Lideranças indígenas articulam primeiras demarcações de terras do governo Lula
Laércio Portela, em 26/04/2023, 17:31. Marco Zero
Crédito: Laércio Portela/MZ Conteúdo
Seis mil indígenas de todo o Brasil estão acampados desde a segunda-feira (24) ao lado do Teatro Nacional, em Brasília, a poucos metros do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. A 19a edição do Acampamento Terra Livre na capital brasileira tem uma diferença este ano. Pela primeira vez na história, lideranças indígenas ocupam espaços decisórios de poder no governo federal para impulsionar a demanda reprimida pela demarcação das terras dos povos originários.
A presidenta da Funai, Joênia Wapichana, ex-deputada federal pela Rede, informou que 14 terras estão prontas para serem homologadas, tendo passado por todo o trâmite legal da Fundação. A expectativa é de que a totalidade ou parte desses territórios sejam homologados na próxima sexta-feira (28), quando o presidente Lula confirmou que visitará o acampamento. O anúncio significará a retomada das demarcações depois de quatro anos de paralisação no governo Bolsonaro. Segundo dados da Funai, o Brasil possui cerca de 680 territórios indígenas regularizados e mais de 200 aguardam análise para serem demarcados.
Joênia esteve no Acampamento Terra Livre para relatar os desafios dos primeiros meses de governo, numa Funai com déficit de servidores, sem planos de cargos e salários, nem veículos e condições mínimas de segurança para fiscalizar e conter a atuação de madeireiros e garimpeiros nas terras indígenas. Ela reivindica, inclusive, que os órgão tenha poder de polícia para fazer frente ao crime organizado. Contou que a Fundação tem atuado muito sob a pressão de ordens judiciais. Entre as ações planejadas estão a revisão da estrutura de funcionamento do órgão e a realização de concurso público.
A prioridade número 1, no entanto, é destravar as demarcações, revisando com muita atenção os documentos que recebeu do governo Bolsonaro. “Separamos 14 processos para homologação. Eles passam por pareceres técnicos. Eu não vou assinar qualquer papel da outra gestão. Eu tenho que ter responsabilidade de atualizar esses processos, ver se eles estão conforme a reivindicação da nossa comunidade. Não posso assinar um documento que estava parado por 10 anos porque pode ter mudado alguma coisa”. Nesses três primeiros meses de gestão, a Funai e o Ibama revogaram duas instruções normativas que flexibilizavam o licenciamento e a exploração de madeira em terras indígenas.
O principal símbolo da virada política da gestão federal com o recém-protagonismo dos povos originários é a criação do Ministério dos Povos Indígenas comandado por Sônia Guajajara, deputada federal licenciada e ex-candidata a vice-presidente do Brasil pelo Psol.
Nos dez anos anteriores, Sônia trabalhou na coordenação do Terra Livre, ajudando a organizar o acampamento. Agora, participa como ministra de Estado. “Nós estamos aqui hoje com esse compromisso de reconstruir o nosso país. O povo Yanomami é o símbolo do início desse governo. Vocês imaginam o que teria acontecido se o presidente Lula não tivesse sido eleito? Se não tivéssemos um ministério indígena, parlamentares indígenas, uma Funai indígena, uma Sesai indígena parta acabar com essa crise humanitária?”.
Lideranças indígenas que ocupam espaços de poder no governo federal, no Congresso e nos estados participam de plenária do Acampamento Terra Livre, em Brasília. Crédito: Laércio Portela/MZ Conteúdo
A Sesai a que a ministra se refere é a Secretaria Especial de Saúde Indígena, que integra o Ministério da Saúde e nunca havia sido gerida por um indígena até a posse este ano de Weiber Tapeba, advogado reeleito vereador de Caucaia (CE) pelo PT em 2020. Assim como Sônia e Joênia, ele esteve no acampamento para fazer um balanço dos primeiros dias de governo, lembrando que falou ao próprio Lula na edição do ano passado que os povos indígenas não queriam apenas participar da campanha, mas ajudá-lo a governar o país.
