Cândido Grzybowski
Inicialmente, quero clarificar os conceitos de cidadania que uso e seu sentido. Em democracia políticas reais sempre acaba sendo estabelecido, em suas constituições, um conceito político de cidadania, como sua única força instituinte e constituinte, base legal e jurídica dos direitos políticos iguais, em especial o de votar e com isto definir mandatos temporários para chefes de governos e legisladores, como seus representantes no Congresso. Fundamental, sem dúvida, mas insuficiente. Sempre é possível ter cidadania legítima clamando por democracia, sem ter nenhum reconhecimento constitucional/legal, como é o caso predominante de quem luta contra ditaduras e fascismos. E sempre haverá cidadania política para além do voto legalmente definido em democracias de qualquer tipo, das meramente eleitoreiras até aquelas de alta intensidade, de mais e mais democracia. Aliás, nunca podemos esquecer que o que diferencia democracias transformadoras de democracias de baixa intensidade é a cidadania ativa e se ela está em ação para buscar mais direitos iguais na diversidade, contra negações, exclusões, violações e invisibilidades existentes, assim como para não abdicar de seu direito intransferível de força instituinte e constituinte de votar e lutar por direitos e por políticas públicas voltadas aos direitos.
Para dar conta analítica deste fato político em democracias uso o conceito de cidadania ativa ou, também, cidadania em ação como sujeito político coletivo. A cidadania ativa não depende do Estado, mas o Estado democrático depende dela. Quanto mais cidadania ativa, mais democrático será o Estado, não o contrário. Tal concepção me leva a falar em cidadanias ativas, na diversidade ou no pluriverso de modos de ser cidadania ativa como sujeitos políticos coletivos, não estatais, que cabem na sociedade civil, a dinamizam politicamente disputando a hegemonia, na definição dada por Gramsci. Cidadanias ativas não necessariamente são reconhecidas e legitimadas pelos estatutos legais e pelas políticas estatais, onde as relações políticas são de forças de poder estatal, que Gramsci define como relações militares. Ainda cabe destacar que as concepções de cidadania, apontadas aqui, não são e nunca foram unanimidade, em nenhum lugar do mundo. Independentemente de conceitos, só a cidadania em ação na sociedade civil e mirando incidir legitimamente no Estado tem capacidade para fazer parte da disputa virtuosa em democracias, levando a transformações estratégicas. Penso que pensar e avaliar Estados de democracia liberal, socialdemocracia ou democracia socialista, entre tantas, importa pois são diferentes. Porém, isto é olhar para o Estado e a partir dele, mas não para quem pode politicamente qualificar a democracia como modo de ação e transformação ecossocial, em última análise. Esta é a forma como venho me apropriando conceitualmente das importantes contribuições a respeito feitas pela memorável analista e ativista Rosa Luxemburg.
Um desafio democrático de ordem estrutural, que nunca dá para ignorar, diz respeito às classes dominantes e sua atuação. As exclusões e destruições ecossociais, com violência, racismo e patriarcalismo são causadas pela estrutura de relações e processos econômicos e sociais com uma lógica de exploração e dominação a serviço das classes proprietárias privilegiadas. Esta questão fundamental extrapola o foco principal da análise aqui feita: concentro-me nos sujeitos coletivos que se expressam como cidadanias ativas dos dominados, explorados e excluídos em busca dos direitos ecossociais iguais, vistas como forças políticas impulsoras da transformação possíveis em democracias. Mas temos que analisar e ter presente sempre o poder de tal realidade estrutural na conformação de forças políticas, no nosso caso o Brasil, pois a transformação democrática ecossocial acontecerá realmente se chegar nas relações sociais de classes, nos processos e nas estruturas que organizam o modo de produzir e se apropriar de bens e serviços na sociedade como um todo. Os setores dominantes também se constituem e se expressam como sujeitos coletivos para manter seus privilégios de classe e, se possível, impedir ameaças a seu domínio e para desconstruir conquistas democráticas das classes populares, o “povo” na expressão política de Lula em sua posse. Classes dominantes estão sempre presentes nas correlações de forças políticas em parlamentos e governos democráticos. Atuam através de suas organizações e associações públicas, mas mais ainda por financiamento e compra de “lealdades”. Suas práticas vão desde os financiamentos e controle de meios de comunicação e, cada vez mais, de redes sociais, para difundir seu modo de ver e seus valores. Na esfera estatal, escolhem prioritariamente defender seus interesses de classe através de seus lobistas eleitos com assento no Congresso e intensa atividade de negociações, nem sempre tão transparentes, nos gabinetes do poder governamental.
