Emoção marca abertura do encontro. Nísia Trindade aponta os desafios à frente do SUS, chama à luta contra a desigualdade e lembra que democracia é muito mais que eleições. Começa a formulação de estratégias para os próximos anos
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Sob os cantos de apoio de cerca de 3 mil pessoas, Nísia Trindade foi recebida com calor na cerimônia de abertura da 17ª Conferência Nacional de Saúde, na noite de domingo (2/7), em Brasília. “Olê, olê, olê, olá, Nísia, Nísia”, entoaram ainda os presentes, adaptando o jingle clássico ao seu nome. A ministra da Saúde pareceu entender o que significava o carinho: estava de frente para os milhares de delegados que representam os milhões de usuários, trabalhadores e gestores da saúde, em um evento que reúne as principais demandas da sociedade para o Sistema Único de Saúde. “Me sinto apenas como a representante dessa força coletiva do SUS, de defesa da democracia”, declarou ela, que também é presidente da Conferência.
Se não bastasse a força dos movimentos sociais e de luta pela saúde, sempre ignorada nos debates da imprensa comercial quando trata dos interesses de políticos fisiológicos e do mercado em torno da pasta, outro elemento confirmou a importância de Nísia e do evento. Ao lado dela, sentaram-se figuras muito simbólicas: os ministros Marina Silva, do Meio Ambiente e Mudança do Clima; Sônia Guajajara, dos Povos Indígenas; Luiz Marinho, do Trabalho e Emprego; e Cida Gonçalves, da Mulher. Jarbas Barbosa, diretor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). As deputadas Jandira Feghali (PCdoB) e Erika Kokay (PT) e o senador e ex-ministro Humberto Costa (PT), além de Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que organiza a 17ª Conferência.
As saudações de todos em apoio a Nísia refletiam não apenas a importância de sua figura – inclusive como presidente da Fiocruz durante o período da pandemia – mas o reconhecimento de que ela encarna o projeto original do SUS e as demandas de hoje de seus usuários e trabalhadores. Celebrá-la significava reconhecer o trabalho também dos milhares de delegados presentes, eleitos durante as Conferências Municipais, as Estaduais e as Livres, que aconteceram em todo o Brasil no primeiro semestre de 2023. Ao final do seu trabalho, pelos cinco dias de conferência, será fechado um documento com as principais propostas para o Plano Plurianual (PPA) de 2024 a 2027, principal instrumento de planejamento orçamentário de médio prazo do governo federal, e para o Plano Nacional de Saúde (PNS), balizador para as políticas e programas do ministério da Saúde.
“Fazer a defesa do SUS é defender essa organização. Nós é quem sabemos decidir, deliberar e sustentar o maior sistema universal de saúde do mundo”, conclamou Jandira Feghali aos presentes. Ela afirmou emocionar-se com esta, que é a primeira Conferência após a pandemia de covid, e prestou uma homenagem a todos os profissionais de saúde, que estiveram na linha de frente em momentos tão tenebrosos. Jandira ainda fez uma forte defesa, apoiada por sua colega de Congresso, Erika Kokay, do Piso Nacional da Enfermagem, sancionado por Lula mas que corre o risco de ser desmontado pelo STF. “A Conferência deveria tirar uma carta especial em homenagem à luta dessa categoria de profissionais brasileiros”, sugeriu.
Jarbas Barbosa, da Opas, também mostrou preocupação com o que presenciou durante a pandemia. “O que nós vivemos foi a falta de solidariedade”, denunciou, “quando países ricos compravam vacinas para imunizar três ou quatro vezes o tamanho de sua população, enquanto em países da América Latina houve falta.” Jarbas falou a favor de uma parceria entre países da região para a produção de vacinas, equipamentos e insumos, para não depender mais tão fortemente da importação. Sua fala foi ecoada no discurso de Nísia, que reforçou a defesa do Complexo Industrial-Econômico da Saúde, para reduzir a dependência brasileira e incentivar a tecnologia no país.
