Quase lá: A África civiliza o Brasil

Lula seria mais um grande orador na lista sucessória de Vasconcelos? Um escravista pós-moderno como quer a direita?

Tâmis Parron  Revista Rosa

Rafael Carneiro

Todo mundo viu, todo mundo ouviu.

Quando passava por Cabo Verde neste mês, Lula disse que “temos profunda gratidão ao continente africano por tudo o que foi produzido durante os 350 anos de escravidão no nosso país”. A direita deitou e rolou em cima. Gustavo Gayer (pl-go) e Nikolas Ferreira (pl-mg) acusaram a imprensa e as mídias sociais de passar o pano para Lula. “Imagina se fosse o Bolsonaro”, tuitou um; “silêncio ensurdecedor da esquerda, movimento negro e mimizentos”, tuitou o outro. Num programa da Jovem Pan, Felipe Monteiro ensinou ex-cathedra: “O Lula, quando faz um discurso desse, demonstra uma postura imperialista em relação à África”.

Embora a própria imprensa de Cabo Verde (A naçãoA semanaInforpressExpresso das Ilhas) não tenha se escandalizado com a frase de Lula, a pergunta se impõe: a direita tem ou não tem razão na gritaria?

Uma breve história ajuda a responder à questão.

Bernardo Pereira de Vasconcelos era um senador do Império do Brasil nascido em Minas Gerais que era odiado por uns e amado por outros como um gênio do mal. Vasconcelos não gostava dos britânicos, mas também os britânicos não gostavam dele. A razão de tanto desamor era simples. Vasconcelos defendia o tráfico negreiro transatlântico para o Brasil, liderando a resistência ao antiescravismo da Grã-Bretanha.

Num belo dia de abril de 1843, Vasconcelos ouvia no Senado discursos óbvios sobre a necessidade de mais trabalhadores estrangeiros no Brasil. Seus colegas condenavam o tráfico, associando o crescimento econômico à imigração de europeus, uma ideia batida dentro e fora do país. O tráfico “despovoa a África e desmoraliza a América”, diziam. Incomodado, pediu a palavra.

Puxando do fundo da memória suas lições de dialética, lógica e retórica para dar um nó na cabeça dos seus ouvintes, Vasconcelos montou um perfeito silogismo aristotélico, aquele raciocínio de duas premissas e uma conclusão do tipo todo homem é mortal, você é homem, logo você é mortal. Eis como ele tropicalizou Aristóteles: “Os africanos têm contribuído para o aumento, ou têm feito a riqueza da América (premissa maior); a riqueza é sinônimo de civilização no século em que vivemos (premissa menor); logo a África tem civilizado a América (conclusão)”.

Vasconcelos não estava dizendo apenas que a escravidão produzira riqueza no Brasil. Sua tese era ainda mais ampla. A escravidão teria civilizado o Novo Mundo como um todo. Seus exemplos eram os suspeitos de sempre. Enquanto a Venezuela (sempre ela) tinha empobrecido porque abolira o tráfico negreiro, Brasil e Estados Unidos faziam bonito porque vinham sabendo expandir o escravismo.

A frase de Vasconcelos fez fama. Alguns anos depois, o escritor romântico José de Alencar recuperou o silogismo aristotélico escravista com aquela entonação elevada que o notabiliza e escreveu: “Sem a escravidão africana e o tráfico que a realizou, a América seria ainda hoje um vasto deserto. A maior revolução do universo, depois do dilúvio, fora apenas uma descoberta geográfica, sem imediata importância”.

Lula seria mais um grande orador na lista sucessória de Vasconcelos? Um escravista pós-moderno como quer a direita?

Basta prestar atenção na conclusão dos discursos de ontem e de hoje para dirimir as dúvidas. Para os escravistas, os descendentes dos africanos tinham uma dívida com o Brasil. Graças ao tráfico, teriam conseguido abandonar suas religiões pagãs, abraçar o catolicismo e aprender o valor do trabalho. “O escravo deve ser, então, o homem selvagem que se instrui e moraliza pelo trabalho. Eu o considero nesse período como o neófito da civilização”, concluiu José de Alencar.

Lula terminou seu discurso invertendo a lógica da dívida. “Achamos que a forma de pagamento que um país como o Brasil pode fazer [está em] tecnologia, a possibilidade de formação de gente para que tenha especialização para as várias áreas que o continente africano precisa, industrialização e agricultura.” Enquanto uns mencionavam a riqueza gerada pela escravidão para sugar ainda mais dos escravizados, Lula mencionou a mesma riqueza como uma dívida que ele queria pagar de volta.

E que pague com juros, por favor — até para se redimir da derrapada.


fonte: https://revistarosa.com/tamis-parron/a-africa-civiliza-o-brasil

 


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