Voltando ao foco central da análise, a renovação democrática nesta conjuntura do Brasil, para acontecer de forma virtuosa precisa ser pensada estrategicamente como uma tarefa compartida. De um lado do Estado, onde temos o Governo Lula, seus ministérios e políticas, e aquele “arranjo” possível para a governabilidade no Congresso Nacional, com suas atribuições legais, e do Poder Judiciário enquanto zelador da legalidade; de outro, está o pluriverso de cidadanias ativas, para além da cidadania eleitoral. Ou seja, de modo tout court, pelo voto ganhamos a eleição legítima e botamos Lula lá, com uma quase exemplar equipe ministerial, depois de tudo que aconteceu de desconstrução democrática e ameaças do governo de vocação fascista manifestada publicamente. Mas não conseguimos a mesma vitória eleitoral para a composição do Congresso Nacional, dominantemente de direita e muitos declaradamente apoiadores de uma “solução” autoritária. Uma composição assim obriga o Governo Lula a conciliar com diferentes e até opostos e suas múltiplas agendas lobistas. Isto sem contar a difícil situação política em grande parte Estados da Federação. Mais uma vez, afirmo e reafirmo que a democracia de mais intensidade que precisamos depende acima de tudo da capacidade política de cidadanias ativas de pressionar e “desempatar” relações de forças na esfera estatal, contando com a cumplicidade estratégica do Governo Lula, nos quatro anos de seu mandato.
A tarefa de derrotar e eliminar ou, ao menos, conter a ameaça fascista e seu ódio apenas está começando. Não sabemos se o modo de democrático de construir uma nação mais ecossocialmente justa, includente e de “viver saboroso” vamos conseguir criar maior resiliência democrática no curto prazo de quatro anos. Afinal, forças da direita autoritária tem raízes fortes entre nós e contam com o apoio de fascismos que se propagam como uma onda vigorosa e perigosa pelo mundo inteiro contra democracias. Porém, não é só a direita fascista que nos ameaça. Temos uma poderosa direita que se aliou e se beneficia do “capitalismo de acionistas”, voltado exclusivamente à acumulação e globalizado pelo neoliberalismo. Esta etapa dominante do capitalismo hoje em dia levou o próprio capitalismo a um impasse sem saída. É inaceitável o nível absurdo de desigualdade social a que estamos chegando no mundo todo, com ampla destruição da base natural de vida, passando todos os limites planetários, acelerando a mudança climática e a destruição da biodiversidade, levando o nosso bem comum, Planeta Terra, a uma provável inviabilidade de garantir a sobrevivência da própria humanidade. O que não podemos é esperar para ver. Este é o desafio e a possibilidade de uma democracia mais intensa para enfrentar o fascismo e o capitalismo da barbárie (pregando que é civilizado!) que o sustenta. Dado o tamanho territorial e populacional do Brasil, podemos sim nos constituir como país de avanço dos direitos iguais assentado no cuidado, convivência e compartilhamento de todas e todos e com a natureza, levando a economia e a sociedade brasileira mais democrática a se tornarem uma grande contribuição à sustentabilidade do planeta e à vida da humanidade inteira.
Ficando em nosso Brasil, mesmo se a questão é de ordem planetária, temos tarefas intransferíveis para a cidadania brasileira na conjuntura imediata. Afinal, enfrentamos um monstro político de inspiração autoritária e fascista. O líder foi derrotado. Mas estamos longe de celebrar vitória sobre o que surgiu no seio da sociedade civil como “direitas ativas” se sentindo legitimadas, compartilhando um discurso de ódio, intolerância, racismo, machismo, rearmamento individual, ataques às áreas protegidas e territórios de povos tradicionais. Tudo isto foi incentivado desde 2016 e amplificado com o governo do inominável. Sua estratégia política, não nos iludamos, teve por base um processo bem definido de criação e difusão sistemática de fakenews e mensagens por redes sociais contra a democracia e os pequenos avanços conseguidos desde o fim da ditadura militar em 1985. O pior é que conseguiu agregar desde saudosistas da ditadura militar, contando com uma não disfarçada simpatia e cumplicidade das Forças Armadas, com amplos setores do poderoso agronegócio e com os novos “piratas” do setor capitalista desregulado que temos, com amplos setores de classes médias que se sentem ameaçados em suas pequenas conquistas individuais, até com setores das classes populares manipulados pelos pastores mercadores da fé. Enfim, estamos diante de um grande e complexo processo alimentador do autoritarismo no seio da população brasileira, que precisa ser bem analisado, distinguindo o que é orgânico do ocasional, dada a conjuntura que vivemos e os imaginários fascistas amplamente difundidos. Sim, aconteceu um enorme retrocesso em sonhos e perspectivas, nos desafiando a renovar e dar mais sustentabilidade à democracia como modo de viver e enfrentar nossos múltiplos desafios e problemas, para além da central conciliação embutido na Constituição de 1988. Isto exige determinação e disputa ideológica e política, sem tréguas e anistias ética e politicamente inaceitáveis.