Por falar em independência, a fala de Nísia trazia o frescor das celebrações em ocasião do dia 2 de julho em Salvador, de onde a ministra acabava de chegar. A data, coincidente com o bicentenário da Independência do Brasil na Bahia, serviu também de reflexão para a socióloga. Ela entoou a parte do hino do estado em que se canta “Com tiranos não combinam brasileiros, brasileiros corações”, e celebrou: “o amanhã já chegou”. Era referência à canção de Chico Buarque que inspirou o tema da 17ª Conferência, Amanhã vai ser outro dia. “Temos que fazer a democracia vitoriosa a cada dia”, convocou.
Na fala da ministra, também expressou-se com força a preocupação com a desigualdade: “Não há saúde quando há fome, quando não há acesso à educação, à cultura, quando o meio ambiente é ameaçado, quando mulheres, crianças e idosos sofrem violência”. Ela também destacou alguns dos desafios agravados com a pandemia, como o aumento da fila de cirurgias do SUS e a disparada da mortalidade materna. “Nossa sociedade não pode mais conviver com problemas históricos como a violência de gênero, o genocídio dos povos indígenas e a morte dos jovens negros nas periferias”.
O reconhecimento, por Nísia, da necessidade de pensar os impactos do meio ambiente na saúde teve um reforço de duas de suas colegas. Marina Silva, em uma fala emocionante, celebrou o fato de o Brasil ter uma mulher comandando a Saúde depois de 70 anos de ministério. Ela lembrou que as mudanças climáticas farão com que as doenças se alastrem, além de aumentar os casos de enchentes, alagamentos e soterramentos, pondo a vida das pessoas em insegurança. Mas anunciou que as mudanças iniciadas com o governo Lula já começam a surtir efeito: “Nós já conseguimos, nos primeiros seis meses, reduzir o desmatamento em 31%”.
Ao fim do discurso de Marina, ouviu-se um rufar de maracás. Eram os representantes de povos indígenas brasileiros, anunciando a fala de Sônia Guajajara. O palco encheu-se de cocares, como o da própria ministra, e por alguns instantes os presentes ouviram em silêncio seu canto. Guajajara apontou o caráter transversal do ministério de Lula, em especial quando agiu para conter a crise no território Yanomami. Foi Nísia quem assinou o decreto declarando crise sanitária na Terra Indígena, lembrou. “Conjuntamente [entre os oito ministérios envolvidos] decidimos retirar todos os invasores do território Yanomami, e devolvê-lo a seu povo – junto de sua dignidade.”
Os indígenas não eram os únicos a colorir com diversidade aquele auditório. Durante o dia todo, ouviram-se as vozes de mulheres e homens negros, pessoas com deficiência, travestis e transexuais, mães de autistas, ativistas pelo uso da maconha medicinal, educadores, enfermeiras e todos que compõem a vastidão de usuários e trabalhadores do SUS. “Foi a luta social que nos permitiu construir a Constituição de 1988”, lembrou Fernando Pigatto, “e também a lei 8080”, que definiu que a Saúde é direito fundamental e dever do Estado, dando as bases para a construção do SUS. Pigatto recordou os tempos difíceis da 16ª Conferência, no primeiro ano do governo Bolsonaro. Naquele momento, segundo ele, “nós fizemos uma pergunta: qual é nosso papel social no Brasil?” Agora, conta, a resposta veio: “Nosso papel foi de sermos agentes reais de formação e resistência”.
Como ato final da cerimônia, Pigatto assinou uma resolução que criou os Conselhos Locais de Saúde – para cada uma das mais de 42 mil Unidades Básicas de Saúde existentes no país. Mais um passo na construção coletiva do SUS.
Até quarta-feira, os 4.048 delegados convocados a Brasília debaterão as diretrizes que o sistema precisa assumir, nos próximos quatro anos. Está agendado, além da programação interna, um ato público em defesa da Saúde na manhã de terça-feira, 4/7, a partir das 8h no Museu da República. Na quarta-feira, no encerramento da Conferência, Lula deverá estar presente para fechar esse grande ciclo de participação social, ponto chave para que seu governo realize as mudanças de que o Brasil precisa.