“Nós trouxemos no ano passado a nossa encantaria, a força da nossa ancestralidade pra dentro da campanha numa disputa onde a democracia estava ameaçada. Com a força do toré e dos nossos encantados agora estamos dentro do Parlamento e da Esplanada dos Ministérios”, afirmou Weiber. Uma das primeiras medidas da nova Sesai foi anular a decisão do governo Bolsonaro de proibir investimentos federais de saúde em terras não homologadas. “Estávamos sendo duplamente punidos por um Estado que sempre foi leniente, omisso e negligente para demarcar nossos territórios”.
A Sesai foi um dos órgãos mais aparelhados pelos militares no governo passado, quando assumiram a maioria das coordenações dos 34 distritos sanitários indígenas do país. Segundo Weiber, existem unidades de saúde indígena que sequer têm acesso a água potável, internet e energia elétrica, enquanto os servidores enfrentam exaustivas jornadas de trabalho. “Estamos operando com o orçamento do ano passado, mas vem aí o novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e a saúde indígena entrará como prioridade”, informou.
Em seu primeiro mandato de deputada federal por Minas Gerais, Célia Xakriabá (Psol) participa de uma articulação junto ao Ministério da Saúde para que 5% das equipes do novo Programa Mais Médicos sejam designados para territórios indígenas porque, segundo ela, foi com o Mais Médicos que pela primeira vez os 34 distritos indígenas tiveram cobertura completa de saúde. Em sua passagem pelo acampamento deste ano, Célia contou que se reuniu com o ministro da Educação Camilo Santana para pleitear a criação da Secretaria Nacional de Educação Escolar Indígena.
Para Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, o momento é de celebrar a conquista histórica da ocupação dos espaços de poder e decisão, relacionando esse momento aos anos de luta e resistência do Acampamento Terra Livre em defesa dos territórios, das culturas e modos de vida indígenas. Mas não dá para baixar a guarda porque a oposição conservadora e anti-indígena é muito forte no Congresso. De acordo com ela, existem sete medidas protocoladas no Congresso e uma ação no STF movida pelos opositores para que a demarcação de terras indígenas volte a ser da responsabilidade do Ministério da Justiça.
“As forças políticas e econômicas continuam fotes e articuladas para impedir que nossos modos de vida sejam exercidos por nós em nossos territórios indígenas. A terra continua sendo o principal objeto de disputa pelo poder político e pelo poder econômico e nós estamos todos os dias nos articulando para destravar esse processo de demarcação de terra”, explicou a ministra. Essa articulação passa pelo convencimento de governadores e prefeitos de cidades que possuem territórios indígenas a criarem secretarias específicas de povos indígenas. Onze estados já aderiram à proposta e criaram as suas.
Atos e marchas movimentam Acampamento
Com o tema O futuro indígena é hoje. Sem demarcação não há democracia, o acampamento Terra Livre tem previstas mais de 30 atividades divididas em cinco eixos temáticos, sendo eles: Diga o povo que avance, Aldear a Política, Demarcação Já, Emergência Indígena e Avançaremos. Os eixos contam com plenárias sobre mulheres indígenas, parentes LGBT+, gestão territorial e ambiental de terras indígenas, acesso a políticas públicas e povos indígenas em isolamento voluntário.
