Quase lá: De Poa: ‘As Promotoras Legais Populares atendem as mulheres onde o Estado não chega’

Podcast aborda o trabalho de mulheres que recebem treinamento da ONG Themis para auxiliar vítimas de violência de gênero nas periferias de Porto Alegre

 

Por
Luís Gomes
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Cenira Vargas e Maria Guaneci de Ávila são as convidadas do De Poa | Foto: Reprodução
 

O novo episódio do podcast De Poa, que vai ao ar nesta quinta-feira (18), recebe as Promotoras Legais Populares (PLPs) Maria Guaneci de Ávila e Cenira Vargas da Silva. As PLPs são lideranças comunitárias que passam por uma capacitação pela ONG Themis em noções básicas de Direito, direitos humanos das mulheres e para o enfrentamento da violência de gênero nas regiões em que moram em Porto Alegre.

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themis logoMoradoras dos bairros Restinga e Bom Jesus, respectivamente, Maria Guaneci e Cenira conversam com Luís Eduardo Gomes e Ana Ávila sobre o trabalho que o programa desenvolve nas periferias, a situação da rede de enfrentamento à violência contra a mulher e outras questões que afetam as regiões mais vulneráveis de Porto Alegre.

De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.

Confira a seguir trechos do programa:

Luís Gomes: Como é relação das Promotoras Legais Populares com a cidade de Porto Alegre?

Maria Guaneci: As PLPs estão em todos os bairros de Porto Alegre. Cada bairro tem um grupo formado pela ONG Themis. E essas mulheres, justamente por elas residirem na periferia, nos bairros distantes do centro de Porto Alegre, estão envolvidas em vários espaços. Conselhos de saúde, conselhos de segurança, conselhos de educação, são conselheiras tutelares, elas trabalham em escolas infantis, fazem parte de movimentos importantes também. Então, ao se relacionar com Porto Alegre, esses movimentos são importantes porque elas estão ali também numa luta para que essa cidade seja cada vez mais inclusiva e um espaço melhor para se morar.

Ana Ávila: Guaneci e Cenira, eu acho que seria legal a gente começar falando um pouquinho sobre o que são as Promotoras Legais Populares, para quem não conhece o trabalho de vocês, não conhece a Themis. Como é que funciona essa rede, como é essa articulação, a partir da periferia de Porto Alegre, de suporte às mulheres?

Maria Guaneci: As PLPs são formadas pela Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, que é uma ONG feminista que nasceu lá em 92. Então, já tem 30 anos de história e a proposta das três feministas que construíram essa ONG era justamente formar mulheres na periferia com conhecimento e acesso à Justiça, porque há 30 anos atrás não tinha essa rede que hoje tem, um pouco fragmentada, mas tem. Então, quando a Themis pensou essa formação de Promotoras Legais Populares, ela pensou justamente em formar mulheres com conhecimento, com informações, de como que se dá essa rede de atendimento de serviço às mulheres. Aí pensando no jurídico, pensando na assistência social, pensando na saúde. Hoje ser uma PLP é você estar informada com conhecimentos para poder apoiar e ajudar outras mulheres. Na verdade, a gente sempre diz que, lá na periferia, os serviços e o Estado não chegam. Pela distância, pela falta de equipe, de pessoas, mas lá tem uma PLP que escuta, que acolhe outras mulheres. E o nosso trabalho se dá literalmente em rede, nós atuamos com os CRAS, com os CRES, com Conselho Tutelar, postos de saúde, serviços de saúde. Porque, como a gente já está há um bom tempo nessa caminhada, a gente é muito conhecida. Então, os serviços buscam o nosso apoio, principalmente quando tem uma situação de violência grave que eles não conseguem enxergar a saída. Isso é importante, porque nos faz também estar todos os dias buscando conhecimento e informações, porque a gente não sabe tudo. Eu estou há 28 anos PLP e ainda estou aprendendo todos os dias como ser uma PLP. E esse trabalho é importante porque se dá na rede. A gente sempre diz, por mais profissional que aquela pessoa seja, médico, advogado, professor, seja o que for, não existe trabalhar sozinha, o trabalho tem que ser coletivo, tem que ser em rede. Por isso que uma das nossas aulas é como trabalhar em rede. O que é trabalhar em rede? Trabalhar em rede é tu fazer parceria e estar dentro dos espaços. As promotoras populares estão em todos os espaços, movimentos, conselhos, justamente para adquirir conhecimento e para fazer essa troca, essa parceria. Às vezes, as pessoas perguntam o que que é ser uma Promotora Legal Popular, eu sempre digo: ‘Ser Promotora Legal Popular é promover legalmente a informação para a comunidade. Isso é ser uma PLP.

