Quase lá: ‘Ainda tenho medo de voltar ao Brasil’, diz pesquisadora de agrotóxicos em auto-exílio na França

Em entrevista a Marie Claire, a pesquisadora Larissa Bombardi fala sobre o novo livro, 'Agrotóxicos e o Colonialismo Químico', que denuncia os impactos dos agrotóxicos a mulheres e crianças, e conta das dificuldades que enfrenta como mãe solo vivendo fora do Brasil há três anos

Por Manuela Azenha

Marie Claire

 

A pesquisadora Larissa Bombardi não volta ao Brasil há três anos, o mesmo tempo que está sem ver vê a mãe. Ela mesma mãe solo, vive com os dois filhos em Paris, na França, exilada e com medo de voltar ao país onde nasceu, estudou e desenvolveu o atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, motivo pelo qual passou a ser ameaçada. A publicação denuncia a exportação ao Brasil de agrotóxicos produzidos e banidos na Europa, além de fazer um mapeamento do potencial retorno dessas substâncias químicas aos consumidores europeus por meio de produtos importados daqui.

Bombardi conta que o início da vida no exílio foi muito difícil, não só para ela, mas para os filhos, que tiveram que aprender outra língua de uma hora para outra, além de se adaptarem a uma escola nova. “Nossa, esse começo foi terrível. Agora já está muito melhor. O mais velho já fala francês fluentemente e o pequeno também fala super bem. As coisas foram se ajustando. Imagina, eu participando de reunião de pais sem falar nada de francês. Você se joga em um universo e tem que ser malabarista, tendo que lidar com tantas instâncias diferentes. Antes de virmos, não contei para as crianças das ameaças. Ficaram sabendo de tudo aqui”, diz a pesquisadora em entrevista a Marie Claire.

O novo livro, Agrotóxicos e o Colonialismo Químico (Elefante, 108 págs., R$ 40), foi lançado no final deste ano, mas Bombardi não pode vir ao Brasil participar do evento devido ao temor de novos ataques. Ela lembra que o Brasil continua líder de assassinatos a defensores ambientais no mundo. “É muito triste. Iria agora em dezembro, até para lançar o livro, mas para isso precisaria estar inscrita em um programa de proteção de testemunha. Desisti quando soube que não teria o esquema de segurança que imaginei que teria”.

Na entrevista a seguir, Bombardi conta das dificuldades que enfrenta como pesquisadora e mão solo no exílio, e fala sobre o novo livro, que denuncia os impactos dos agrotóxicos a mulheres e crianças: "Para além dos números absolutos de mulheres intoxicadas, tem algo invisível que é essa maneira de atingir diferentemente as mulheres e os homens. Do outro lado, quem mais denuncia os danos e quem protagoniza as experiências agroecológicas também são as mulheres. Então achei que era hora de olhar para isso com calma".

MARIE CLAIRE Nos falamos da última vez em maio de 2021, quando você tinha acabado de chegar à Bélgica. Como foram esses dois anos para você? Continuou morando fora do Brasil?
LARISSA BOMBARDI 
Continuo fora do Brasil. Parece que foram duas vidas em uma. Imagina, foi muita coisa em um período curto de tempo. Estou num programa do governo francês para artistas e pesquisadores exilados, que se chama Pause. Vim para Europa em abril de 2021 com um contrato de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas, sobre criminologia verde na Amazônia. Organizei uma edição especial de uma revista científica da universidade. Depois fiquei um ano fazendo consultoria e palestras. Até que finalmente fui para Paris, em junho de 2022, e tomei contato com esse programa. O governo financia parte e o instituto de pesquisa paga o restante. Estou na Universidade Cidade de Paris, continuo nesse tema mas com abordagem de gênero, focando nos impactos dos agrotóxicos em mulheres e crianças.

MC Você ainda se sente insegura para voltar ao Brasil? Quais são seus planos?
LB 
Totalmente insegura. Com o governo Lula agora há uma avenida aberta para proteção de direitos humanos, mas o Brasil continua líder de assassinatos de defensores ambientais, mesmo no primeiro semestre de 2023. Em um país onde o agronegócio e a mineração dão a nota na economia, com tudo que isso significa, com toda a violência histórica, não tem chance. É muito triste. Faz três anos que não volto ao Brasil, que não vejo minha mãe. Iria agora para lançar o livro, mas para isso precisaria estar inscrita em um programa de proteção de testemunha. Desisti quando soube que não teria o esquema de segurança que imaginei que teria.

MC Você recebeu mais alguma ameaça desde que foi para a Europa?
LB 
Diretamente não, mas coordenei o número especial dessa revista, que aborda da questão agrária. A revista sofreu um baita ataque de hacker, que nunca tinha acontecido, ficou um mês fora do ar. Gastaram muito dinheiro e tempo para colocar a revista no ar de novo. A equipe de TI descobriu que os ataques vieram do Brasil, de Campinas e do Goiás. Claramente foi uma tentativa de silenciamento.

