Apenas 21 das 82 unidades em áreas rurais do DF incluem a história e a cultura afros em suas propostas pedagógicas. Nas regiões urbanas, a Secretaria de Educação tem levantamento parcial, que aponta a mesma realidade
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Após 20 anos da criação da Lei nº 10.639, de 2003, que obriga o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana no país, a maioria das escolas da zona rural do Distrito Federal não inclui essa temática em seus projetos político-pedagógicos. Dados da Secretaria de Educação (SEEDF), obtidos pelo Correio por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), mostram que apenas 21 das 82 unidades de ensino fora do meio urbano trabalham esse tipo de conteúdo — cerca de 25% do total.
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"Com raça e determinação/ e brilho nos olhos escuros/ lutou contra o racismo/ e pelos seus filhos imaturos/ essa brasileira guerreira/ sempre nos encheu de orgulho". Esses versos são um trecho do Cordel Consciente, criado pela estudante Geovana Cristina Costa com a colega Kamylla Vitória, ambas do 8º ano do Centro Educacional (CED) Incra 8, de Brazlândia. A poesia, exposta na escola em 18 de novembro, um sábado letivo, é uma homenagem a Elza Soares, cantora que inspira Geovana.
O projeto da escola fez a jovem se identificar mais ainda como negra e entender como foi a sobrevivência dos antepassados. "Por tudo que fizeram antes para estarmos aqui hoje, por mais que tenha sido uma história sangrenta, é muito importante sabermos disso", reforça Geovana.
"Após as aulas, os estudantes começam a se perceber dentro dessa cultura, identificar-se um pouco mais e ver beleza no cabelo e na cor da pele", contextualiza o professor de história do CED do Incra 8 Raphael Farias. As atividades são desenvolvidas por meio de desenhos, cordéis, roupas e murais feitos pelos alunos. "É uma valorização dessa população que, em 400 anos, foi sendo invisibilizada e simbolicamente retirada da cultura brasileira", avalia o educador.
O sentimento foi o mesmo para João Paulo Freire Rodrigues, 14, do 8º ano, um dos estudantes que escolheu frases e expressões, como "forte" e "batalhador", para expor no mural da escola. "Este ano, a minha turma entrou tão intensamente a ponto de sentir como se fôssemos nós nas histórias", conta. Davi Mendes, 13, pretende levar os ensinamentos para a vida toda, pois entende que os negros não devem ter menos oportunidades de emprego, por exemplo. "Muita gente ainda tem esse ódio de racismo, mas todo negro deve ser respeitado e merece ter um belo futuro, como o meu colega João", opina Davi.
Currículo
As escolas que englobam o levantamento são públicas, exceto uma particular conveniada à SEEDF. A pasta explica que todas são orientadas a adotarem os eixos transversais do Currículo em Movimento do DF: educação para a diversidade, cidadania, educação e direitos humanos.
Patrícia Melo, diretora de Serviços de Apoio à Aprendizagem, Direitos Humanos e Diversidade da Subsecretaria de Educação Inclusiva e Integral (Subin), da SEEDF, diz que o fato de uma unidade não ter um projeto político-pedagógico específico para educação antirracista não significa que não adote a temática. "Os eixos transversais permitem que a escola faça algumas ações ao longo do ano", argumenta.
A diretora do Subin pondera, no entanto, que é preciso ampliar as aulas sobre o assunto. Segundo ela, uma forma de incentivo é oferecer material de apoio às escolas. "A gente produziu, por exemplo, um caderno pedagógico especificamente para a temática antirracial. Ele foi enviado para todas as unidades escolares em outubro, e indicava as leis vigentes e possíveis ações, como rodas de conversa, projetos e temáticas por meio de música e leitura", detalha Patrícia.
Na avaliação da professora de Educação da Universidade de Brasília (UnB) Catarina de Almeida Santos, é preciso ensinar sobre a cultura afro-brasileira de forma cotidiana ao longo do ano, e não como uma atividade esporádica. "Quantos livros temos de autoras negras? Quantos estudantes sabem de heróis e heroínas negras e indígenas? A educação antirracista passa pela desnaturalização de que o mundo é eurocêntrico e de que a cultura a ser disseminada é a cultura branca", ressalta.
