Quase lá: Boaventura de Sousa Santos é denunciado por assédio sexual e afastado de cargos institucionais

Apesar de inúmeras denúncias, casos de assédio envolvendo Boaventura só ganharam tração após publicação de livro. O sociólogo se encontra afastado de suas funções em diversas instituições.

A reportagem é de Fernanda Paixão, com edição de Patrícia de Matos, publicada por Brasil de Fato, 17-04-2023.

“Eu realmente estava em suas mãos. Essa sensação me gerou medo e ira.” O depoimento da líder mapuche Moira Millán, etnia indígena da zona patagônica argentina, contra o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos não foi contado pela primeira vez, mas agora ganha outra dimensão. Seu caso se soma a uma série de denúncias que surgiram na semana passada de assédio sexual e abuso de poder contra o intelectual, a maioria de ex-alunas ou orientandas de Boaventura.

Desde então, o acadêmico foi afastado de dois cargos institucionais: no Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso) e da direção do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, do qual foi um dos fundadores, em 1978.

“A Clacso sempre soube, o que a torna cúmplice”, pontua Millán, em entrevista ao portal El Salto. “Sempre que me convidavam para uma mesa com ele, eu declinava. Quando insistiam, eu ameaçava denunciá-lo publicamente por abusador”.

No caso de Moira, ela conta ter sido convidada pelo sociólogo para dar uma conferência aos seus alunos na Universidade de Coimbra e foi conduzida a situações isoladas com ele após o término do evento, sem condições econômicas de deslocamento para além do que o convite à cidade incluía.

“Pensei que estaria toda a equipe, mas quando chegamos no restaurante, estávamos sozinhos. O lugar era um restaurante de sua família”, contou Moira. “Começou a beber muito e a dizer coisas fora de lugar para flertar. O tempo todo impus limites, mas ele insistiu para que eu fosse à sua casa para me dar uns livros”, diz. No apartamento, ele tentou investir sobre Moira.

“Eu não sabia a que distância estava do hotel, nem tinha dinheiro para ir para um táxi. Também não tinha minha passagem de volta. Tentei me acalmar e o fiz refletir. Aí ele se tranquilizou”, contou, sobre o episódio ocorrido em 2010.

#MeToo no mundo acadêmico

O movimento foi desencadeado com a publicação de três pesquisadoras que contaram suas experiências em primeira pessoa com o “professor estrela” e seu aprendiz, em um artigo intitulado “As paredes disseram o que ninguém pôde dizer: notas autoetnográficas do poder sexual na academia de vanguarda” (tradução livre), no livro “Conduta sexual imprópria na academia” (“Sexual Misconduct in Academia”, no original).

As autoras Lieselotte ViaeneCatarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom classificam como “extrativismo sexual” o abuso de poder sobre mulheres, em geral jovens, que dependem da aprovação acadêmica de seus mentores para construir suas carreiras, com o encobrimento das instituições sobre o “professor estrela”. Citam o caso também recente do especialista em estudos africanos e antropologia pós-colonial, John Comaroff, da Universidade de Harvard, também alvo de denúncias por assédio sexual e abuso de poder.

Apesar de o nome de Boaventura não ser citado no artigo, as histórias são conhecidas pelas pesquisadoras da Universidade de Coimbra e pela própria instituição, que já havia recebido denúncias previamente. Esse também é o caso do aprendiz de Boaventura, o professor Bruno Sena Martins. Segundo relatos das denunciantes, o pupilo reproduzia uma postura semelhante ao sugerir troca de favores sexuais com as pesquisadoras.

No caso, as “paredes que falaram” foram pichações nos muros da Universidade de Coimbra com os dizeres “Fora Boaventura, todas sabemos”. Uma mensagem anônima que serviu como impulso para as mulheres que processavam a situação em silêncio, segundo as autoras.

“Depois de meses de autocondenação, nossas suspeitas e dúvidas foram confirmadas, dando às nossas narrativas um ângulo diferente”, escrevem. “Percebemos que nossas experiências não foram isoladas nem excepcionais”.

A deputada brasileira Bella Gonçalves, do PSOL de Minas Gerais, se somou às denúncias de ex-alunas e orientandas do sociólogo português. No caso de Gonçalves, as consequências foram psicológicas, acadêmicas e financeiras, ao ter que devolver o valor que havia recebido para uma bolsa no exterior pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

“Um dia, ele pediu para marcar uma reunião no apartamento dele. Colocou a mão na minha perna. Falou que as pessoas próximas dele tinham muita vantagem e sugeriu que a gente aprofundasse a relação”, conta a deputada à Agência Pública. “Sou uma mulher de movimentos sociais, que faço denúncias de tudo quanto é jeito, mas não encontrei nenhuma saída para denunciar o assédio que sofri. Estava presa a uma teia de poder maior”.