MC Você está com seus dois filhos, né? Você é mãe solo? Como está a situação com eles?
LB
Sou mãe solo. Foi muito difícil…O meu filho mais novo, de 11, é muito tímido e levou bastante tempo para falar português, começou a falar com 3 anos. Quando chegou aqui e ele começou na escola, ficou totalmente em choque. Não conseguia se comunicar, não arriscava. A professora achava que ele tinha alguma questão cognitiva, então um dia me perguntou coisas relacionadas à psicomotricidade, como: ele sabe pular com uma perna só? Sabe cantar? Ela falou que ele ficava na classe o tempo todo sozinho, sussurrando para ele mesmo em português. Levei os cadernos da escola dele do Brasil, e ela ficou impressionada. Falou para eu deixar os cadernos para ele se orgulhar dele mesmo e os alunos da classe também verem do que ele é capaz. Ele estava sendo entendido como uma criança limítrofe quando não é. Para ele foi muito traumático.

O mais velho, de 14, já estava naquela fase de reclamar: “por causa do seu trabalho fui obrigado a deixar meu pai, minha avó, meu cachorro, meus amigos”. Nossa, esse começo foi terrível. Agora já está muito melhor. O mais velho já fala francês fluentemente e o pequeno também fala super bem. As coisas foram se ajustando. Imagina, eu participando de reunião de pais sem falar nada de francês. Você se joga em um universo e tem que ser malabarista, tendo que lidar com tantas instâncias diferentes. Antes de virmos, não contei para as crianças das ameaças. Ficaram sabendo de tudo aqui.

 

Livro da pesquisadora Larissa Bombardi — Foto: Divulgação
Livro da pesquisadora Larissa Bombardi — Foto: Divulgação

MC Você tem planos de voltar ao Brasil no futuro?
LB
 Não tenho. Estou afastada da USP, sem remuneração, e prestando concurso na França e na Bélgica. Não acho que vá ser um ambiente seguro para viver nos próximos anos, ainda mais com criança e adolescente. Não dá para viver numa carga de ameaça.

MC Na época em que falamos você tinha lançado sua pesquisa Geografia das Assimetrias: Colonialismo Molecular e Círculo de Envenenamento sobre o Acordo Mercosul e União Europeia. Neste livro de agora, no que a sua pesquisa avançou?
LB
Dois avanços merecem ser falados. O primeiro é o avanço cartográfico comparando dados do atlas anterior com os dados novos. O quadro piorou muito com relação aos agrotóxicos. Em 2010, tivemos 2.300 pessoas intoxicadas. Em 2019 esse número foi de 5.189. O dobro. Tudo piorou: número de mortes por agrotóxicos, número médio de bebês intoxicados. Em tudo o que diz respeito aos impactos dos agrotóxicos, nos últimos 10 anos sofremos uma piora de um quadro que já era péssimo. Também mapiei o uso de algumas substâncias. A atrazina, por exemplo, substância proibida na União Europeia, aumentou 575% o uso na região Norte, a Amazônia brasileira. Ela está ligada a câncer de estômago, de próstata, de tireóide, de ovário, mal de Parkinson e má formação fetal. O glifosato no mesmo período aumentou 218% na região da Amazônia, em especial Mato Grosso e Tocantins. Mato Grosso aumentou mais de 400% o uso entre 2010 e 2019.

MC E quais são as causas desse aumento?
LB 
A intensificação de duas coisas: tanto o aumento da área plantada de soja, principalmente, quanto o avanço dos cultivos transgênicos, geneticamente modificados para resistir a determinados agrotóxicos. Estou falando do aumento do uso do glifosato, principalmente, associado a câncer de mama, autismo e desregulação endócrina.

MC Essas substâncias são potencialmente cancerígenas ou podemos cravar que são cancerígenas de fato? Existe uma disputa em torno disso?
LB 
Existe uma disputa fortíssima, com lobby ferrenho das indústrias de agrotóxicos, mesmo aqui na União Europeia, que está por esses dias para decidir se renova ou não a licença do glifosato. O pesquisador alemão Peter Closing, maior especialista em glifosato, escreveu um texto discutindo como acontece esse lobby, como as empresas encomendam pesquisas. Todos os artigos que tenho lido, isentos, não financiados pela indústria, de autonomia científica, mostram correlação entre câncer e glifosato. Há unanimidade dentre os cientistas independentes, ou seja, não financiados pelo setor produtivo, em mostrar essa correlação.

