Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) afirma que dará continuidade a todo o processo de reparação de danos provocados no período da ditadura militar
A professora Eneá de Stutz e Almeida, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), é a nova presidente da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. O comitê foi fundado em 2002 para promover a reparação a perseguidos políticos de setembro de 1946 a 1988.
Primeira mulher a presidir a Comissão de Anistia, Eneá diz assumir o cargo com muita esperança no futuro do país. Membro da organização desde 2009, ela afirma que dará continuidade a todo o processo de reparação de danos provocados no período da ditadura militar. "É uma conquista notável, um verdadeiro marco para a UnB", diz, pontuando que o processo de análise de todos os casos será dividido em dois movimentos simultâneos.
"Primeiramente, a organização irá estabelecer um levantamento de todos os pedidos julgados e verificar quais foram ilegalmente julgados. Dessa forma, em paralelo com essa etapa, os integrantes irão julgar os pedidos que ainda não foram submetidos a análise", afirma Eneá.
A organização atua por meio da Justiça de Transição, conjunto de mecanismos que envolve a reparação integral, o binômio memória e verdade, a justiça e responsabilização dos violadores de direitos humanos, além da reforma nas instituições com o intuito de promover a democracia.
Eneá lembra que a mesma norma que confere essa reparação à população também regulamenta a Comissão de Anistia, ou seja, a existência dessa delegação é inerente ao mandato governamental que esteja atuando. Ela frisa que durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro a comissão foi descaracterizada de seu papel fundamental. “Sempre trabalhamos de maneira independente. Porém, durante o governo passado, a comissão foi indevidamente vinculada ao governo. Nossa organização foi usada ilegalmente como palanque político”, afirma.
Debate sobre ditadura
Para Eneá, a comissão é fundamental para a manutenção da democracia, "uma vez que os atos antidemocráticos que culminaram no 8 de janeiro são fruto da negação da ditadura". "Observamos nesse episódio a indiferença do estado perante questões que envolvam a retaliação de situações passadas durante a ditadura", afirma.
Ainda segundo ela, os principais fatores que caracterizam o período da ditadura militar são a imprudência do governo em não responsabilizar torturadores, a falta de democratização de várias instituições e os retrocessos que o Brasil sofreu nas comissões que restauram essas iniciativas. “Não devemos apagar o período que passamos, nada de passar a borracha. Sem esquecimento, mas com memória”, comenta.
A portaria de nomeação da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania designa outros 15 integrantes da Comissão, entre eles o professor de direito também da UnB, Cristiano Paixão.
*Estagiária sob a supervisão de Ana Sá
A Comissão de Anistia e a Democracia
Eneá de Stutz e Almeida
A Comissão de Anistia é uma comissão de Estado, devendo cumprir a missão constitucional de realizar o programa de reparações, de memória e de verdade. A Comissão de Anistia é, portanto, uma Comissão fundamental para a democracia brasileira.
A Universidade de Brasília, por meio do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) e seus grupos de pesquisa, tem produzido conhecimento relevante sobre Justiça de Transição no Brasil há mais de uma década. A participação de docentes da UnB na Comissão representa, simultaneamente, o reconhecimento dos esforços de pesquisa que vimos realizando sobre o tema e uma oportunidade para contribuirmos com a história do país.
Teremos um grande desafio inicial para enfrentar os retrocessos que sofremos nos últimos anos. Para tanto, precisaremos atuar em dois movimentos simultâneos: 1) fazer um levantamento de todos os pedidos julgados e verificar quais foram ilegalmente julgados. Ou seja, quais foram julgados descumprindo os requisitos legais, e quais foram julgados cumprindo os mesmos requisitos. Aqueles que tiverem sido ilegais serão revistos; 2) julgar todos os pedidos que ainda não foram julgados. Tudo com muito respeito, diálogo, maturidade, transparência e democracia.
A sociedade brasileira deve acompanhar as atividades da Comissão de Anistia, porque esse trabalho, embora dirigido às pessoas que sofreram perseguição política numa época sombria da história brasileira, tem impacto direto sobre todos nós, brasileiros e brasileiras. Foi justamente porque não acertamos as contas com o nosso passado autoritário, porque fugimos do enfrentamento das atrocidades cometidas, e nos últimos anos permitimos que essa crueldade fosse negada, que experimentamos o que é chamado de “esquecimento-recalque”. Todo recalque volta com violência. Temos visto a violência explodir no Brasil, e foi isso que aconteceu no 8 de janeiro de 2023, em Brasília.
A reconciliação nacional e a pacificação é o que queremos, mas essa reconciliação só é possível se a Comissão de Anistia e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos cumprirem a Constituição, realizando o seu trabalho, e se as recomendações da Comissão Nacional da Verdade forem atendidas. Essas três Comissões de Estado foram criadas a partir da Constituição de 1988 para garantir Memória, Verdade, Justiça e Reparação. Essa é a base da democracia, e a democracia (ou a falta dela) atinge toda a comunidade brasileira. Então, a Universidade tem um papel relevante nessa construção, inclusive para que possamos ampliar esse debate e trazer cada vez mais pessoas para a luta por um Brasil mais igualitário, justo, democrático e solidário.
Eneá de Stutz e Almeida é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Coordena o grupo de pesquisa Justiça de Transição no Brasil. Preside a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
fonte: https://noticias.unb.br/artigos-main/6288-a-comissao-de-anistia-e-a-democracia