Catarina defende que o antirracismo seja trabalhado desde cedo, quando as crianças começam a se desenvolver, para criarem uma consciência que combata a lógica racista.
Meio urbano
Uma das escolas urbanas que aplicam esse conteúdo durante todo o ano letivo é o Centro de Ensino Fundamental (CEF) 27, de Ceilândia Norte, onde mais de 1,5 mil estudantes realizam trabalhos de artes, oficinas de hip hop, fazem passeios para centros culturais e participam de rodas de conversa.
No local, há um grafite feito pelos irmãos Minoru e Samurai, que desenharam ícones do ativismo negro, como a rapper ceilandense Realleza, a deputada federal Marielle Franco (assassinada no Rio de Janeiro, em março de 2018), o professor de geografia Milton Santos, a judoca Rafaela Silva, a escritora Carolina Maria de Jesus e a atriz Ruth de Souza. "Tentamos trazer todas as temáticas para os alunos. A gente tem a ideia de trabalhar a autoestima desses estudantes, tanto que os levamos para exposição de pessoas negras, feitas por pessoas negras, para eles se reconhecerem nessas imagens", explica a professora de língua portuguesa Kelly Cardoso.
A educadora também fala sobre como lidou com o racismo na infância e conta que alisou o cabelo para se sentir aceita. Foi na UnB que se reconheceu como mulher negra. "Gosto muito da frase 'a gente não nasce negro, se torna negro'. A gente tentava fugir de ser uma pessoa negra durante a infância, porque não havia espaço para as pessoas negras na televisão ou na música. Quando tinha, era pejorativo", relembra.
A xará da professora, Kelly de Lima, 15, do 9º ano do ensino fundamental do CEF 27, recorda com carinho do bate-papo que ela e os colegas tiveram com a rapper Realleza no colégio, em 27 de setembro. "Ela veio de um lugar onde eu moro e é uma grande inspiração para mim. O projeto me fez pensar bastante o quanto isso não é falado, e passamos o dia inteiro conversando sobre a cultura afro-brasileira", destaca.
Ana Paula Rivas, diretora da escola, acredita no poder dos estudantes negros da periferia, apesar do investimento inferior às escolas do centro da capital federal. "Estar em uma comunidade carente não é um determinante para nada, mas o estudo pode levá-los aonde eles sonharem. A Realleza é uma referência, porque eles pensam 'se ela foi capaz, eu também posso'. Essas pessoas são importantes por causa disso", analisa a diretora.
Poucos projetos
O DF tem 698 escolas públicas — urbanas e rurais — vinculadas à Secretaria de Educação, enquanto as particulares somam 134, conforme dados de agosto, fornecidos pela pasta. Segundo a SEEDF, no levantamento mais recente, de setembro, com 248 unidades escolares (35,5% do total da rede), 213 têm projetos relacionados a direitos humanos e 204 relativos à diversidade, incluindo étnico-racial. Também desse total, 187 indicam que já vivenciaram algum caso de violência racial.
Mapeamento
A Promotoria de Justiça de Defesa da Educação (Proeduc) e do Núcleo de Enfrentamento à Discriminação (NED) encaminhou um questionário à SEEDF, na segunda-feira, para avaliar o letramento racial nas escolas públicas. A ideia é discutir e construir propostas para o combate ao racismo. De acordo com o promotor Anderson Pereira de Andrade, "o questionário também busca mapear os estudantes que se declaram pretos, pardos, indígenas e quilombolas, com o objetivo de que sejam criados mecanismos para garantir sua permanência, aprendizagem e efetiva inclusão".
Qualificação
Parlamentares da Câmara Legislativa debatem, esta semana, a criação do programa Escola Antirracista, que pretende capacitar professores das redes pública e privada para que promovam políticas educacionais de igualdade racial nas escolas do DF. Segundo a proposta do deputado distrital Fábio Felix (PSol), anualmente, os docentes terão de ser qualificados dentro do que prevê o Estatuto da Igualdade Racial, do governo federal. Entidades de combate ao racismo e o Conselho Distrital de Promoção da Igualdade Racial (Codipir) serão convidados a participar da elaboração do conteúdo proposto.