Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
O Centro MariAntonia e o Memorial da Resistência de São Paulo inauguram, neste dia 27 de abril de 2023, a exposição Imagem Testemunho. Experiências artísticas de presos políticos na ditadura civil-militar. A mostra reúne experiências artísticas produzidas por presos políticos, a partir da década de 1970.
A iniciativa de José Lira, diretor do centro, apoiada pela Reitoria da USP demonstra, mais uma vez, a Universidade envolvida com a produção da história brasileira.
Memória é matéria prima da história. Seus artífices servem ao presente. Hoje, acodem à crise da democracia.
Alípio Freire
Afinal, avançamos na valorização da vida?
Afastamos a barbárie humana e ambiental?
Diminuímos a cegueira em relação a si mesmo e aos Outros?
José Lira, diretor do Centro MariAntonia, acertou ao fazer a exposição Imagem Testemunho em um momento em que a democracia corre perigo. Acertou ao expor desenhos, xilogravuras e colagens produzidos por 12 presos políticos, a partir dos anos 70 do século passado. Os trabalhos foram realizados em diferentes presídios de São Paulo: Tiradentes, Carandiru, Penitenciária Feminina, Hipódromo, Presídio Militar Romão Gomes (Barro Branco) e, alguns, dentro do próprio Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
A curadoria do empreendimento coube à pesquisadora e crítica de arte Priscila Arantes.
Carlos Takaoka
Além das expressões artísticas a exposição inclui 16 documentos e sete depoimentos em vídeo.
Olhando os desenhos, um a um, a sensação foi de um soco no estomago. Os desenhos expressam a política brasileira, lembranças de barbárie e afeto.
De cada desenho exposto brota uma gota de memória. No pátio do presídio Tiradentes, nos dias de visitas, as mulheres casadas, com contrato em cartório, podiam passar para a ala masculina. Tenho lembranças de presos políticos segurando desenhos e pinturas. Talvez fosse um presente para ser entregue a alguém especial no dia daquela visita.
Agora vejo parte deles, dos desenhos, guardados por Alípio e Rita.
52 anos depois eles falam sobre o Brasil de hoje.
Como historiadora, observo a refinada concepção de tempo de Alípio Freire e Rita Sipahi. Eles guardaram, organizaram e conservaram o material produzido pelos presos políticos. Cada expressão artística expressa as marcas da história com uma cor, com uma forma ou palavra produzidas atrás das grades.
Nada teria sobrevivido sem eles.
Arthur Scavone
Conservar documentos exige percepção da importância de um evento no momento da sua produção. Geralmente fotos, papéis e histórias sobrevivem enquanto os seus artífices e sua família estão vivos. Os outros documentos, fruto de figurantes laterais, em geral são descartados. Não fazem parte do eixo da memória, da narrativa daquele grupo familiar.
Alípio e Rita foram generosos com a memória de toda uma geração, tanto da memória política como da memória amorosa. Conservaram na sua casa um verdadeiro museu dos anos de chumbo.
Não é fácil obter dos autores o material. Os presos políticos deixaram a prisão em dias, meses e anos diferentes. Alípio ficou preso durante cinco anos. O caminho seguido por cada um deles era muito variado. Avaliem o significado de guardar e conservar um acervo com 300 imagens. Custa poeira, espaço e amor.
Borges tratou do tema em Funes, o memorioso.
De certa forma, tudo na vida tem importância e pode servir para reconstruções da memória. Se a memória guardasse tudo não haveria maneira de suportar o presente. Não existiria tempo e espaço para guardar as lembranças dos humanos, do planeta, de tudo que ocorreu no passado. Não há lugar para todos os objetos produzidos e para os acontecimentos, um por um. O descarte é necessário para uma sobrevivência saudável, deixando espaços livres para a construção de uma pequena história concisa a partir de fragmentos costurados pelo autor.
Carlos Takaoka
Recordar envolve o inconsciente, responsável pela primeira limpeza. Ele separa o que fica na memória e o que, de forma imperceptível, é enviado para o imenso “lixão” do esquecimento. Esquecemos para poder viver. A outra parte envolve o nosso livre-arbítrio, optamos conscientemente pela manutenção ou descarte de fragmentos do passado. Trata-se de uma parte da “limpeza” consentida, onde separamos o que deve ser descartado e o que deve ser guardado, ofício de historiador, documentalista e psicanalista.