A importância histórica da 17a Conferência Nacional de Saúde
Lúcia Souto, que trabalha na organização do evento que começa no domingo, celebra o sucesso da participação social em sua construção. Para ela, é momento crucial para assegurar a agenda democrática do novo governo Lula
Publicado 30/06/2023 às 06:22 - Atualizado 30/06/2023 às 00:38
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A ser realizada entre 2 e 5 de julho, a 17a Conferência Nacional de Saúde acontece num clima similar ao da 8a, ocorrida em 1986, logo após o fim do regime militar e que pavimentou as diretrizes do que viria a ser o Sistema Único de Saúde. Ambas carregam uma euforia pelo fim de um período não só autoritário politicamente, como nefasto na vida da população em termos objetivos. Miséria, desemprego e fome são temas centrais a incidir na governança do país, mazelas que se apresentam concretamente nos estabelecimentos de saúde brasileiros.
Desta vez, respira-se um clima de apoio social inédito ao SUS, o que se reflete não só na imensa quantidade de delegados que farão parte das atividades como também em seus preparativos e demandas. Foram centenas de conferências municipais e estaduais, com diversos temas que pela primeira vez chegam à Brasília na forma de propostas de novas políticas.
Lucia Souto, militante histórica da construção do SUS, membro da comissão organizadora da Conferência, considera que estamos testemunhando o nascimento de “uma nova geração de políticas públicas”. Ao Outra Saúde, ela explicou toda a complexidade do momento e sua representatividade na efetivação da democracia.
“É a primeira grande mobilização da sociedade após a vitória do presidente Lula”, celebra, enquanto reconhece o esforço da organização em realizar um grande encontro. “Houve mais de cem conferências livres e isso mostrou uma mobilização inédita da sociedade brasileira, onde se agregaram temas desde a questão de cuidados paliativos, saúde mental, saúde da população negra, das populações quilombolas, da população rural, da mulher, da população LGBTQ+, direito ao envelhecimento, de pessoas com necessidades específicas, uma imensidão de temas”.
Mesmo para quem tem experiência nas construções e ritos políticos do setor, trata-se de um momento excepcional, um contexto que coloca diversas responsabilidades sobre os ombros daqueles que prometeram reconstruir o Brasil. “Está no mesmo patamar de nossa luta histórica pela Constituição de 1988 e sua finalidade de assegurar a qualidade de vida, porque a saúde, para além de tudo, é uma política pública fundamental de distribuição de renda”, sintetizou Lucia.
As atividades, que serão realizadas no Centro Internacional de Convenções do Brasil, em Brasília, terão início neste domingo e encerrarão na quarta-feira. Lula estará presente em sua cerimônia de inauguração e reencontrará uma série de atores políticos que protagonizaram a Conferência Livre Democracia e Saúde, organizada pela Frente pela Vida e realizada em 5 de agosto de 2022, que pode ser tida como marco inaugural do processo que culmina na capital federal.
Lucia Souto, membro do Conselho Nacional de Saúde e ex-presidente do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), reivindica tal momento como crucial não só da reconstrução do SUS como da própria vitória eleitoral. “Tiramos diretrizes fundamentais como a saúde como direito e não mercadoria, a necessidade de uma rede de atenção integral para políticas de cuidado e bem-estar, saúde como eixo estratégico de desenvolvimento – uma novidade nas elaborações apresentadas à sociedade, não só pela lógica do complexo econômico industrial do setor. Também pela lógica de que saúde é um bem público e, portanto, um eixo estratégico que pode não só assegurar soberania e segurança sanitária ao país, mas também ser um vetor importante de garantia de políticas de bem-estar e cuidados na sociedade brasileira, além de gerar trabalho e renda de qualidade. A saúde é realmente um eixo estratégico para esse novo momento da sociedade brasileira”.
Para ela, são tais visões, que incidem sobre o papel do Estado, que seguem em disputa, como se manifestou nas movimentações do bloco político do “Centrão” – corresponsável direto pela tragédia da pandemia – em torno do cargo da ministra da Saúde, Nísia Trindade.
“Nossa leitura”, expõe Lúcia, “é de que se trata de um terceiro turno. A eleição absolutamente gigantesca do presidente Lula para a presidência da República não foi nada trivial. O que está em disputa, portanto, é o próprio governo Lula. A agenda que ganhou as eleições precisa ter força social e política para prosseguir. E estamos vendo aí o Banco Central sabotando a política econômica, ao se recusar a derrubar a taxa de juros, sem nenhuma base na realidade concreta. É um embate que será cotidiano, o que só ressalta a importância da 17a”.
