Fotomontagem do Jornal da USP com imagens de domínio público e Beto Oliveria/Câmara dos Deputados
Texto: Silvana Salles
Arte: Joyce Tenório
O dinheiro gasto pelo governo federal com políticas públicas para indígenas, quilombolas, igualdade racial e mulheres caiu ano a ano durante a presidência de Jair Bolsonaro, levando ao desmonte de programas e deixando populações desprotegidas. Para Ursula Dias Peres, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP e integrante do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), é essa a principal conclusão que se pode tirar de um estudo recente sobre a execução orçamentária do governo Bolsonaro.
“A gente tem um montante obrigatório de orçamento alto e que faz com que essas áreas — mulheres, indígenas, quilombolas e tal — sempre estejam disputando um espaço do que a gente chama de discricionário, em todos os governos. São áreas que já disputam um pedaço menor [do orçamento]. Com a questão da emenda do teto, elas foram ainda mais encurtadas, mais pressionadas. E esse governo que acabou não tinha nenhuma prioridade com essas áreas. Então, é o desmonte total. O mínimo que se previa, e o que vinha sendo uma tentativa de estruturação de algumas áreas contínuas de atendimento são completamente desmontadas”, afirma Ursula.
Segundo Ursula Dias Peres, o orçamento público expressa quais são as áreas prioritárias para o governo - Foto: Reprodução/EACH-USP
O estudo, lançado em abril pela organização não governamental Inesc, compara os gastos autorizados no orçamento com o que efetivamente foi pago durante os quatro anos do governo Bolsonaro. Os gastos autorizados são aqueles aprovados pelo Congresso Nacional na lei orçamentária anual. No cálculo da execução orçamentária de cada ano entram o que foi gasto naquele ano e os restos a pagar de exercícios anteriores. O estudo utiliza os dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do governo federal (Siafi) disponibilizados na plataforma Siga Brasil, mantida pelo Senado.
Na análise, o Inesc adota uma metodologia própria, que considera cinco pilares: Estado financiado com justiça social, utilização do máximo de recursos disponíveis para realização de direitos, progressividade da política pública, não discriminação e participação social. Assim, diferentemente de análises mais corriqueiras sobre o orçamento público, a equipe do Inesc olha para o orçamento pela lente dos direitos humanos em vez de priorizar debates sobre a eficiência dos gastos.
Como funciona o orçamento público?
1. Obrigatórias
São gastos determinados pela Constituição ou outras regras federais. Incluem:
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Gastos com pessoal
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Financiamento da dívida pública
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Previdência social
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Recursos fixos para saúde e educação
2. Discricionárias
Não são regradas pela Constituição nem por outro tipo de lei. Geralmente, estão associadas a algum investimento, mas podem ser referentes a alguma atividade continuada. Aqui entram gastos com transporte, habitação, mulheres, igualdade racial, indígenas e quilombolas. São áreas que sempre precisam disputar recursos. Foram muito afetadas pelas emendas do relator (RP9) e o teto de gastos.
O tripé do orçamento
Todos os anos, o governo federal precisa Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentária e o Projeto de Lei Orçamentária Anual para aprovação e discussão do Congresso Nacional. No primeiro ano de cada novo governo, o Executivo também precisa enviar o Plano Plurianual (PPA), que define quais são as prioridades para os próximos quatro anos.
Como o governo gasta o dinheiro?
Os gastos precisam primeiro ser autorizados pela lei votada no Congresso. A administração pública, então, pode fazer as contratações necessárias para executar um programa. Quando um contrato é assinado, os recursos ficam reservados para pagar o fornecedor. No jargão da gestão pública, são empenhados. O Inesc considera como execução orçamentária somente o que foi efetivamente pago no ano analisado e o que entrou nas contas públicas como restos a pagar.
E se um ministério não gastar todo o dinheiro autorizado?
O recurso que não foi gasto volta para os cofres do Tesouro e no ano seguinte poderá ser destinado a outra área. Não existe nenhuma garantia de que um ministério que deixou de gastar conseguirá recuperar o recurso para o próximo ano.
Leila Saraiva, do Inesc, questiona leitura fiscalista das contas públicas - Foto: Arquivo pessoal
“Para nós, não faz sentido trazer para o funcionamento do Estado a lógica empresarial, tal como essa leitura fiscalista prevê. A obrigação do Estado é garantir direitos e enfrentar as desigualdades, de forma que é preciso garantir o maior montante para essas medidas”, afirma Leila Saraiva, assessora política do Inesc e responsável pelo capítulo sobre o orçamento para políticas indigenistas. Dessa maneira, o monitoramento considera que o gasto é bem feito quando o governo executa o máximo de recursos previstos para uma ação ou programa.
Um exemplo às avessas é o desmonte do programa Casa da Mulher Brasileira, voltado ao atendimento integrado de mulheres em situação de violência. O relatório aponta que o antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) chegou, em 2020, a deixar de gastar 70% dos recursos que estavam autorizados para combater a violência contra a mulher.
Fonte: Siga Brasil. Data de extração dos dados: 10 de fevereiro de 2023. Elaboração: Inesc. * Para o ano de 2019, incluem-se todas as ações orçamentárias do Programa 2016 (2C52, 8843, 210A, 210B, 4641, 8843, 8831, 14XS, 218B). ** Para os anos de 2020 a 2023, incluem-se todas as ações orçamentárias e os planos orçamentários específicos presentes no Programa 5034 (14XS, 00SN, 218B, 21AU, 21AR, 21AT, PO 000F, 000G, 000H).