Durante a programação, o movimento indígena promove três marchas pelas ruas de Brasília. A primeira, até o Congresso Nacional, aconteceu na segunda-feira (24) para pedir a derrubada dos projetos de leis anti-indígenas como o PL 191 que permite a mineração em terras ancestrais e o PL da grilagem. Projetos de Lei como esses tornam os indígenas os alvos mais frequentes da violência do campo no Brasil, representando 38% das pessoas assassinadas em 2022, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Indígenas pataxó do sul da Bahia se integraram à marcha até o Congresso Nacional contra projetos de lei que liberam a grilagem em terras pertencentes aos povos originários. Crédito: Laércio Portela/MZ Conteúdo
A segunda caminhada acontece nesta quarta (26) no ato intitulado Povos Indígenas decretam emergência climática com o objetivo de chamar a atenção para o enfrentamento às violações ocasionadas pelas mudanças climáticas. Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), entidade organizadora do Acampamento Terra Livre, reitera que as terras indígenas são as áreas com maior biodiversidade e com vegetação mais preservadas, visto que são territórios protegidos e manejados pelos povos originários.
Um exemplo disso é o resultado do cruzamento de dados realizado pela Apib em 2022, em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), com dados do MapBiomas. O estudo aponta que no Brasil 29% do território ao redor das terras indígenas está desmatado, enquanto dentro das mesmas o desmatamento é de apenas 2%. “Não existe solução para a crise climática sem os povos indígenas e a demarcação plena das nossas terras”, reforça Dinamam.
Nesta quarta-feira (26), lideranças indígenas se reunirão em vigília em frente ao Supremo Tribunal Federal para reivindicar a declaração de inconstitucionalidade do Marco Temporal. O tema deve voltar a julgamento na corte no dia 7 de junho. Na quinta (27), o Acampamento Terra Livre irá debater em plenária as consequências do Marco Temporal para os direitos dos povos indígenas.
O Marco Temporal é uma tese proposta numa ação judicial movida pelo antigo PFL – que se transformou no DEM e depois se fundiu ao PSL para formar o União Brasil – de que os indígenas só poderiam reivindicar para reconhecimento e demarcação os territórios que eles ocupavam no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Uma ação que visa questionar o direito originário a essas terras e desconhece todo o processo de violência e expropriação a que os povos indígenas foram submetidos no Brasil. “Nosso marco não é temporal, ele é ancestral. Se querem mesmo falar do marco temporal, nós temos que falar do marco temporal da invasão no Brasil”, critica Célia Xakriabá.
'A luta pelo território ainda é a pauta mais importante para os indígenas', diz Ceiça Pitaguary
Ceiça Pitaguary conversou com o BdF sobre o Abril Indígena e sobre as expectativas de demarcação de terra no Ceará.
Ouça o áudio:
Estamos no Abril Indígena, mês em que se celebra as lutas e conquistas dos povos indígenas no Brasil, mas que também lembra os desafios, principalmente pela garantia de direitos.
Leia mais: Povos originários defendem demarcação de terras para enfrentar crise climática
O estado do Ceará vem apresentando avanços nas pautas indígenas como, por exemplo, a criação da primeira secretaria dos Povos Indígenas do estado. Mas quais as expectativas com a criação da secretaria? E com a Criação do Ministério dos Povos Indígenas? Quais pautas ainda precisam avançar? Como está a questão da demarcação de terras indígenas no estado?
Para falar sobre essas pautas e sobre o Abril Indígena, o Brasil de Fato conversou com Ceiça Pitaguary, liderança e Secretária Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena do Ministério dos Povos Indígenas.
Brasil de Fato: Temos agora a primeira secretaria dos povos indígenas do estado do Ceará. Quais as expectativas com a criação dessa secretaria?
Ceiça Pitaguary: O governador do estado do Ceará, Elmano de Freitas, seguindo o que o presidente Lula criou a nível nacional, que foi o Ministério dos Povos Indígenas, e também atendendo a um pleito antigo, uma reivindicação do movimento indígena do estado do Ceará, criou a primeira Secretaria dos Povos Indígenas do Estado. Essa secretaria é cheia de significados e simbolismo para nós povos indígenas do estado do Ceará.