No fim das contas, estamos falando do embate entre a democracia e a barbárie. E a Conferência Nacional da Saúde terá a chance de mostrar à sociedade que seus temas são estruturantes de uma democracia real e duradoura.
Qual a importância desta 17ª Conferência Nacional de Saúde à luz do contexto político, social e sanitário que o Brasil viveu no período recente?
A importância da décima 17a é da conjuntura, do macrocontexto. O Brasil atravessou a maior catástrofe sanitária da nossa história e o projeto do governo anterior era o da necropolítica, do genocídio. Realmente produziu os resultados pretendidos, através da morte de mais de 700 mil pessoas em decorrência da covid. Foi a pior gestão da pandemia no mundo: o Brasil com 3% da população mundial teve mais de 10% das mortes por covid. Sabemos que mais da metade dessas mortes, fora a subnotificação e apagão de informações, poderiam ser evitadas.
Saímos de um governo que pregou uma comunicação tóxica com a sociedade e gerou um enorme desalinhamento entre as três esferas de governo, cuja articulação é sustentáculo do SUS, pois a democracia participativa e a integralidade da atenção básica à saúde passam exatamente pela questão do pacto interfederativo. Isso foi rompido na pandemia, com o governo federal afrontando as outras esferas de governo. Enfim, tivemos realmente uma destruição. E a partir do golpe que destituiu a presidenta Dilma houve um desfinanciamento agudo da saúde, com a Emenda Constitucional 95 [o “teto de gastos”, que limitou os gastos sociais por 20 anos em 2016].
Realmente atravessamos uma situação de destruição de direitos e foi nesse contexto que surgiu a Frente Pela Vida. As entidades históricas da reforma sanitária brasileira compreenderam que tinham obrigação de se posicionar com vigor naquele momento e foi o que fizemos. Houve um momento em que nós tivemos uma duríssima discussão no fórum do Conselho Nacional de Saúde, porque não havia sequer recursos previstos para a viabilização da 17a. Mas, diante do momento político, chegamos a dizer “vamos fazer de qualquer forma”, porque consideramos um momento absolutamente decisivo e estratégico de mobilização da sociedade na defesa da democracia, do direito universal ao SUS, do direito à saúde e dos direitos universais de cidadania. Está no mesmo patamar de nossa luta histórica pela Constituição de 1988 e sua finalidade de assegurar a qualidade de vida, porque a saúde, para além de tudo, é uma política pública fundamental de distribuição de renda.
Portanto, essa conferência terá tudo para receber uma quantidade de demandas superior a suas edições anteriores.
Sim, pois estamos no contexto de catástrofe recente. E é a primeira grande mobilização da sociedade após a vitória do presidente Lula. Estamos nos organizando para fazer a maior Conferência da nossa história. E tivemos uma novidade fundamental no processo, que foram as conferências livres. Já houve conferências livres em outros processos de conferências nacionais de saúde, mas a novidade deste contexto atual é que os delegados das conferências livres são delegados com direito a voto, igualmente aos delegados nomeados nas conferências estaduais e municipais.
Houve mais de 100 conferências livres e isso mostrou uma mobilização inédita da sociedade brasileira, onde se agregaram temas desde a questão de cuidados paliativos, saúde mental, saúde da população negra, das populações quilombolas, da população rural, da mulher, da população LGBTQ+, direito ao envelhecimento, de pessoas com necessidades específicas, uma imensidão de temas. Enfim, foi muita mobilização, que mostra que a sociedade brasileira quer ser protagonista e sujeito político desse novo momento em que ingressamos desde a eleição do presidente Lula, o que já é fruto dessa ampla mobilização da sociedade.
Lembro ainda que a primeira conferência livre a se realizar foi a da Frente Pela Vida, em 5 de agosto de 2022. Havíamos feito uma análise de conjuntura de que era necessário mobilização da sociedade para termos força social e política para sustentarmos a agenda de transformações, de reconstrução e transformação do Brasil.