Para analisar, propor e nos organizar como cidadanias ativas na renovação democrática que se impõe, vejo várias frentes principais de ativismo, estreitamente interdependentes entre si e sempre com raízes fortes nos territórios humanos e de cidadania em que vivemos, o chão da sociedade civil. Uma condição sine qua non de cidadanias ativas, como tarefa coletiva permanente, totalmente independente de Estados e mercados, é se constituir, se fortalecer e incidir enquanto cidadanias ativas diversas a partir de e nos próprios territórios. Não existe cidadania ativa como coletivo humano territorial sem sujeitos que se vem como titulares de direitos iguais na diversidade, que lhes são negados de alguma forma pelas relações e processos ecossociais estruturais e políticas existentes, com destruição sistemática da integridade da natureza, impondo exploração, exclusão, precariedade, desigualdade e violência. Como condição de conquistar direitos, cidadanias ativas se organizam e buscam formas de lutar a partir de suas vivências, carências e formas de dominação a enfrentar. Trata-se de um aprendizado coletivo em busca da emancipação e da autonomia feito na luta, que acaba permitindo ver a si e todos as e os demais na mesma situação, de se sentir parte e juntos definir o que e como fazer, construindo no processo uma identidade social e política compartida entre os e as participantes. É um processo virtuoso em que se forjam sujeitos coletivos solidários, condição de qualquer ação cidadã em democracias vivas.
Como desafio para cidadanias ativas, esta frente de ação é fundamental, mas apenas uma base. Existe muito a celebrar a respeito, mas, também, muito ainda a fazer neste nível. O desafio maior para cidadanias ativas é superar a fragmentação de agendas e lutas, sem negar suas legítimas identidades e vozes, fragilizando-as de algum modo. É tarefa exclusiva de cidadanias ativas se articular e formar movimentos amplos entre si para maior impacto nos vários níveis, do territorial até o plano nacional, regional e mundial, com identidade coletiva compartida. Um outro nível e frente estratégica democrática no seio da sociedade civil é criar coalizões entre diferentes cidadanias ativas, organizadas em redes e fóruns, com propostas e agendas comuns, buscando espraiar-se e adesão em territórios urbanos e rurais. Não confundir esta frente com formação de partidos, também necessários em democracia e que podem tornar-se mais virtuosos quando impregnados pelo ativismo cidadão, como temos exemplos no Brasil. Há muito a fazer na construção de um bloco histórico de cidadanias ativas para construir e disputar uma cultura democrática e ser uma hegemonia política definidora de horizontes e rumos, para ser reconhecida amplamente no seio da sociedade civil, alcançando os partidos de esquerda, para além do governo e parlamentares de turno.
Não dá para confundir tudo isto na atual conjuntura com a participação política institucional em espaços do Governo Lula e do Congresso, através de conformação de conselhos paritários, comissões, conferências, consultas. Isto é bom retomar, como Lula já está implantando e buscando para ser um “governo participativo”. Isto, certamente, pode dar muita virtude ao Estado. Mas é insuficiente. A maior contribuição de cidadanias ativas é na criação de uma potente cultura democrática no seio da sociedade civil e no universo das redes sociais, com ativa e permanente comunicação, eventos culturais, universidades e todo o aparato institucional da educação, onde se encontram os ativistas culturais e educadores que precisamos neste momento. Trata-se de enfrentar o discurso de ódio que é potencializado pelas direitas, tanto as declaradamente fascistas como todas as demais, especialmente as das classes estruturais identificadas como “forças do mercado” e os extrativistas, mineradoras e agronegócio, pois daí nunca saiu e nem vai sair mais democracia.
Enfim, a disputa de hegemonia já começou mas não dá para dizer que estamos preparados. Temos capacidade e determinação para a disputa? Ou vamos esperar o Lula fazer? Penso que a bola está no nosso campo e não podemos errar como já erramos.
fonte: https://sentidoserumos.blogspot.com/