Ana Ávila: E são sempre mulheres da comunidade, não são mulheres que vêm de fora e passam a atuar ali. Essas mulheres formadas pela Themis já trabalham, já atuam e já vivem dentro da comunidade, já tem relações dentro dessa comunidade, né?

Maria Guaneci: Exatamente. Hoje, o curso é de quatro meses. Quando eu fiz o curso, lá em 94, 95, eram 10 meses de curso. Hoje é menos tempo, mas também tu tem mais acesso à informação. Esse curso veio para as mulheres da periferia que não tiveram tempo de estudar, fazer uma faculdade, fazer o Ensino Médio. A Themis pensou nesse curso de formação de PLPs para essas mulheres que não tiveram a oportunidade no tempo de fazer um curso, de buscar conhecimento. E não é só o projeto das Promotoras Legais Populares, nós temos um projeto da Themis, que eu sou apaixonada, que são as Jovens Multiplicadoras de Cidadania, que são as futuras PLPs. Porque elas são jovens, de 14 a 21 anos, e fazem um trabalho também parecido com o nosso, que é levar informação e conhecimento para a juventude. Quando a gente pensou esse projeto, pensamos assim: ‘Nossa, a gente não tem como falar a mesma linguagem da juventude’. Nós já somos mais maduras, então aí que a Themis pensou em jovens falando para jovens. Tivemos agora uma campanha no Carnaval, que é ‘respeite as gurias’, que foi um sucesso. Aquela meninada falando e dando informações, falando do respeito às gurias. Foi apaixonante.

Luís Gomes: Cenira, me conta um pouco sobre quem são as mulheres que tu atende na Bom Jesus, em que circunstâncias elas buscam o auxílio e o apoio das PLPs?

Cenira: Tem várias maneiras que elas chegam. Tem umas que ficam trancadas em si próprias e tem outras que dizem: ‘Vaou buscar os meus direitos, o que eu posso fazer, como recorrer, onde que eu posso ir, onde que eu não posso ir?’ Porque elas não sabem onde buscar o seu direito.

Luís Gomes: Em geral, são vítimas de violência?

Cenira: A maioria são vítimas de violência, mas eu também trabalho a questão da droga. Tem mães que eu estou atendendo já faz uns dois anos que são vendedoras de drogas. Todo mundo vem e coloca todo o problema em cima delas. Até teve uma conselheira que chegou e disse assim: ‘A gente vai retirar os filhos dela’. Daí eu disse: ‘Olha, eu tô trabalhando com ela, tentando ajudar em tudo que eu posso’. Ela disse, ok, que estava nas minhas mãos. A gente foi redobrando, redobrando, conseguimos liberar ela da droga, ela conseguiu um trabalho, eu fui na creche e fiz um encaminhamento para colocar os filhos dela na creche, um com três anos e outro com cinco.

Outra mulher, eu tô até hoje lutando com ela, mas às vezes eu fico pensando: ‘Pô, ela tem que sobreviver’. Sou contra as drogas, a gente nunca é favor da droga, mas ela vende aquela droga para sobreviver, porque ela tem uma filha que ela carrega pela mão e uma outra no colo. Um dia ela me disse: ‘O que tu queres que eu faça? Não consegui uma creche, a gente não consegue emprego’. O que as mulheres mais sofrem dentro da periferia é com não ter onde deixar o seu filho. A gente tem as creches, mas as creches às vezes trazem uma criança lá do outro lado e esquecem que tem aquela criança ali que tá precisando do apoio. Ela me disse: ‘Eu me sustento e sustento os meus filhos através da droga’. Eu, falando com ela, disse: ‘Quantas famílias tu já destruiu?’ Ela respondeu: ‘Destruíram a minha família primeiro quando me ofereceram a droga’. E daí tu faz o quê?

(…) Tem uma questão que eu brigo muito com os governos, como a pessoa vai acessar os benefícios públicos se ela não tem o endereço fixo, mora dentro de um valão, ali não tem endereço, não tem água, não tem luz? Às vezes, eu fico até brigando, eu já tive brigas com a questão do Bolsa Família. Todo mundo precisa, a gente sabe que o Bolsa Família todos precisam, mas tem pessoas que não precisariam e recebem, enquanto aquela que tá lá dentro da periferia, que não tem acesso a nada, nem a um comprovante de residência, não tem esse direito. Eu nem digo como PLP, porque eu sou uma liderança comunitária, eu vivo diretamente dentro dos piores lugares que existe, porque é onde está a precariedade.

