Quase lá: Igualdade salarial: projeto reforça luta das mulheres, mas aplicação será desafio, dizem especialistas

Governo enviou ao Congresso projeto de lei que estabelece como 'obrigatória' a equidade de salários. Na teoria, diferença salarial já é proibida pela CLT.

Por Letícia Carvalho e Ana Paula Castro, g1 e TV Globo — Brasília


 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enviou ao Congresso Nacional nesta semana um projeto de lei para garantir remuneração igual entre homens e mulheres que exercem a mesma função.

Para especialistas, a proposta fortalece o debate sobre a desigualdade salarial e é um avanço na luta das mulheres, mas deve esbarrar em entraves para ser implementada, caso seja aprovada pelo Congresso.

O projeto de lei estabelece que a igualdade salarial para o exercício da mesma função é "obrigatória". O texto também prevê que empresas que não cumprirem a regra terão de pagar multa equivalente a dez vezes o maior valor pago pelo empregador.

Na teoria, a diferença salarial já é proibida pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Na prática, no entanto, muitas vezes essa exigência legal não é cumprida.

Um levantamento da consultoria IDados, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE, mostrou que as mulheres ganham cerca de 20% menos do que os homens no Brasil. E a diferença salarial entre os gêneros segue nesse patamar elevado mesmo quando se comparam trabalhadores do mesmo perfil de escolaridade e idade e na mesma categoria de ocupação.

Segundo especialistas ouvidas pelo g1, o projeto de lei, se aprovado pelo Congresso, representa mais uma demarcação política de posição e um reforço do discurso contra a misoginia do que um avanço prático pela equiparação salarial.

 

Desenvolvimento de políticas públicas

As especialistas defendem, na verdade, o desenvolvimento de políticas públicas para combater as causas do problema – como a criação de creches 24 horas e a ampliação do direito à licença-paternidade, benefício dado aos trabalhadores com carteira assinada e servidores públicos federais de se ausentar do emprego para ficar com o filho recém-nascido.

Para Vanessa Dumont, advogada trabalhista e sócia do Caputo Bastos e Serra Advogados, o projeto de lei é "louvável" por deixar claro que o Estado está preocupado com a desigualdade de gênero e que pensará políticas que reduzam o problema, mas a medida "sozinha não será efetiva".

"O problema de descriminação salarial não tem uma causa única. A gente precisa de políticas públicas, como resolver a questão da licença parental e das creches. Sabemos que muitas mulheres não têm com quem deixar os filhos e isso acaba sendo um entrave na contratação”, explica a advogada.

A professora da Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (EBAP/FGV) Carmen Migueles reforça esse entendimento:

"Essa lei [projeto de lei], na verdade, é uma demarcação política de posição. Coisas que vêm agora e que fazem sentido é a conclusão das creches. Lula liberou dinheiro para as obras, mas a gente também não está fazendo uma discussão sobre os tipos de creches. Precisávamos, por exemplo, de creches 24 horas".

 

O projeto de lei da igualdade salarial integra um pacote de medidas divulgado pelo governo Lula no Dia Internacional da Mulher, 8 de março. Outra iniciativa anunciada foi a retomada das obras de 1.189 creches que estavam paralisadas.

Transparência e fiscalização

O projeto prevê que a igualdade salarial entre mulheres e homens será garantida, por exemplo, por meio do estabelecimento de mecanismos de transparência e do fortalecimento da fiscalização.

Assim, o texto prevê a obrigação de publicação de relatórios de transparência salarial e remuneratória dos empregados por empresas com mais de 20 funcionários.

Na avaliação da advogada especialista em direito do trabalho Cintia Fernandes, a dificuldade em provar a diferença de salários entre pessoas que exercem a mesma função é, hoje, o principal "obstáculo" no caso das mulheres que entram na Justiça do Trabalho com indícios de discriminação salarial.

Por isso, segundo a advogada, dar transparência aos salários poderia facilitar "a efetivação do direito da mulher".

"A principal prova que ela tem é justamente demonstrar que existe uma outra pessoa que, embora esteja exercendo a mesma atividade, tenha remuneração superior a ela, a prova documental e que pode ser acrescida de provas testemunhais", explicou Cintia Fernandes.

Por outro lado, Juliana Inhaz, economista do Insper, explica que o salário pode ser determinado por um conjunto de características, como formação, experiência e trajetória do funcionário na empresa. Por isso, de acordo com ela, pessoas que estão na mesma função poderiam receber remuneração distintas.

 

A especialista alerta ainda para a dificuldade de fiscalizar a veracidade das informações prestadas pelas empresas.

"É complicado você conseguir monitorar adequadamente empresas ainda mais no Brasil [...] Pior do que não ter a lei é ter uma lei e não conseguir fiscalizar", afirma a economista.

LGDP

Outro entrave levantado pelas especialistas é como garantir a transparência de salários respeitando a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

"Como o estado vai saber da massa salarial das empresas sem ferir a Lei Geral de Proteção de Dados e o direito individual?", questionou a professora Carmen Migueles.

A LGPD começou a valer em 2020. O dispositivo — inspirado em um modelo europeu — estabeleceu regras sobre tratamentos de dados pessoais sensíveis; responsabilidade e ressarcimento de danos, e tratamento de informações pelo poder público.

Segundo Carmen, equacionar essa questão será um desafio para o Congresso Nacional. Por se tratar de um projeto de lei, a proposta precisará da aprovação de deputados e senadores para entrar em vigor.

Como denunciar hoje?

A advogada Cintia Fernandes explica que, em casos de suspeita de disparidade salarial, a mulher pode recorrer à Justiça mesmo sem ter prova documental.

Isso porque, durante a tramitação da ação trabalhista, a empresa pode ser notificada para apresentar a relação de empregados e os respectivos contracheques.

 

"Ela não precisa ter esse documento primeiro para ingressar com ação. Ela pode fazer o pedido na própria ação de equiparação salarial”, explica a advogada.

Além de acionar a Justiça do Trabalho, as mulheres podem apresentar denúncias ao Ministério Público.


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