Qualquer pessoa responsável pelo desmonte de uma casa, em geral da família, enfrentou este desafio. Com os objetos de valor trata-se de atribuir preço, fazer uma espécie de leilão entre os herdeiros. A negociação é de ordem financeira. O delicado é descartar o que não tem importância nem valor. O açucareiro, companheiro à mesa durante toda a infância, o livro com pequenas marcas, sugerindo reflexões de quem leu e não vive mais e as cartas de amor, saboroso gênero ficcional, objeto diluído pela tecnologia.
O que sobra do planeta, dos animais das plantas e das gentes é um pequeníssimo retalho. Das mulheres sobra menos. Não se trata de retalho. É faísca.
Algumas pessoas imaginam ficar guardado fragmentos em razão de sua importância política, literária e artística, reproduzem para os convivas, do seu tempo, os fatos ocorridos, muitos deles significativos, mas distantes de uma narrativa consolidada pela história. Nada garante a memória, nem mesmo trabalhos incluídos em exposições ou livros publicados. A maior parte destes farelos sucumbe. Eles não sobrevivem na memória dos ouvintes, não são lidos nas bibliotecas e quando se trata de material apresentado em exposições de arte, sem valor de troca, desaparecem.
Como diz Drummond, “de tudo fica um pouco…”.
Muito pouco.
Rita Sipahi
A memória depende de lugar social, do poder e, especialmente, de tecelões dispostos por motivos políticos, econômicos e amorosos a guardar e transmitir a memória de uma geração para a outra. A memória também depende da amizade. Nem mesmo os crimes cometidos contra a humanidade são obrigatoriamente objeto de memória. Só sobrevivem se existirem tecelões com condições políticas, econômicas e afetivas para fazer ressuscitar sucessivamente determinados acontecimentos. Às vezes morreram todos os narradores e a memória se esvai. Muitas vezes os vencedores fazem o possível e o impossível para não deixar sobreviventes. Matam todos para apagar a memória. Os campos de concentração da Segunda Guerra são um bom exemplo da importância dos tecelões, no caso, a comunidade judaica. Eles souberam cuidar, juntos, da memória.
Em períodos de ditadura militar, os objetos de memória são provas contra as pessoas dispostas a denunciar as práticas de tortura, assassinatos e desaparecimentos. Qualquer desenho, anotação, expressão simbólica, artística ou mesmo literária pode, em tempos de ditadura, servir como prova num processo contra os rebeldes da justa causa. Portanto, a tendência é apagar as evidências.
Quantas e quantas vezes os combatentes da ditadura militar no Brasil, em tempos de luta, descartaram restos de memória, fotografias de família, dos filhos, dos amigos. A sobrevivência exigia: não deixar indícios. Em tempos de guerra, de revolução, de contestação à ordem estabelecida, a virtude é esquecer. Não proferir os nomes, não reconhecer trajetos, olhar mais para frente do que para trás.
Alípio, um aristocrata por nascimento, no trato da amizade e da memória percebeu a importância de fazer história selecionando documentos e reconhecendo, entre os amigos, aqueles possíveis tecelões, preocupados com o futuro dos humanos. Rita, sua companheira, compartilhou o seu ritual, dia a dia: guardar para não esquecer, por meio século, vestígios da história brasileira. Seus filhos, Paulo de Miranda Sipahi, Camila Sipahi Pires e Maiana Sipahi Viana Freire, dividiram o espaço da sua casa, durante grande parte de suas vidas, com um acervo de 300 obras, entre outros objetos. Imagino não ter sido fácil. O espaço de uma casa é diferente do espaço de um museu. Hoje, o acervo de Alípio, depois de sua morte, foi doado para a Pinacoteca do Estado – Memorial da Resistência.
Alípio Freire
Finalmente chegou ao lugar certo.
Agradeço a todos, especialmente aos novos tecelões, José Lira e Priscila Arantes, a competência artística, a sensibilidade política e a valorização da dignidade humana ao fazer esta exposição. Agradeço também àqueles que ainda não nasceram, mas por destino, quem sabe, se tornarão tecelões da memória, curadores do futuro, da história do Brasil.
Agradeço especialmente aos filhos, dois deles crianças que conheci no pátio do presídio, Paulo de Miranda Sipahi, Camila Sipahi Pires e Maiana Sipahi Viana Freire, nem sempre vistos como de fato são, protagonistas desta história memorável.
Com afeto, J.