Grupo de trabalho com o MEC será criado para tratar do assunto
A criação de um banco de currículos para profissionais negros e a indicação de alguns desses nomes para trabalhar no governo federal tem uma motivação pessoal para a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.
Podemos mostrar para o país inteiro o quanto as pessoas negras têm se preparado e são preparadas para adentrar em espaços que historicamente nos negam e dizem que não devemos entrar ou não nos pertence”, destaca.
Jornalista de formação, ela conta que já foi excluída de algumas vagas por ser negra.
“Essa iniciativa é importante para mim, principalmente por ser jornalista, por ter estado do outro lado e terem me negado a possibilidade de ser âncora [apresentadora de TV], trabalhar como jornalista, por dizerem que eu não tinha rosto [adequado] para aquilo”, afirma a ministra em entrevista exclusiva à Agência Brasil.
Despachando na Esplanada dos Ministérios desde o início de janeiro, Anielle tem trabalhado para conscientizar a sociedade sobre a importância de uma educação antirracista. Fruto da política de cotas no ensino superior, ela adiantou, durante a entrevista, a criação de um grupo de trabalho junto com o Ministério da Educação (MEC) para pensar em mudanças no material didático. “As crianças negras não se encontram no livro didático, ele não tem representatividade.”
A falta de orçamento para construção de políticas públicas de igualdade racial, uma das consequências do abandono da temática pelo governo anterior, é outro tema que preocupa a ministra.
“Chegamos a ter um orçamento de R$ 77 milhões e agora a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial [Seppir] vai virar um ministério com orçamento previsto [ao final da gestão de Jair Bolsonaro] de R$ 4 milhões”, destaca.
“Se conseguirmos atingir 50% do orçamento que tínhamos em 2003, já estaremos dando passos importantes”, afirma Anielle.
A violência contra a população negra também é uma das principais frentes de trabalho da ministra, que teve sua irmã, a vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada. Até hoje, o caso permanece sem punição e sem informação sobre os mandantes do crime.
Mãe de duas meninas, Anielle Franco é uma das fundadoras e ex-diretora-executiva do Instituto Marielle Franco. Nascida na comunidade da Maré, na zona norte do Rio, a ministra é formada em Inglês pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em jornalismo pela Universidade Central da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, e é mestre em Relações Étnico-Raciais pelo Cefet/RJ.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista exclusiva de Anielle Franco à Agência Brasil.
Agência Brasil: O que a senhora entende por igualdade racial? Por que precisamos discutir o equilíbrio entre as raças no país?
Essa é uma pergunta muito complexa, porém simples de responder. Para mim, igualdade racial é as pessoas terem uma vida digna em qualquer lugar do mundo e é o que a gente não tem ainda no Brasil, para além das pessoas que pensam contrário e para além daqueles que nos tratam de maneira diferente em relação às oportunidades. Igualdade racial, para mim, é a gente não estar falando sempre de racismo.
Não estar falando sempre sobre um jovem negro que foi morto a cada 23 minutos no Brasil, não ter que entregar currículos e explicar o quanto nós, pessoas negras, somos qualificadas para estar em vários lugares. Então, para mim, igualdade racial seria termos direitos iguais, salários iguais, oportunidades iguais – o que não há no país.
Uma iniciativa do Ministério da Igualdade Racial recebeu 5.347 currículos de profissionais negros. Destes, 41 já foram encaminhados ao presidente da Embratur, Marcelo Freixo. Por que essa iniciativa foi criada e como tem sido esse processo?
[A iniciativa] foi criada por vários motivos. Entre eles, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o governo federal restauram o Ministério da Igualdade Racial, muitas pessoas se disponibilizaram a vir trabalhar conosco. Esse é o primeiro ponto.
Começamos a perceber que muitas pessoas tinham diversas qualificações, formações e estavam sempre se colocando à disposição [para trabalhar no governo]. Um dos nossos assessores especiais teve a ideia de criarmos um banco de currículos. Dentro dos mais de 5 mil currículos, temos diversas áreas e podemos mostrar para o país inteiro o quanto as pessoas negras têm se preparado e são preparadas para adentrar em espaços que historicamente nos negam e dizem que não devemos entrar ou não nos pertence.
O Marcelo Freixo, especificamente por ser [presidente] da Embratur, solicitou currículos da área de turismo.
No dia anterior, recebemos a Antra - Associação Nacional de Travestis e Transexuais – e elas nos confidenciaram que quando há esse tipo de situação, em que se preenche documentos de modo geral, pessoas trans e travestis se sentem acuadas, ficam com vergonha, não gostam de se posicionar por medo de não terem vagas.
Há todo um preconceito que vem por trás desse sentimento. [A Antra] nos pediu que fizéssemos um banco de dados específico para pessoas trans e assim nós fizemos, em parceria com elas, um formulário. Também teve a iniciativa do Elas no Orçamento, que entregamos para a ministra [do Planejamento] Simone Tebet.