Ana Ávila: Vocês trabalham diretamente com quem está na ponta e onde o sistema não chega.

Cenira: Tu vê coisas assim, que tu pensaria que não existiria mais em 2023, mas ainda existe, aquela pessoa que mora dentro do valo, onde o esgoto vem e derruba tudo, aquela pessoa que não tem um banheiro, não tem uma água encanada, não tem uma casa.

Ana Ávila: Na pandemia, a gente fez uma matéria, quando começou a vacinação das crianças, sobre como a procura estava muito baixa, muitos pais não estavam levando seus filhos para vacinar. A gente sabe que tem um movimento antivacina no País inteiro, pessoas que não entendem a importância, que teve toda uma campanha de divulgação de informações falsas ou de desinformação. Mas não era só isso, muitas vezes as mães e os pais estavam trabalhando o dia inteiro e não tinham condição de levar essas crianças nas unidades de saúde. Muitas vezes, o posto mais próximo não estava funcionando e ela não tinha condições de, depois do trabalho, levar a criança em uma unidade que tinha a vacinação. É uma série de problemas que a gente percebe nisso que vocês falam, que vão aparecer lá na ponta.

Maria Guaneci: Pensando na vacinação, eu sou do conselho de saúde local, do meu posto, eu lembro que a gente se juntou justamente para que a vacinação viesse no sábado nas escolas. E assim que a gente conseguiu que a Secretaria de Saúde trouxesse a vacinação no sábado nas escolas, na Lidovino Fanton, que é atrás da minha casa, onde meus filhos estudaram, eu lembro que o enfermeiro que estava coordenando ficou impressionado com a quantidade de crianças da primeira dose. Outra coisa que a sociedade e o poder público não se dão conta, nas regiões do tráfico, é difícil também. Eu lembro que, na minha região, tinha um adolescente de 15 anos que já tinha passado há horas a idade dele se vacinar, só que ele não conseguia sair da linha amarela. E daí o enfermeiro, profissional do jeito que ele era, disse: ‘Não, a gente vai vacinar sim, porque ele ele tem direito à vacina. Se ele não fez, foi por circunstância social e assim por diante’. Então, eu acredito que os postos têm que ir para as escolas também e têm que abrir nos sábados. Tem postos que até estão abrindo nos sábados, é raro, mas tem. Porque é isso, não adianta ter o serviço se as pessoas não tiverem acesso. Eu sempre digo isso, tem que ter acesso. ‘Ah, porque a mulher é vítima de violência, não procura apoio, não procura ajuda’. E cadê o acesso? Cadê a delegacia mais perto? Cadê o juizado que vai dar conta daquele processo?

Luís Gomes: Porque essa é uma discussão separada, né, entre o acesso e o serviço. O serviço, ele pode existir, pode até funcionar bem quando a pessoa consegue chegar ali no acesso, embora a gente saiba que também tem seus problemas, óbvio, mas esse acesso muitas vezes começa com a informação. A pessoa não sabe onde acessar, qual é o endereço que ela tem que ir.  Às vezes, o poder público fica muito fixo na lógica do serviço, ‘inauguramos tal sede’, e tu vai ver e é no Centro. Como faz quem tem que pegar uma hora e meia de ônibus da Restinga?

Maria Guaneci: Quando a gente lida com mulheres em situação de violência, na Restinga, uma mulher que sofre violência doméstica que precisa chegar até a Delegacia Especializada da Mulher, como que ela vai chegar lá se ela não tem passagem, se ela não tem com quem deixar os filhos? Eu sempre digo assim, se ela vai tomar um banho, se arrumar, ir lá no CRAS pegar uma passagem para ir até a Delegacia da Mulher fazer um B.O para conseguir a medida protetiva, ela não vai ir. Porque a dor já passou, o medo voltou e ela não vai conseguir. Então, por isso que a gente sempre diz assim, os serviços têm que ter acesso. Não adianta ter um lugar maravilhoso ali, mas daqui a pouco não tem nem acessibilidade para uma pessoa cadeirante chegar naquele serviço. E quantas vezes a gente já viu isso? Não tem nem acesso, não tem nem como passar uma cadeira de rodas ou uma pessoa com deficiência visual,  precisa circular numa rua cheia de buraco, cheia de valo, cheia de tudo. Então, a gente precisa olhar para tudo isso e eu acho que é isso que tá faltando, Porto Alegre olhar um pouco mais, um pouco mais com carinho pro acesso aos serviços. E, principalmente, para as pessoas que acessam esses serviços. Porque se eu tenho condições de pegar um carro e ir num lugar, ok, mas, se eu não tenho, como é que eu vou acessar esse serviço? Acho que a gente tem que olhar essas demandas, e a gente sempre diz também, ter nos espaços pessoas sensíveis àquela demanda. Porque tu saber acolher, saber escutar, saber ouvir uma pessoa, a sua demanda, tu pode até dizer: ‘Não, nós não temos nesse momento’. Mas se tu diz um não com carinho, com cuidado, aquela pessoa entende. Se tu diz um não quando a pessoa nem entrou na porta, aquela pessoa já sai dali…Eu, talvez por estar há muito tempo nessa luta, sempre tomo muito cuidado no saber acolher, no saber escutar, saber ouvir aquela pessoa. A gente trabalha com mulheres, 90%, mas eu também escuto outras pessoas, outras demandas, e eu faço aquilo que eu gostaria que fizessem comigo, saber me escutar, saber me acolher, saber me ouvir.