MC Por que você decidiu dar um enfoque de gênero ao tema de agrotóxicos?
LB 
Para a infância eu já estava olhando, me indignava pensar que o Brasil é um país com Estatuto da Criança e do Adolescente e tem esse quadro de intoxicação. Quando vi pela primeira vez que cerca de 20% da população intoxicada é de crianças e adolescentes de até 19 anos, pensei que não era possível. Comecei a mapear as faixas etárias maiores e menores. O debate de gênero veio da vontade de colaborar com esse projeto da França, com alguns grupos do Brasil. Já tinha feito um levantamento de gestantes intoxicadas com agrotóxicos, então achei que valeria a pena trazer esse olhar. Tem o recorte de classe, raça e também de gênero quando a gente olha para a população intoxicada. Para além dos números absolutos de mulheres intoxicadas, tem algo invisível que é essa maneira de atingir diferentemente as mulheres e os homens. Do outro lado, quem mais denuncia os danos e quem protagoniza as experiências agroecológicas são as mulheres. Então achei que era hora de olhar para isso com calma.

MC E o que você concluiu desse levantamento com recorte de gênero?
LB 
70% dos casos são de homens. Mas esses números do Ministério da Saúde dizem respeito aos casos de intoxicação aguda: a pessoa passa mal em contato com a substância e é atendida pelo serviço de saúde. Então os casos de câncer, desregulação endócrino, má formação fetal, aborto espontâneo não são computados da mesma forma. Crianças que desenvolveram puberdade precoce no Ceará, bebês de dois anos com pelos pubianos e mamas. Abortos sucessivos no Mato Grosso, em função da exposição. É algo que afeta os corpos das mulheres de forma diferente do que dos homens. Uma gestação já é um período de muita angústia. Quando uma gestante sabe que é um caso de má formação fetal, é uma dor que atinge as mulheres de forma muito perversa. E quem vai cuidar dos doentes todos intoxicados por agrotóxicos, das crianças, dos homens, dos mais velhos? Também fica nas costas das mulheres.

MC Você afirma que as mulheres estão na linha de frente das propostas alternativas e mais saudáveis de produção agrícola. Por que isso ocorre?
LB
 São elas que estão olhando para as gerações futuras e para a questão da saúde, isso é histórico da nossa sociedade. Também pela formação política que as empodera depois de estarem envolvidas em movimentos sociais, feministas, vão para frente, à luta. Tem um grupo na Argentina, de 2002, as mães de Ituzaingó, de Córdoba, um município com produção de soja. Eram chamadas de loucas, mas foram para cima. Elas começaram a relatar casos de lábio leporino, má formação fetal, falta de mandíbula, câncer. Se organizaram e tomaram a frente. Isso há 20 anos, quando mal se falava desse assunto. Normalmente quem é mais sensível a esse tema são as mulheres.

MC Como você avalia o primeiro ano do governo Lula nesse aspecto?
LB 
Tímido por um lado e ousado por outro. Ousado quando o Ministério do Desenvolvimento Agrário faz um esforço grande, organizou o workshop em 6 de outubro, sobre agrotóxicos e saúde da população brasileira. O ministro inaugurou uma linha dentro do ministério ligada à difusão da ciência. Tem esse comprometimento do ministério com a transição agroecológica e a diminuição do uso dessas substâncias. Acho isso louvável e corajoso. Por outro lado, vivemos ainda um número importante de autorizações de agrotóxicos todo mês. Se o governo Lula quer ter esse protagonismo como líder do G20, na discussão global ambiental, tem que escolher um caminho. Espero que juntos os ministérios da Saúde, Meio Ambiente e Desenvolvimento Agrário puxem essa discussão para o Brasil trazer um legado ao mundo no sentido de construir uma legislação internacional para esse tema.

MC Você pode explicar o que significa o conceito de colonialismo químico, abordado no seu livro?
LB 
No Brasil, muitas vezes esses agrotóxicos são usados como armas químicas em conflitos fundiários, para despejar indígenas, camponeses, em áreas onde há intenção de avanço do agronegócio. Um dos mapas deste livro é justamente das populações atingidas por pulverização aérea de agrotóxicos. Essas empresas produtoras de agrotóxicos estão sediadas na União Europeia, vendem para fora substâncias proibidas aqui, que são usadas também nesse processo de degradação ambiental. Além do desmatamento físico, temos o desmatamento químico. É um mecanismo violento dessa nova ordem mundial.

MC Enquanto a agenda anti-agrotóxicos avança dentro da Europa, para fora avança uma política de contaminação dos países do Sul global?
LB
 Sim, e isso é uma discussão que está crescendo. A França decidiu parar com as exportações de agrotóxicos proibidos. A Bélgica seguiu essa decisão, há dois meses. A Comissão Europeia tinha se comprometido a trazer essa discussão e adotar a posição em nível europeu, mas isso não avançou. Tem um lobby fortíssimo aqui das empresas. Quando a França votou essa lei, as indústrias disseram que ia contra a lei da livre iniciativa e a Suprema Corte disse que a vida humana estava acima dos interesses econômicos. É um debate enorme. A União Europeia surfa e beneficia da legislação frágil dos países do Sul.

fonte: https://revistamarieclaire.globo.com/retratos/noticia/2023/11/ainda-tenho-medo-de-voltar-ao-brasil-diz-pesquisadora-de-agrotoxicos-em-auto-exilio-na-franca.ghtml
 
 

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