E assim o fizemos. Essa conferência foi a primeira da série de conferências livres, cuja resolução foi assinada pelo presidente do Conselho Nacional de Saúde, o que abriu o processo das conferências livres. Tivemos a presença honrosa do presidente Lula, que assumiu o compromisso com as diretrizes apresentadas naquela. Tiramos diretrizes fundamentais como a saúde como direito e não mercadoria, a necessidade de uma rede de atenção integral para políticas de cuidado e bem-estar, saúde como eixo estratégico de desenvolvimento – uma novidade nas elaborações apresentadas à sociedade, não só pela lógica do complexo econômico industrial do setor, mas pela lógica de que saúde é um bem público e, portanto, um eixo estratégico que pode não só assegurar soberania e segurança sanitária ao país, mas também ser um vetor importante de garantia de políticas de bem-estar e cuidados na sociedade brasileira, além de gerar trabalho e renda de qualidade.
A saúde é realmente um eixo estratégico para esse novo momento da sociedade brasileira. O outro ponto das diretrizes daquele documento apresentado ao presidente Lula era a questão do financiamento estável: precisávamos inverter essa dinâmica de que o percentual do PIB gasto na saúde tinha mais da metade destinado ao setor privado, que atende 25% da população. Apontamos para 6% do PIB na área da saúde pública, a fim de invertermos essa equação onde mais de 60% dos gastos do setor são privados, como é hoje.
Outra questão também levantada naquele momento fundamental era a carreira de Estado para os profissionais do SUS. Por último, a questão vital da democracia. É importante democratizar para valer a sociedade brasileira e a 17a Conferência é um exemplo vigoroso e absolutamente extraordinário de democratização da sociedade brasileira.
Será uma conferência estratégica para esse novo momento de reconstrução e transformação do Brasil. Será realmente um momento culminante de um processo que aconteceu antes e prosseguirá, aprofundando nos territórios todo o trabalho de desenvolvimento e articulação que venho chamando de uma nova geração de políticas públicas, que possa trabalhar a intersetorialidade, dialogar com aquele conceito inaugural do SUS, estabelecido na 8a Conferência, de que a saúde é fruto da determinação social do processo saúde-doença, como está no artigo 196 da Constituição Federal. A Conferência representa um processo muito rico que a sociedade brasileira vive no momento.
Quais as suas expectativas? Que direcionamentos podem sair da conferência no sentido de melhorar e ampliar o SUS?
As expectativas são muito grandes e com essa grande mobilização trazemos a base social e política necessária para sustentar a agenda de qualificação do Sistema Único da Saúde no sentido de um financiamento estável. Já estamos vendo a retomada de programas históricos que tinham sido totalmente destruídos, como atenção básica e saúde mental, saúde da população negra, dos povos originários, dos povos indígenas. O ministério está retomando várias políticas, houve uma recomposição parcial do orçamento de 2023 e já há um diálogo bastante forte entre o ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Saúde, e o ministério tem sido uma força presente na articulação da Conferência enquanto gestor do sistema.
É bom enfatizar que a 17a foi convocada para início de julho exatamente para dar tempo de construir um plano nacional de saúde a partir de todo esse amplo e diverso debate nacional e que o Plano Nacional de Saúde dialogue com Plano Plurianual participativo em torno de uma agenda construída conjuntamente entre sociedade e governo.
A agenda já está sendo alinhada para que a gente possa ter como fruto um diálogo cada vez mais qualificado, com a sociedade e governo, e expresse no plano nacional de saúde. Outro motivo de a Conferência ter sido convocada para início de julho é que em agosto será votada a Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Que esse grande debate nacional em torno de um plano nacional de saúde se reflita também de uma maneira dialogada no próprio orçamento e, portanto, assegure uma mudança de qualidade da atenção à saúde da população brasileira. Tal melhora já está em curso, mas devemos aperfeiçoá-la.
Como enxerga os blefes midiáticos em relação a uma suposta instabilidade de Nisia no ministério da Saúde? Que embates estariam por trás disso? Esses embates estarão de alguma maneira representados na Conferência?