Hoje nós contamos com 15 povos indígenas identificados pelo movimento, reivindicando 22 territórios, e essa secretaria vem no momento oportuno, momento em que os governos se abrem, mostram que estão dispostos a apoiar a causa dos povos indígenas e criam secretarias ou departamentos pelo país todo. Então as expectativas que nós temos são as melhores possíveis porque nunca o estado do Ceará tinha dado essa abertura para o movimento indígena, apesar do movimento indígena sempre estar reivindicando, estar presente nas manifestações não tínhamos ainda essa abertura.
Este ano fomos recompensados, podemos dizer assim, por toda a luta que fizemos, também no período eleitoral, e temos a expectativa que a secretaria possa estreitar os laços com o governo estadual, possa alinhar as outras secretarias e possa também fortalecer a luta dos povos indígenas e destravar alguns processos de demarcação de terra indígena. A responsabilidade da demarcação de terra indígena é do governo federal, mas os estados podem colaborar também com essa etapa de demarcação colocando à disposição corpo técnico para ajudar na demarcação física como já foi feita na Terra Indígena Barra do Mundaú, em Itapipoca e no Povo Tapeba.
Quais as pautas de lutas dos povos indígenas no Ceará?
As pautas e as lutas dos povos indígenas no Ceará continuam sendo a mesma de todo o Brasil, que é a luta pela demarcação, regularização dos seus territórios. Apesar de termos avanços significativos em outras áreas como educação e saúde, a luta pelo território ainda é a pauta mais importante para os povos indígenas aqui do estado do Ceará e para os povos indígenas do Brasil como um todo.
Como está a situação da demarcação de terras indígenas no estado do Ceará?
Nós possuímos aqui no estado do Ceará 15 povos reivindicando 22 territórios, mas até hoje só temos no estado do Ceará uma terra totalmente regularizada. Quando digo totalmente regularizada é a terra passando por todas as etapas desde a identificação, delimitação, demarcação, desintrusão, homologação pelo presidente da república e registro no cartório de Patrimônio da União. É a terra indígena Córrego João Pereira, que se encontra localizado no município de Itarema, e possuímos mais cinco terras que estão no processo de demarcação física. Estamos na expectativa de agora em abril mais uma terra, do Povo Tremembé, no município de Itapipoca, Terra Indígena Barra do Mundaú seja homologada pelo presidente da república.
Quais os maiores desafios da população indígena do Ceará em relação às pautas de luta?
Os maiores desafios da população indígena no Ceará é a regularização fundiária dos seus territórios. Estamos em um estado que esse processo de regulação fundiária é dos mais atrasados, só perdemos para o Piauí e para o Rio Grande do Norte, estados que recentemente emergiram a questão étnica, mas em termos de Brasil o estado do Ceará, pela luta antiga dos seus povos, é um dos estados mais atrasados, por possuir apenas uma terra indígena regularizada, cinco demarcadas e outras tantas sem nenhum processo de identificação, sem nenhuma providência.
Como se deu a organização do Abril Indígena no estado do Ceará?
Os povos no estado do Ceará costumam ter sua programação do Abril Indígena nos seus territórios. Nós temos 43 escolas indígenas e todas elas fazem a sua programação dentro do território, mas também temos programação no estado com parceiros na capital como seminários, feiras, exposições, então isso vai acontecer durante todo o mês de abril, já que é o mês dedicado aos povos indígenas.
E como foi preparação para o Acampamento Terra Livre deste ano?
O nosso povo no estado do Ceará já está mobilizado para também se somar com os outros povos na Esplanada dos Ministérios e também trazer reinvindicações do estado e também dar maior visibilidade às lutas e aos processos de demarcação do estado do Ceará.
O Acampamento Terra Livre é a grande data esperada pelos povos indígenas do Brasil todo, e o Ceará, como sempre, não fica de fora dessa grande manifestação, dessa grande assembleia os povos indígenas do Brasil que chega a reunir mais de seis mil lideranças. Então temos a expectativa que nesse acampamento o presidente Lula venha e assine homologações de terras indígenas que estavam paradas a mais de quinze anos sem providência nenhuma.
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Fonte: BdF Ceará
Edição: Camila Garcia