Boaventura se pronunciou sobre as denúncias em uma live que realizou na terça-feira da semana passada (11), alegando ser alvo de uma “difamação anônima, vergonhosa e vil”, e que apresentaria uma queixa-crime contra as três autoras do artigo que iniciou a série de denúncias contra ele.

Por sua vez, a instituição cofundada por Boaventura, o CES, publicou um comunicado anunciando a abertura de uma investigação a partir das denúncias contidas no capítulo do livro. “Nesta medida, o CES irá constituir num curto prazo uma comissão independente à qual caberá a identificação de eventuais falhas institucionais e a averiguação da ocorrência das eventuais condutas antiéticas referidas naquele capítulo", informaram.

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/628002-boaventura-de-sousa-santos-e-denunciado-por-assedio-sexual-e-afastado-de-cargos-institucionais

 

Deputada mineira denuncia assédio sexual de Boaventura durante doutorado

Bella Gonçalves (PSOL) rompe anos de silêncio sobre o caso. Relato se une a outras acusações contra o professor


 
14/04/2023 15:04 - Estado de Minas
Bella Gonçalves, deputada estadual
Casos de assédio do professor português vieram à tona nas últimas semanas. A deputada Bella Gonçalves relatou ter sofirdo a mesma violência durante doutorado,(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

Mariama Correia, da Agência Pública

“A violência que sofri gerou outros processos de violência. Por isso, fiquei anos em silêncio”, diz Bella Gonçalves, deputada estadual pelo PSOL em Minas Gerais. É a primeira vez que ela fala publicamente sobre ter sofrido assédios do professor Boaventura de Sousa Santos, quando ele era seu orientador de doutorado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, em Portugal, de 2013 a 2014. O depoimento dela à Agência Pública vem no rastro das acusações de assédio sexual de alunas contra o professor e sociólogo renomado, que vieram à tona recentemente, a partir de uma publicação sobre má conduta sexual no meio acadêmico.
 
No texto publicado em março deste ano, três ex-alunas relatam assédios de professores do mesmo centro da Universidade de Coimbra. Elas não citam nomes, mas narram abusos de poder contra “jovens pesquisadoras que dependem de aprovação acadêmica para construir suas carreiras”, “extrativismo intelectual e sexual” e “impunidade”. Há referências de assédios sexuais praticados por um “professor-estrela” e seu auxiliar, descrito como “o aprendiz”. Um dos casos narrados é o de Bella Gonçalves, mas a identidade dela foi omitida no artigo. Com a repercussão do artigo — e surgimento de novas denúncias de outras mulheres —, o próprio Boaventura assumiu ser o “professor-estrela”. O “aprendiz” seria Bruno Sena Martins. Boaventura classificou as denúncias como “vingança” e prometeu apresentar queixa-crime contra as autoras.
 
A reportagem procurou Boaventura através de email e através da Universidade. Martins também foi procurado através da instituição. Até o momento, ambos não haviam respondido.
 
“Decidi dar minha palavra pela postura de negação e descredibilização dele”, disse Bella Gonçalves à Pública. Ela relata que o assédio sexual aconteceu em 2014, quando tinha 26 anos. Boaventura já estava com mais de 70. Gonçalves conheceu o professor durante a graduação na Universidade de Coimbra, quando era intercambista do Ciência sem Fronteiras. Depois, veio o doutorado com bolsa da Capes. Boaventura era o orientador.
 
“Um dia, ele pediu para marcar uma reunião no apartamento dele. Colocou a mão na minha perna. Falou que as pessoas próximas dele tinham muita vantagem e sugeriu que a gente aprofundasse a relação”. Ela relata que foi embora atordoada. No dia seguinte, ela conta que o professor a convidou para uma conversa junto com o ex-companheiro dela, que estudava no mesmo centro acadêmico. “Ele humilhou nossos trabalhos. Meu ex-companheiro chorava muito”, lembra. “Ali identifiquei que você poderia ter vantagens por estabelecer relações afetivas e sexuais com professores. Mas, se você se nega, é punida por isso.”

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Gonçalves rompeu a orientação. Em busca de acolhimento, procurou outros professores da universidade, inclusive professoras dedicadas a temáticas feministas. “Todos diziam que eu não era o primeiro caso. Lamentavam, mas não davam suporte ou saída”. Ela conta que chegou a pedir ajuda ao professor auxiliar, Bruno Sena, sem saber que também havia acusações de assédio contra ele. “Ele me orientou a não denunciar”.
 