Eu tenho muita vontade de continuar fazendo isso porque sempre me perguntam [sobre sugestão de nomes de pessoas negras para vagas de trabalho]. Essa iniciativa é importante para mim, principalmente por ser jornalista, por ter estado do outro lado e me terem sido negado ser âncora, trabalhar como jornalista por dizerem que eu não tinha rosto [adequado] para aquilo, mas também iniciar esse letramento racial para entenderem que as pessoas estão qualificadas e têm condições de sobra de ficar.
Agência Brasil: Existe a possibilidade de fazer o banco de dados para outros grupos, como quilombolas, indígenas?
Estamos trabalhando sob demanda. Quando as pessoas nos perguntam [sobre indicações], fazemos o filtro e se não tiver [aquele perfil], a gente reabre. Nós já fechamos esse primeiro formulário porque já tinha atingido o número máximo, a gente pensou que ia ter até menos inscritos.
Estamos agora filtrando os perfis para reabrir em breve para podermos ir acumulando, quanto mais currículo tivermos para direcionar para pessoas em lugares específicos, para gente melhor. É uma ação concreta e contínua. Vamos continuar atualizando, tem muita gente pedindo [indicações] e não queremos parar, pois como são diversas áreas, estaremos sempre com uma “carta na manga” para podermos passar para essas pessoas que pedirem.
A senhora tem falado que encontrou um cenário de "terra arrasada" durante os trabalhos do grupo de transição. Poderia nos citar exemplos, como questões orçamentárias ou ações que foram abandonadas? O que será necessário para reverter essa situação em relação à sua pasta?
Eu fiz parte do Grupo de Transição na pasta das Mulheres, com a Aparecida Gonçalves, que é atual ministra e a Maria Helena Guarezi, que é a secretária executiva. Dentro da pasta das Mulheres, houve uma redução do investimento em Casa de Saúde das Mulheres e até para manutenção do Disque 100 e isso foi muito debatido.
Para além disso, percebemos o crescimento de casos de feminicídio no país. Já em relação à pasta da Igualdade Racial, chegamos a ter um orçamento de R$ 77 milhões antes do golpe da presidenta Dilma [Roussef] e chegamos a R$ 17 milhões há seis anos e agora, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial [Seppir] vai virar um ministério com orçamento previsto [ao final da gestão de Jair Bolsonaro] de R$ 4 milhões.
Então, não tinha investimentos pautados especificamente para a Seppir, que estava a esmo. Quando falamos de terra arrasada é em relação à falta de investimentos em políticas públicas como um todo. Se conseguirmos atingir 50% do orçamento que tínhamos em 2003, já estaremos dando passos importantes. Houve falta de manutenção dessas áreas.
Tudo estava esquecido na gestão do ex-presidente. A igualdade racial não era uma pauta prioritária para ele que, agora, passa a ser. Então também vamos ter que buscar outras formas de auxiliar esse orçamento, seja com concessões, fundações que já têm se demonstrado favoráveis à criação de editais para pautas específicas. Mas, na prática, o que a gente tem é uma perda de quase 90% do orçamento de seis anos para cá.
Pela minha trajetória, de ter vindo de movimentos sociais, de ter estudado fora, eu era a pessoa que estava do outro lado, entendendo a dificuldade do dia a dia. A gente tem muitos sonhos quando chega aqui, então se conseguirmos concretizar pelo menos a metade.
Com tantos desafios, quais são as prioridades para os 120 dias de gestão na pasta?
Estamos desenhando um projeto com a Organização Social Ação da Cidadania [fundada pelo sociólogo Hebert de Souza Betinho], de combate à fome, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social. A primeiríssima medida é o combate à fome.
Há 33 milhões de pessoas passando fome, 70% delas são negras. Outra medida é tratar da saúde da população negra e já estamos discutindo medidas com a [ministra da Saúde] Nísia Trindade. Entre os pontos em discussão estão o acesso à saúde pública, a mortalidade materna e a violência obstétrica. Tem várias outras pautas que a gente precisa cuidar, como a saúde mental das pessoas negras.
O assunto ganhou força drasticamente com situações como suicídios e depressão. Educação é um outro tema que vai estar envolvido em todo o governo. Tivemos uma reunião com o ministro da Educação, Camilo Santana, e já ficou desenhado um grupo de trabalho para pensarmos material didático, por exemplo. As crianças negras não se encontram no livro didático, ele não tem representatividade.
Também debateremos a Lei de Cotas com a Bancada da Educação no Congresso Nacional, pois há muitos projetos tentando derrubar a lei que representa a maior reparação histórica desse país. Temos dados para comprovar os resultados, eu mesma sou fruto de cotas e gosto de repetir isso porque é algo que tentam nos tirar, dizer que os cotistas não têm capacidades e já temos estudos que isso não é real, precisamos desmistificar isso.
