do trabalho no século XXI

Vivemos uma mudança de período histórico em escala global. O acirramento dos conflitos sociais a partir de 2008 não dizem respeito apenas à crise mas também à profunda reestruturação produtiva provocada pelos avanços tecnológicos e à emergência da China como nova potencia global rivalizando com os EUA.

O posicionamento da China como principal plataforma industrial do mundo e o deslocamento de parte das indústrias do Ocidente para a Ásia, acompanhada da crescente robotização da produção, extinguiram empregos industriais de melhor remuneração em larga escala na Europa, EUA e em polos industriais da América Latina. Milhões de operários perderam seus empregos, seja por verem suas fabricas deslocadas para a Ásia, seja pela reestruturação produtiva que tornou suas funções obsoletas. Este é um processo irreversível com fortes consequências sociais e políticas. Para gerações de trabalhadores que pensavam ter saberes e profissões garantidas para toda a vida, o futuro carrega uma enorme insegurança. Suas referências e seu mundo desmoronaram. Revolução digital, automação ou segunda idade da máquina são alguns nomes dados ao processo. Ainda em estágios incipientes, novos instrumentos da produção material escapam à lógica industrial e geram resultados ao mesmo tempo promissores e devastadores.

A expansão tecnológica prevista para os próximos anos inclui um crescimento exponencial da capacidade de armazenar e processar gigantescas bases de dados. Não por acaso, rankings recentes das empresas mais valiosas do mundo são encabeçados por empresas movidas por dados gerados pelos usuários. Para além de alimentar a indústria mais lucrativa da atualidade, dados, algoritmos, suas ciências, tecnologias, usos e aplicações oferecem possibilidades para melhorar a vida pública e privada, ao mesmo tempo que implicam riscos substanciais. A nova ordem levanta desafios éticos sobre os quais avançamos a passos lentos, enquanto seus potenciais mercadológicos vêm sendo explorados a toque de caixa. Neste contexto, prevalece o modelo batizado de “winners take all” no qual as gigantes tecnológicas não apenas dominam o mercado, mas eliminam as possibilidades de competição. Se este processo não for revertido, as corporações moldarão em breve as necessidades e desejos de consumo dos trabalhadores.

A crise de 2008, cujas reverberações se fazem sentir até agora, foi catalisadora das insatisfações. Na Europa, o crescimento da extrema direita é baseado na promessa da volta a um passado mítico. Ao localizar no estrangeiro a culpa da decadência, seja na figura dos imigrantes, seja nas instituições multilaterais, ela consegue ganhar base social nos antigos cinturões industriais. Nos EUA, Trump vence a eleição melhorando significativamente seu desempenho nos velhos estados industriais, tradicional bastião Democrata. Na Inglaterra, o Brexit vence o plebiscito manipulando também a ideia abstrata de volta a um passado glorioso que estaria sendo destruído pelos imigrantes e pela União Europeia.

Os desdobramentos até o momento da crise econômica sugerem que ainda estamos longe de sua superação. Se, no século XX, crises foram seguidas pela expansão de direitos civis e ganhos econômicos, desde 2008 assistimos a um processo veloz de desmanche de redes de proteção social. As novas gerações que ingressam no mercado de trabalho são contratadas em condições que não lhes dão acesso a direitos trabalhistas já conquistados. A hipótese de uma futura recuperação econômica que seja revertida em empregos é improvável, já que uma parcela considerável destes deve ser substituída por máquinas e mecanismos de inteligência artificial. É previsto que as novas ocupações a serem criadas sejam numericamente inferiores aos postos de trabalho destruídos e que elas exijam qualificações ainda inexistentes.

O impacto da reestruturação produtiva se estende ao setor de serviços. Nele, a automação possibilita eliminar milhões de empregos através da terceirização do trabalho para os usuários, agora de forma não remunerada. Movimentações bancárias feitas em aplicativo de celular eliminam milhares de empregos e transferem para os correntistas o trabalho mais simplificado. O ensino à distância reduz a demanda por professores, plataformas online de vendas eliminam gradualmente o comércio de rua, serviços médicos passam a ser automatizados e disponibilizados em aplicativos. É este o cenário que temos pela frente. Mesmo o ícone deste processo, o Uber, na forma como existe hoje também tem seus dias contados, uma vez que deve ser substituído por carros sem motorista.

Do ponto de vista histórico, a novidade neste processo é a velocidade crescente das transformações – e isto faz toda a diferença. Trabalho formal é extinto em massa e milhões de trabalhadores caem na informalidade, no empreendedorismo do desespero, o que produz também consequências políticas. Os aparatos construídos pela esquerda a partir da Revolução Industrial, em particular os sindicatos, perdem capacidade de diálogo com este enorme contingente das classes trabalhadoras.

A “flexibilização” das relações de trabalho, o enfraquecimento das organizações sindicais e as novas tecnologias digitais têm produzido novas formas de ação coletivas descentralizadas. A exemplo da greve dos caminhoneiros ocorrida em 2018, novas formas de organização são marcadas por horizontalidade e ambiguidades, desafiando assim as hierarquias da luta política tradicional. Enquanto na sociedade industrial operários se concentravam nas fábricas numa lógica que favorecia a solidariedade, a sociedade digital estimula a contratação personalizada dos serviços produzindo, por consequência, o isolamento dos trabalhadores e uma força de trabalho marcada pela heterogeneidade.

A característica autônoma e individual do trabalho precário, a ausência de vínculos coletivos e de compartilhamento dos mesmos espaços dificultam a formação da consciência de classe, assim como as formas de inserção no processo produtivo cada vez mais variadas e o acesso à renda cada vez mais diferenciado. O sentido de pertencimento a grupo sociais, no entanto, continua presente. No vácuo dos aparatos organizados pela lógica de classe, crescem as igrejas evangélicas e nacionalismo, mas também crescem os movimentos feministas, negros, de defesa de direitos dos povos indígenas e da população LGBTQ+.

O que está em disputa hoje é a apropriação dos enormes ganhos de produtividade gerados pela tecnologia. Estes ganhos de produtividade têm sido apropriados de forma extremamente desigual, concentrando renda no topo e pauperizando setores médios. Este é o cenário de radicalização do conflito. O espaço para os arranjos negociados entre a direita liberal e a social democracia terminou. A ascensão de uma extrema direita neofascista é um fato. A constituição de uma esquerda capaz de disputar o precariado e se constituir em alternativa de poder é uma possibilidade.


Matérias Publicadas por Data

Artigos do CFEMEA

Coloque seu email em nossa lista

lia zanotta4
CLIQUE E LEIA:

Lia Zanotta

A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?

ivone gebara religiosas pelos direitos

Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

Violência contra as mulheres em dados

Cfemea Perfil Parlamentar

Logomarca NPNM

Direitos Sexuais e Reprodutivos

logo ulf4

Cfemea Perfil Parlamentar

Informe sobre o monitoramento do Congresso Nacional maio-junho 2023

legalizar aborto

...