Milton Pomar (*)
Caminhar na área central de Porto Alegre e das demais grandes cidades brasileiras passa a sensação de se estar cercado, tal a quantidade de pessoas em situação de rua nas calçadas, praças, esquinas e debaixo de viadutos. Esse “cerco” impacta mais por causa da quantidade de lojas fechadas, nas avenidas e ruas antes movimentadas pelo comércio, e por tantas vezes que se tem que negar pedidos de comida e de dinheiro. Cada pessoa com nome, fisionomia de fome, e uma história de vida impacta muito mais do que os números milionários sobre o problema, por mais que eles sejam tão grandes e permanentes.
Apesar disso, impactou saber, através de comunicado da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), há poucos dias, da previsão de 317,5 milhões de toneladas na safra de grãos em 2023/2024, quase a quantidade recorde da safra 2022/2023 (que aumentou 45 milhões de toneladas em relação à de 2021/2022). Só de soja são esperados 162 milhões de toneladas (dos quais 102 deverão ser exportados), o que coloca o Brasil entre os quatro maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo, condição confirmada pelo relatório da produção mundial, de outubro de 2023, do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.
Graças às sucessivas safras recordes, e à população bem menor do que a dos outros três países maiores produtores (China, Estados Unidos e Índia), o Brasil é o campeão mundial (2021) em quantidade de alimentos per capita, com 5,5 ton/habitante, segundo estudo divulgado em junho de 2023 pela empresa de consultoria Insider Monkey. Nesse mesmo estudo, a Índia aparece em 20º lugar, já que a sua safra de grãos é a mesma do Brasil (315 milhões de toneladas em 2021/ 2022), apesar da população indiana ser sete vezes maior do que a brasileira.
Quando eu estava no curso técnico agropecuário, em 1976/79, o Brasil produzia 50-55 milhões de toneladas de grãos, em 40 milhões de hectares (ha), quase metade da área plantada atual (78 milhões de ha) – ou seja, o salto para mais de 300 milhões de toneladas se deu muito mais em cima do aumento da produtividade. A previsão fantasiosa naquela época de que o Brasil se tornaria “celeiro do mundo” acabou se concretizando, e o cenário para 2032 confirma a importância do País enquanto grande fornecedor mundial de alimentos.
Passa da hora de saber o que fizemos e deixamos de fazer no “celeiro do mundo” nesses 50 anos, a ponto de conseguir saldo humano e ambiental tão trágicos. Todas as capitais e grandes cidades estão com muita gente faminta e em situação de rua e lojas e fábricas fechadas… Enquanto isso, o Cerrado continua sendo devastado pelo “Agro é Tech” para mais soja e milho para exportação – e quanto mesmo o “Agro” está investindo para recuperar as áreas que devastou? Quanto o setor paga de Imposto de Renda, Imposto Territorial Rural e de Circulação de Mercadorias? Quantos milhões de empregos gera o “Agro é Pop” e com qual massa salarial?
Essas questões são importantes nesse contexto mais uma vez de “superprodução agropecuária” brasileira, do “Agro é tudo”, no qual será comemorado o 16 de outubro, antes dia de Combate à Fome, depois “Dia Mundial da Alimentação”.
Fome Zero no mundo até 2030 é um dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (). Considerando a lógica e as práticas capitalistas dominantes, Fome Zero no mundo é uma meta irrealizável, porque quase metade (46,7%) da população mundial sobrevive com até US$ 6,85/ dia. Desse universo, metade tem até US$3,65/dia e 20% irrisórios US$2,15%/dia. Ou seja, têm pouco dinheiro, quase nada, ou não tem dinheiro algum – situação de “pobreza extrema”.
Isso porque há mais de 20 anos que a Fome no mundo deixou de ser por escassez de produção. O que há é escassez de renda, de emprego e de salários, o que explica a “insegurança alimentar” de 2,3 bilhões de pessoas e 700 milhões passarem fome – mais dois bilhões de pessoas na Ásia e um bilhão na África “sem dieta saudável”. Portanto, o Brasil do Agro megaexportador de alimentos está cercado por países com centenas de milhões de pessoas sem acesso à comida.
A maior concentração (1,4 bilhão) de pessoas “sem dieta saudável” está nos países mais populosos da Ásia meridional: Índia, Bangladesh, Paquistão e Afeganistão. Desses, a situação mais trágica é a da população indiana, que é um pouco maior que a chinesa, mas sobrevive com menos da metade da quantidade de alimentos produzidos e importados pela China.
A situação mundial de Fome, desnutrição, insegurança alimentar e sem dieta saudável em 2023 é uma vergonha sem tamanho para os países desenvolvidos e em desenvolvimento. Vergonha gigante no caso do Brasil, onde mais de um terço da população brasileira encontra-se em situação de “insegurança alimentar” e 21 milhões de pessoas (duas vezes a população do RS) não têm dinheiro suficiente para comprar comida.
Meio século depois que um general de triste memória declarou que a economia do Brasil ia bem, mas o povo não, a situação segue igual, e os donos do “Agro” faturando muito, graças ao salto triplo de produtividade agropecuária ocorrido nesses 50 anos – para o qual a Embrapa e as instituições estaduais de pesquisa, assistência técnica e extensão rural contribuíram de maneira decisiva –, mais renúncias fiscais, juros subsidiados e investimentos em infraestrutura, Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação proporcionados pelo Estado brasileiro ao setor.
Debates sobre Desenvolvimento Econômico, Indústria 4.0, “Startups” etc. passam longe do tema Fome Zero e do debate do que fazer para o Brasil ser exemplo para o mundo também em acesso universal à comida, e não apenas em aumento de produtividade, produção e exportação. Temos que “desnaturalizar” haver milhares de pessoas na cidade onde moramos passando fome de manhã, na hora do almoço e à noite, diariamente, e muitas mais em “insegurança alimentar”.
(*) Geógrafo, Mestre em Políticas Públicas