Luís Gomes: O trabalho das PLPs é fazer uma ponte entre o poder público e a mulher vítima de violência. Como é que funciona quando aquela mulher chega no serviço e toma uma porta fechada, é atendida por alguém de má vontade? Como se convence essa mulher a voltar a procurar o serviço, entender que precisa denunciar ou que, na verdade, tem o direito a ter uma medida protetiva?

Cenira: Eu atendi uma mulher que duas vezes foi até a Delegacia da Mulher. Na primeira, ficou esperando a tarde toda, das 13h até às 17h30, e não foi atendida. Na segunda vez que ela foi, aconteceu a mesma coisa. Daí ela pegou e veio me procurar. Eu disse: ‘Não, agora quem vai contigo vou ser eu’. Porque a gente tem mais acesso como promotora. Daí eu cheguei, em primeiro lugar tinha um homem sentado. Eu disse que queria ser atendida por uma mulher. Ela veio. Eu disse: ‘Meu nome é tal, sou promotor legal Lei Maria da Penha, tá aqui o meu crachá’. Porque nós temos o nosso crachá, mostrei. ‘Ah, ok, entra, vamos atender’. É outra maneira de ser atendido. Ela [a denunciante] disse assim para mim: ‘Eu não acredito nisso’.

Maria Guaneci: Mas a gente quer que todas as mulheres sejam bem atendidas, que não fosse uma PLP Cenira, não fosse uma PLP Guaneci, não fosse uma Themis. A gente sabe que a gente construiu esse trabalho. Quando a gente se formou, lá em 90 e poucos, a gente chegava num espaço e se identificava enquanto Promotora Legal Popular, as pessoas tiravam sarro da nossa cara. Mas, de tanto a gente participar das lutas, construir articulações, construir propostas, fortalecer as políticas públicas, hoje a gente chega, ‘opa, chegou a Guaneci, opa, chegou a Cenira’. Mas a gente não quer isso, a gente quer que todas as pessoas tenham o mesmo respeito o mesmo atendimento. É pra isso que a gente luta.

Ana Ávila: É importante lembrar, para quem não sabe, que a Themis faz parte do consórcio que ajudou a escrever a Lei Maria da Penha.

Maria Guaneci: Sim, lá em 2006. E é tão importante lembrar isso, Ana, porque ela foi escrita em 2006 e o projeto de Promotoras Legais Populares começou em 1993. Muitas orientações que estão na Lei Maria da Penha são baseadas no nosso trabalho na prática, lá na ponta. Como que a gente quer que uma mulher seja bem atendida na delegacia? As políticas públicas de proteção. Tem muito ali da lei que é o trabalho concreto que a gente realizou de 1993 até 2006. E a gente sempre fala que a a Lei Maria da Penha é a terceira melhor lei do mundo, o que a gente precisa é que as pessoas que têm a responsabilidade de tirar ela do papel cumpram ela, para que dê tudo certo. E pensando na lei Maria da Penha, no ano passado, dia 13 de agosto de 2022, a Associação de Promotoras Legais Populares do Rio Grande do Sul lançou a nossa agenda de direitos. Aqui fala da violência doméstica, fala da implementação da lei, que tem que melhorar as garantias, fala da violência sexual, fala da violência sexual reprodutiva. É um material muito rico.

 

fonte: https://sul21.com.br/podcast/de-poa/2023/05/de-poa-as-promotoras-legais-populares-atendem-as-mulheres-onde-o-estado-nao-chega/


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