Ursula Dias Peres vem acompanhando há algum tempo o trabalho da organização e considera que a metodologia é positiva para monitorar periodicamente o que é feito nas áreas sociais do governo – assunto que costuma entrar muito pouco nos debates sobre o orçamento público. “Não é um foco na classificação econômica e nos grandes números, se tem ou não tem dívida, se tem ou não tem déficit. É um foco (no) que a gente fez para atendimento da população”, explica a professora da EACH.
De R$ 1,2 milhão para R$ 40 mil
Entre os achados do relatório, Ursula destaca o desmonte dos órgãos de políticas indigenistas. Responsável pela demarcação, monitoramento e fiscalização das terras indígenas, a Funai já tinha um orçamento insuficiente em 2019. Até 2022, perdeu quase R$ 200 milhões. Também o orçamento da Sesai sofreu cortes, o que teve impacto direto sobre a saúde das comunidades. Isso em um período em que a população indígena no Brasil cresceu – 78% em 12 anos, segundo o dado preliminar do Censo 2022.
Não surpreende, portanto, que diversas terras indígenas estejam dominadas por disputas com o garimpo, com madeireiros e com diversos outros tipos de ilegalidades e ações criminosas, a exemplo do que já foi noticiado sobre a Terra Indígena Yanomami e a Terra Indígena do Vale do Javari.
Fonte: Siga Brasil. Data de extração dos dados: 13 de fevereiro de 2023. Elaboração: Inesc.
Fontes: IBGE, Siga Brasil. Data de extração dos dados: 13 de fevereiro de 2023. Elaboração: Inesc.
O estudo do Inesc destaca o caso do Distrito Sanitário Yanomami (DSEI-Y), marcado nos últimos anos pela inconstância dos gastos federais. Os recursos executados crescem consideravelmente de 2019 a 2021, o que permitiria supor um investimento maciço no enfrentamento à crise sanitária no território. Contudo, em novembro de 2022 o Ministério Público Federal chegou a recomendar uma intervenção no DSEI-Y devido a denúncias de altos gastos com medicamentos que nunca chegaram às aldeias. Ainda mais expressiva é a queda na execução orçamentária do DSEI-Y de 2021 para 2022: os gastos caem de R$ 1,23 milhão para apenas R$ 40 mil.
“Revela o total descaso. Aqui é uma das bases da discussão de que essa ação foi um genocídio, porque simplesmente largou-se mão, em 21 e 22, do que fazer com essa população Yanomami. Não tem atuação do Estado. A Funai simplesmente não tem recurso e não atua, não protege essa população”, destaca a professora da EACH.
Ela lembra que os quilombolas enfrentaram situação semelhante nos últimos quatro anos, pois a execução de recursos para regularização fundiária de seus territórios foi praticamente nula a partir de 2020 e políticas como o apoio à produção local de alimentos se mantiveram subfinanciadas durante todo o período. O recurso para vacinação prioritária de quilombolas para proteção contra a covid-19 só foi liberado depois que a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) acionou o Supremo Tribunal Federal. A política de segurança alimentar se resumiu à entrega de cestas básicas.
Fonte: Siga Brasil. Data de extração dos dados: 10 de fevereiro de 2023. Elaboração: Inesc.
Se não tem plano, não tem dinheiro
Carmela Zigoni, que também é assessora política do Inesc, explica que a estrutura das políticas sociais no governo Bolsonaro agrupou muitos temas distintos no ministério chefiado por Damares Alves. No caso das políticas para as mulheres, o arranjo levou a uma perda de especificidade.
“Desde a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres em 2003, que tinha status de ministério, ela tinha como missão provocar todos os outros ministérios em questões de direitos das mulheres e questão de gênero. Tinha essa missão de implementar algumas políticas específicas, como enfrentamento à violência contra a mulher, e também como articulador da política para mulheres em outros ministérios. No governo Bolsonaro, essa concepção foi desconstruída”, diz ela.
Carmela Zigoni, do Inesc: políticas públicas perderam especificidade no governo Bolsonaro - Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
A mudança de concepção das políticas para as mulheres foi expressa no Plano Plurianual (PPA) 2020-2023. Esse mesmo PPA deixou de fora as políticas para as populações negras e quilombolas, embora órgãos como a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial e o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais tenham continuado a funcionar dentro do MMFDH. O Inesc vem defendendo que o atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva dê especial atenção à elaboração do próximo PPA junto à sociedade civil, pois será preciso recompor órgãos que foram fortemente atacados nos últimos anos e o conteúdo do plano terá impacto sobre demarcações de terras e o atendimento à população.
A professora Ursula explica que o PPA é o instrumento orçamentário estratégico, pois diz quais são as principais metas da administração pública para os próximos quatro anos, organizando as prioridades para os orçamentos anuais. Por isso, além de precisar ser aprovado por deputados e senadores, é desejável que as prioridades do plano sejam definidas com participação social ainda no âmbito do Poder Executivo. Na avaliação da docente, o fato do Congresso ter hoje maior condição de definir para onde vai o dinheiro, dado o aumento do volume das emendas parlamentares de 2015 para cá, não significa que os parlamentares farão essa definição com base em uma discussão ampla e democrática junto à sociedade civil.
“A pressão da sociedade civil, o acompanhamento da sociedade civil, o monitoramento da sociedade civil são importantes para que você não use o orçamento para focalizar em grupos de apoio político paroquial desse Congresso. A participação no processo de PPA também é importante para limitar um uso pulverizado de emendas com efeito meramente político-eleitoral. O efeito político haverá, esperamos porque o orçamento é político. O que ele não pode ser é um efeito político-eleitoral para apenas alguns grupos”, conclui Ursula.