Outro ponto importante é relacionado ao enfretamento do genocídio de pessoas negras que temos discutido com Ministério da Justiça. Precisamos pautar discussões como as câmeras nos uniformes dos policiais, reconhecimento facial, a maneira como se dão as operações policiais no país inteiro e o número de jovens que têm sido assassinados constantemente. Esses grupos de trabalho já estão organizados e estruturados, já começam a partir da próxima semana. Paralelo a isso, ainda temos que garantir a estrutura deste ministério. Hoje temos 12 pessoas nomeadas em um universo de 140 cargos.
A senhora tem falado que é fruto da Lei de Cotas, já que ingressou na Universidade do Estado do Rio de Janeiro por meio dessa ação afirmativa. Há projetos em tramitação no Congresso Nacional que buscam limitar o alcance essa legislação. Como pretende atuar nessa interlocução com o Legislativo para evitar que a lei tenha retrocessos?
Estabeleceremos diálogo com todos e todas que estejam dispostos a conversar conosco sobre essa pauta. A gente sabe que o Congresso vai ter um desenho um tanto quanto desafiador nesse ano, mas tenho falado que queremos dialogar com todo mundo.
Eu acho que temos a comprovação de que a Lei de Cotas é eficiente, vamos garantir e mostrar, além de ouvir quem pensa o contrário. O que não dá é para defender quem diz que é “mimimi” ou que os pretos conseguem. Não, esse tipo de discurso, não.
Queremos dialogar com todo mundo, mesmo que pense diferente, mas com respeito. Acho que a primeira coisa é estabelecer essa relação, estar no Congresso, chamar para o diálogo e entender esses projetos. Acho que o Ministério da Educação vai ser imprescindível para a gente defender [esse assunto] e eles já estão muito favoráveis nesta parceria. O próprio presidente Lula também está muito favorável [a esse assunto].
Nesse sentido, o combate à desigualdade racial passa por uma educação antirracista. Neste ano, a Lei 10.639, que prevê a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira completa 20 anos. Na prática, a implementação dessa lei esbarra em questões religiosas e até mesmo de distribuição/produção de material didático. Qual a importância desse conhecimento?
Não há nada que a gente possa fazer sobre isso sozinhos, precisamos do apoio do Ministério da Educação. Em reunião com a secretária de Educação Básica do MEC, Kátia [Schweickardt] esse foi meu primeiro pedido a ela e já estamos construindo [um diálogo].
Neste ano, o livro didático já foi distribuído segundo o ministro da Educação. Para o próximo ano, o objetivo é que o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) seja atualizado e foi muito bom saber que tem pessoas dispostas a dialogar daqui para frente. A gente precisa desmistificar a ideia de que os livros não precisam relatar a realidade dessas crianças.
Eu, como professora, sempre procurava levar exemplos dessa maneira, trabalhando com casos de pessoas de favela que chegavam a lugares que outras pensavam que não chegariam.
Segundo dados do IBGE, os negros representam 70% do grupo abaixo da linha da pobreza. De acordo com pesquisa do Atlas da Violência (2021), eles representam 77% das vítimas de homicídios, o que significa que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. Da mesma forma, as negras representam 66% do total de mulheres assassinadas no Brasil. Como o ministério pretende trabalhar para reverter esse cenário?
Isso é, literalmente, um assunto de segurança pública que não conseguimos mais ignorar. A gente precisa debater de todos os lados, sentar com a polícia, moradores de favela. Chegamos em um ponto no país em que todos os dias temos notícia sobre feminicídio ou histórias como a da menina Rafaelly, que foi assassinada com um tiro de fuzil, uma criança de 10 anos que estava brincando na Baixada Fluminense.
Temos demonstrado muito interesse nesse tema. Um grupo de trabalho com Ministério da Justiça, Mulheres e Direitos Humanos vai ser imprescindível para termos ações concretas, porque não dá para ficarmos só pensando. Temos que agir. Se dermos um Google, vamos ver, por exemplo, o quanto as mulheres negras sofrem.
Como a mulher Anielle Franco reuniu forças para superar o que aconteceu em sua vida pessoal com o assassinato de sua irmã, a vereadora Marielle Franco. O que espera sobre o desfecho em relação à autoria desse caso?
Eu reuni forças muito pela minha base familiar e por tudo que eu acredito, os meus valores. Desde 2018, quando mataram a Mari, passei por muita coisa que eu jamais imaginava: de ser mandada embora de escolas, de ser cuspida na cara por ser irmã da Marielle, ser ameaçada. Mas eu tenho uma base, uma criação que me ajudou, me ensinou a estar aqui e me segurou. A gente vai completar em março meia década. São cinco anos sem saber quem mandou matar a Mari e nem o porquê.
A gente tem especulações, mas não temos essa resposta. Eu espero que a gente consiga responder a esse crime, seja agora no governo Lula ou depois, mas tenho esperanças de que esse crime seja solucionado. E, acho que, muito por ela, pelo nosso legado, nossa família, pela população negra, mulheres negras, que é onde eu tenho me amparado, mantido a minha força e foco no que de fato importa para mim e para as pessoas que acreditam no que estamos fazendo aqui.