Nossa leitura é de que se trata de um terceiro turno. A eleição absolutamente gigantesca do presidente Lula para a presidência da República não foi nada trivial. Cada vez mais começamos a nos apropriar, porque não havia visibilidade disso, do esquemão que foi mobilizado internacional e nacionalmente. Recursos jogados de uma maneira inédita, orçamento secreto, que tem um impacto enorme na área da saúde, enfim, toda essa mobilização gigantesca para impedir a vitória do presidente Lula, que ainda assim conseguiu vencer as eleições.
O que está em disputa, portanto, é o próprio governo Lula. A agenda que ganhou as eleições precisa ter força social e política para prosseguir. E estamos vendo aí o Banco Central sabotando a política econômica, ao se recusar a derrubar a taxa de juros, sem nenhuma base na realidade concreta. É um embate que será cotidiano, o que só ressalta a importância da 17a.
Trata-se, na verdade, de uma disputa de uma consciência, como atrás dizíamos, sanitária e crítica da sociedade brasileira, que possa dar conta de olharmos para os enormes desafios que o Brasil tem de enfrentar, como a desigualdade abissal. No contexto da pandemia o SUS ganhou uma legitimidade muito grande na sociedade brasileira, a ministra Nísia Trindade é expressão desse novo que emergiu na sociedade brasileira e tem uma grande legitimidade na população. A Fiocruz foi um esteio naquela tragédia, naquela catástrofe da pandemia.
A chegada da Nísia ao ministério foi a vitória daqueles que lutaram em uma instituição centenária como a Fiocruz. Na hora em que o mais o Brasil precisava, a Fiocruz não faltou. Foi com esse acúmulo e bagagem que o presidente Lula identificou na ministra Nísia Trindade um ponto crucial. Como ele mesmo falou na primeira Conferência Livre pela Saúde e a Democracia, organizada pela Frente Pela Vida, lá em agosto: “saúde é investimento, não é gasto”. Sinalizou ali que seria uma prioridade do governo. Quando Lula escolheu Nísia, com uma grande aprovação da sociedade, colocou um ponto fundamental da agenda e do programa que ganhou as eleições do Brasil.
A saúde foi um ponto estratégico da campanha do presidente Lula, um ponto que construiu e pavimentou essa vitória. Teremos expressões das disputas em torno da saúde na Conferência, mas imagino que, majoritariamente, aqueles que estarão presentes vão para construir um Brasil de que tanto precisamos, da solidariedade, do bem-estar e dos cuidados. E a saúde representa uma política de construção participativa exemplar, uma política de cuidados e bem-estar.
Com certeza predominará a vontade enorme da população brasileira de construir um país para todos nós vivermos de uma maneira digna, com qualidade, enfrentando a desigualdade, a fome, a questão da crise climática extrema, intimamente correlacionada com as emergências sanitárias e outras que virão, pois a crise climática é realmente grave.
Há toda uma agenda que precisa ser trabalhada e cada vez mais ampliada, como já está sendo. A própria mobilização da Conferência é uma expressão da consciência crítica da sociedade brasileira por uma emergencial transformação do Brasil, com enfrentamento dessas agendas críticas que precisam ser construídas. Já estamos no caminho, muita coisa já está sendo feita e a partir da 17a Conferência se expressará uma força para sustentar a agenda de transformação e reconstrução do país.
Acredita que se ampliou na opinião pública uma consciência em relação à importância do SUS? Isso poderá ser capitalizado na Conferência?
Sim, sem dúvida nenhuma. Inclusive naquele momento crítico da necropolítica do governo anterior, quando surgiu a grande polêmica da proposta de imunidade de rebanho contra a vacina, o negacionismo, é bom lembrar que a esmagadora maioria da população foi se vacinar e o SUS era visto de uma maneira emocionada pelas pessoas. A mensagem “Viva o SUS”, com seu cartazinho simples e singelo aparecendo nas redes sociais, mostrava o reconhecimento da população brasileira frente à importância do Sistema Único de Saúde, que salvou vidas.