Na época, a ex-aluna de Boaventura não encontrou um canal de acolhimento, de suporte psicológico ou mesmo para tratar denúncias de assédio na universidade. “É uma estrutura muito hierárquica, machista, patriarcal. Boaventura já era conhecido por condutas abusivas. Humilhava estudantes em público, xingava pesquisadoras, tinha posturas impróprias nas festas. Mas era diretor do centro acadêmico. Eu sabia que nada aconteceria com ele”.
 
A Pública questionou a assessoria da Universidade de Coimbra sobre a falta de canais de denúncia para casos de assédio e sobre o fato da instituição não ter tomado providências diante das denúncias dos estudantes, ao longo dos anos. A reportagem ainda não obteve resposta.
 
Desistir no segundo ano de curso significava tanto perder o doutorado como ter que devolver a integralidade da bolsa de estudos. “Eram noites sem dormir pensando em quantos Euros precisaria pagar. Meu cabelo começou a cair. Minha mãe dizia que eu estava louca de abrir mão de uma bolsa no exterior.”
 
Segundo a deputada, apesar do relato de assédio, a Capes não ofereceu alternativa para manutenção da bolsa. Mesmo assim, ela decidiu voltar para o Brasil. Pagou do próprio bolso as viagens para prestar novo processo seletivo, mas terminou conseguindo manter a pesquisa vinculada à Universidade de Coimbra, com orientação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ainda assim, arcou com os custos para o centro acadêmico português e perdeu a bolsa. Precisou voltar a trabalhar. A Pública questionou a Capes, mas não recebeu respostas até a publicação da reportagem.
 
Por nota, a Capes informou que, em casos de assédio sexual, a ouvidoria da instituição tem “procedimentos específicos”, que incluem garantir o sigilo e a proteção da identidade do denunciante, além de encaminhar denúncias para órgãos competentes. Também que, em casos ocorridos no exterior, “possibilita o retorno ao Brasil e o apoio à continuidade dos estudos em outra instituição”, mas que se “o bolsista tiver recebido 48 meses de bolsa no exterior não é facultado receber bolsa para o mesmo objetivo.”
 
“Ele [Boaventura] fez uma reunião on-line comigo para pedir desculpas. Disse que se apaixonou, que era natural entre duas pessoas adultas. Quis manter a orientação da minha tese. “Não topei”, conta. “Tive prejuízos psicológicos, emocionais e financeiros. Mudei de país, larguei uma bolsa de estudos, os danos são irreparáveis. Não quero desculpas, quero que ninguém mais passe por isso.”
 
Todo o processo atrasou a conclusão do doutorado em dois anos. Em 2018, Bella Gonçalves foi aprovada com honra e louvor em ambas as universidades. Foi nesse mesmo ano que apareceram as primeiras pichações contra Boaventura, nos muros da Universidade de Coimbra. O grafite dizia: “Vá embora Boaventura. Nós todos sabemos disso”. Na época, o professor veio a Belo Horizonte. “Ele me mostrou as pichações, insinuou se eu seria a pessoa por trás”, conta Gonçalves.
 
Bella Gonçalves, que é cientista política, foi eleita vereadora em Belo Horizonte e, em 2022, se tornou deputada estadual por Minas. “Sou uma mulher de movimentos sociais, que faço denúncias de tudo quanto é jeito, mas não encontrei nenhuma saída para denunciar o assédio que sofri. Estava presa a uma teia de poder maior”. Ela diz que a “retaliação sobre as mulheres no ambiente acadêmico é profunda”. “Professoras não podem falar porque vão ser demitidas, alunas são silenciadas por medo de não conseguirem se formar”.

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A deputada prepara um Projeto de Lei para tornar obrigatória a construção de canais de suporte psicológico e denúncias de assédio em universidades e institutos de pesquisa de Minas Gerais. Ela pretende levar a discussão ao Congresso Nacional, via bancada do PSOL. “A Capes e o CNPQ precisam ter esses canais. É inadmissível a interrupção de programas de pesquisa por situações de assédio. Não é apenas sobre o caso de Boaventura. É sobre vários professores que mantêm a mesma conduta nos ambientes acadêmicos”, diz.
 
A reportagem fez contato com a Universidade de Coimbra, por telefone e por e-mail, mas não recebeu respostas até a publicação. A Pública também tentou contato com o professor Boaventura de Sousa Santos, mas ele não respondeu nossos e-mails. Não conseguimos contato com o professor auxiliar Bruno Sena.
 
 

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