Eva Blay - Durante muitos anos louvamos a família ocultando o que ocorria em muitas delas. Foi difícil romper esta visão romântica e revelar que é justamente dentro de muitas delas que ocorrem violências contra meninas e mulheres.
Por Eva Alterman Blay, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
Durante muitos anos louvamos a família ocultando o que ocorria em muitas delas. Foi difícil romper esta visão romântica e revelar que é justamente dentro de muitas delas que ocorrem violências contra meninas e mulheres. E também contra meninos. No momento em que um novo governo se instala em São Paulo e propõe uma Secretaria da Mulher, é preciso lembrar alguns dados: em 2021 ocorreram um estupro a cada dez minutos e um feminicídio a cada sete horas. Foram 56.098 estupros incluindo crianças desde a menor idade. Houve 1.319 mulheres vítimas de feminicídio, conforme dados coletados pelo Forum Brasileiro de Segurança Pública. Esses dados podem ser detalhadamente analisados nas páginas do Instituto Patricia Galvão.
O triste diagnóstico é resultado de imenso e extraordinário trabalho de mulheres e homens feministas que se empenham em denunciar e encontrar soluções para que todas as pessoas, independentemente de sua condição de gênero, cor, idade sejam respeitadas. Ao indicar a vereadora Sonaira Fernades para dirigir a Secretaria da Mulher, o governador Tarcísio de Freitas provavelmente desconhece alguns dados que a socióloga e advogada Adriana Gragnani lembrou e que transcrevo a seguir:
40 anos de reconhecimento!!!
Ô abre alas que eu quero passar!” cantou Chiquinha Gonzaga em 1899. E assim fizemos, nós, feministas de variados contornos ideológicos (sim, uma frente política era possível), abrindo espaços, exigindo, na primeira eleição para governadores, ainda na vigência da ditadura militar, a criação do Conselho Estadual da Condição Feminina.
Não éramos endemoniadas! Éramos movidas, à época, pela luta que empreendíamos, mais acentuadamente a partir de 1975, com a instituição pela ONU do Dia Internacional da Mulher. A ONU não expressou a vontade de satanás. Os povos lá reunidos compreenderam que a situação da mulher no mundo carecia de políticas e ações concretas para superar a desigualdade, reconhecendo a população feminina como cidadãs do mundo. Havia a constatação de que as diferenças biológicas existentes entre mulheres e homens eram utilizadas, em diversos campos da vida social, negativamente, em desfavor da população feminina mundial. Era a aplicação de um conceito relacional, o conceito de gênero.
E assim, pelo Decreto 20.892, no dia 4 de abril de 1983 o governador eleito, Franco Montoro, criou o Conselho Estadual Feminino da Condição Feminina, para que as mulheres (acadêmicas, de partidor políticos, integrantes da sociedade civil) pudessem formular políticas de fomento à igualdade para o Estado de São Paulo.
Não foi obra do inferno! Sua primeira presidenta, a socióloga, professora Emérita da USP, Eva Blay, instituiu os eixos de trabalho, após discussão:
1.combate à violência praticada contra a mulher,
2.situação das trabalhadoras no campo e na cidade,
3. creche para a mulher trabalhadora, evoluindo para a compreensão de que creche era direito da criança, opção das famílias e dever do Estado,
4. saúde da mulher e
5. mulher negra.Graças às políticas traçadas pelo Conselho foi criada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher. Foi em razão desse trabalho, no qual pela primeira vez o Estado reconheceu as desigualdades de várias ordens que atingiam as mulheres, que passados 40 anos vemos, no governo estadual, em 2023, a criação da Secretaria de Políticas para Mulheres.
Todavia, pelas declarações da secretaria nomeada Sonaira Fernades, nota-se que o governador eleito, Tarcísio de Freitas, não se guiou pelo espírito de Franco Montoro e das mulheres que o pressionaram na campanha de 1982 e que não eram demônios e sim feministas. Não começou bem a secretária ao afirmar sua admiração por Damares Alves, atual senadora e ex-ministra da Mulher e da Família de um governo que terminou nas trevas. Damares que disse que menino vestia azul e menina rosa; uma mulher que foi no rastro do masculino ao afirmar com grande equívoco e ignorância a existência de uma ideologia de gênero. Não conhece a história e cultiva preconceitos ao afirmar que “Feminismo é o grande genocida do nosso tempo”, “O feminismo é sucursal do inferno. Quem se diz feminista e cristã está servindo ao Satanás e seus demônios”.
Espero e sugiro que a secretária Sonaira respeite e estude o legado deixado pelas feministas, pois, foram estas que lhe abriram o caminho há 40 anos, ainda na ditadura militar.
Adriana Gragnani
fonte: https://jornal.usp.br/articulistas/eva-alterman-blay/antifeminismo-familia-e-ignorancia/