A catástrofe poderia ter sido muito maior se não fosse o SUS. Vivemos situações muito críticas. A própria CPI da covid mostrou danos graves, como na questão da Prevent Senior, onde médicos propunham que os profissionais daquela empresa fizessem o uso do kit covid, que comprovadamente não era indicado e ainda podia fazer mal, levar à morte os pacientes, como levou de fato na própria Prevent Senior, com relato de pessoas que se salvaram graças aos familiares. Isso garantiu para sempre uma legitimidade do SUS diante da população brasileira, inclusive na recomposição do orçamento, a questão do financiamento adequado. Isso com certeza já está se expressando no amplíssimo processo de mobilização da sociedade brasileira e até na comunicação, pois até hoje a mídia que deu corda para a boataria em torno do ministério não entendeu nem reconheceu o papel fundamental do SUS.
Por isso fica claro que novas disputas ocorrerão, porque aqueles que tentaram o tempo inteiro fazer da saúde uma mercadoria para ganhar dinheiro, inclusive naquela coisa que a CPI mostrou de compras irregulares de vacina e agora na tentativa de se criar um mercado de sangue, que graças à ampla ação da sociedade foi retirado de pauta, continuam com suas agendas. A tensão de transformar saúde em mercadoria é presente, mas fortalece-se de uma maneira muito consistente a ideia da saúde como direito universal de cidadania. Veremos a defesa da saúde na democracia, da saúde como direito universal, de cidadania, a questão do financiamento estável, tudo isso se manifestará na Conferência e com certeza a agenda de reconstrução e transformação do Brasil terá a saúde como um eixo estratégico do nosso desenvolvimento.
Depois da dura batalha da transição de governo para conquista de orçamento mínimo, é de se pensar que o SUS estará no centro das lutas pela concretização da democracia no Brasil? Esse tipo de disputa, condicionada por um certo modelo econômico, se repetirá nos próximos tempos?
O SUS certamente será um dos eixos em disputa, que passa pela ideia da saúde como direito universal de cidadania, hoje um debate da América Latina inteira e também um debate global. No processo da pandemia acabamos por ver o surgimento do debate da saúde como bem público global, em torno inclusive da temática das vacinas, porque tivemos a inacreditável e inadmissível situação de países não terem acesso à vacina por não poderem pagar. Isso é algo inadmissível. A pandemia revelou uma consciência muito profunda de que saúde tem de ser um bem público global. E o Brasil tem uma história de liderança da construção de um sistema universal de saúde exemplar, inclusive modelo e inspiração para vários países do mundo.
Vamos ter na pré-conferência um encontro latino-americano, com participação da OPAS, sobre os desafios dos sistemas universais de saúde na América Latina, algo em pauta em vários países, como é o caso de Colômbia, Bolívia, Chile, Argentina. Enfim, esse debate da saúde como direito universal é um debate central hoje, assim como é central a questão ambiental, porque as emergências sanitárias também são uma ameaça à vida das pessoas e a saúde lida com o bem mais fundamental, a vida.
Portanto, a conferência acontece num momento absolutamente fundamental de tal disputa. Começamos o primeiro ano de governo com ampla mobilização da sociedade em torno da saúde como direito universal de cidadania, em torno do financiamento estável; uma disputa que, no fundo, também é pelo enfrentamento da desigualdade no Brasil. Ou seja, a agenda da reforma tributária, das reformas democráticas, como reforma agrária, todas essas condições que determinam o processo da saúde-doença, têm uma força muito grande e podem ser puxadas pela saúde.
E o pós-conferência também vem num momento que converge com uma agenda do Governo Federal de retomada de desenvolvimentos territoriais, da intersetorialidade para valer, quer dizer, trabalhar realmente com um novo momento da presença do Estado, de uma forma inovadora, construindo essa nova geração de políticas públicas. É nesse macrocontexto que ocorre a 17a Conferência Nacional de Saúde, sem dúvida parte integrante de uma disputa civilizatória.
Como diz um dos eixos temáticos da Conferência, há o Brasil que nós temos e o Brasil que nós queremos. Como construir e transformar esse Brasil que temos no que queremos, no presente e futuro imediato, são temas fundamentais. São os desafios do nosso tempo e a Conferência é parte absolutamente substantiva dessa construção. Mostraremos mais uma vez a contribuição enorme da da saúde como política pública, que nasceu com o DNA da participação, e queremos honrar essa tradição histórica.
A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?
Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.