Quase lá: Ativistas negras defendem recorte racial no debate sobre cuidado

Pesquisadoras apontam lacunas na discussão sobre trabalho após Enem

 12/11/2023 - Por Gilberto Costa | Agência Brasil - Brasília

O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano - "Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil" - gerou uma série de discussões na mídia, escolas e sociedade em geral. Parte da invisibilidade mencionada na prova se deve ao fato de a maior parte das mulheres envolvidas no trabalho do cuidado serem mulheres negras. Essa é a opinião de pesquisadoras e ativistas ouvidas pela Agência Brasil, que observaram a falta de referências à dimensão racial.

De acordo com levantamento do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, as mulheres negras equivalem a 45% das pessoas que atuam em serviço de cuidados. As mulheres brancas são 31%; e os homens, sejam brancos ou negros, equivalem a 24%.  

“No Brasil, a gente tem uma grande dificuldade de reconhecer mulheres negras independente do posto de trabalho. A gente tem uma grande dificuldade em reconhecer as potencialidades de mulheres negras”, assinala a historiadora Janaína Costa, autora da dissertação de mestrado "Quantas histórias cabem em uma narrativa - deslocamentos, desigualdade e desafios na história cotidiana de trabalhadoras domésticas no Brasil". 

Janaína considera que o próprio enunciado no Enem, ao delimitar apenas o recorte de gênero, contribuiu para invisibilizar as mulheres negras. “A perspectiva que não racializa a discussão não traz para o debate aquelas que historicamente são prejudicadas”, complementa pesquisadora e criadora da página Ela é só a babá, que discute o trabalho doméstico a partir de experiências pessoais e estudos acadêmicos.

Brasília (DF) - 11/11/2023-  Janaica Costa - Mulheres negras e trabalho do cuidado
Foto: Janaica Costa/Arquivo Pessoal
Brasília (DF) - 11/11/2023- Janaína Costa. Mulheres negras e trabalho do cuidado. Foto: Janaína Costa/Arquivo Pessoal

 

A ativista negra Valdecir Nascimento (foto de destaque), do Odara - Instituto da Mulher Negra, acompanha 20 meninas que fazem cursos de formação complementar na organização para participar do Enem. Ela celebra o tema da prova e o aumento da discussão em torno da pauta do trabalho do cuidado, mas acha fundamental o alerta sobre a presença do próprio racismo no contexto da invisibilidade. “Eu não consigo pensar em mulher e no cuidar no Brasil sem pensar nas mulheres negras”, ressalta Valdecir.

Valorização

Brasília (DF) - 11/11/2023-  Luana Simões - Mulheres negras e trabalho do cuidado
Foto: Déborah Guaraná/Divulgação
Brasília (DF) - 11/11/2023- Luana Simões - Mulheres negras e trabalho do cuidado Foto: Déborah Guaraná/Divulgação

 

A mão de obra feminina e negra dedicada ao cuidado está entre as principais características de uma das ocupações com mais tipos de postos de trabalho no país. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, o subsetor de serviços domésticos equivale a 25,4% dos postos de trabalho do setor de serviços - que representa 95,5% das ocupações no conjunto total atividades econômicas. O Ipea mapeou 70 ocupações no círculo do cuidado. 

Os estudos do Ipea e do MDS foram publicados em 2023 e tiveram em sua elaboração a coautoria da socióloga e economista Luana Simões Pinheiro (foto), diretora de Economia de Cuidado na Secretaria Nacional da Política de Cuidado de Família do MDS. Para ela, o trabalho do cuidado tem duas clivagens: a divisão sexual e a divisão racial.  

“Sempre se associa as mulheres ao trabalho de cuidado como um grupo homogêneo, como se todas fossem iguais. Mas entre essas mulheres há desigualdades.” Conforme a diretora, as mulheres negras estão na base da pirâmide social, em atividades como empregadas domésticas, babás, cuidadoras de crianças em creches, cuidadoras de idosos em residências e auxiliares de enfermagem. 

Com o envelhecimento da população brasileira, flagrado no Censo 2022, a oferta de ocupações de cuidado tende a crescer. Isso poderá elevar esses postos de trabalho da base da pirâmide social. “Nós não valorizamos o cuidado e não valorizamos as pessoas que realizam esse cuidado”, lamenta Janaína Costa. 

Luana Pinheiro concorda. “A gente continua falando de categorias que não têm carteira assinada e contam com uma renda muito menor do que outras ocupações. Temos que pensar outras estratégias para garantir essa valorização.”  

“Eu considero que essas categorias devem se organizar e reivindicar respeito, dignidade e reconhecimento do trabalho. Nós estamos vivendo uma experiência mundial de discutir a questão do cuidado”, propõe Valdecir Nascimento. 

Políticas Públicas

Na última semana, durante o encerramento da Semana Nacional de Inovação da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), foi anunciado o tema do evento do próximo ano: “Novas Formas de Cuidar”. A secretária nacional da Política de Cuidados e Família do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), Laís Abramo, reconheceu como um grande desafio a implementação de políticas públicas nessa área.

"O cuidado é um direito e uma necessidade de todas as pessoas. É fundamental para a reprodução da vida e o bem-estar das pessoas, assim como para o funcionamento das sociedades e das economias”, destacou.

“Precisamos, portanto, pensar em como transformar uma sociedade de mulheres -  especialmente mulheres negras e periféricas - sobrecarregadas pelo trabalho de cuidado em uma sociedade de cuidados, uma sociedade que tenha no seu centro a sustentabilidade da vida, da vida das pessoas e da vida do planeta.”

Edição: Juliana Cézar Nunes

Fonte: Agência Brasil > https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-11/ativistas-negras-defendem-recorte-racial-no-debate-sobre-cuidado 


Artigos do CFEMEA

Coloque seu email em nossa lista

lia zanotta4
CLIQUE E LEIA:

Lia Zanotta

A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?

ivone gebara religiosas pelos direitos

Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

Violência contra as mulheres em dados

Cfemea Perfil Parlamentar

Direitos Sexuais e Reprodutivos

logo ulf4

Logomarca NPNM

Cfemea Perfil Parlamentar

Informe sobre o monitoramento do Congresso Nacional maio-junho 2023

legalizar aborto

...