Esforço da pasta é, segundo ela, fazer a sociedade compreender a estrutura e o funcionamento da discriminação pela cor da pele
Para que o Brasil caminhe na direção da igualdade racial, não basta apenas dar possibilidade à população preta de avançar socialmente. Segundo a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, é preciso estabelecer o chamado letramento racial — conjunto de práticas pedagógicas cujo objetivo é conscientizar as pessoas (independentemente da cor da pele) da estrutura e do funcionamento do racismo na sociedade, e fazê-las reconhecer, criticar e combater atitudes discriminatórias no dia a dia. Ao CB.Poder — uma parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília — Anielle considera que somente intensificando o letramento racial é que diminuirão os episódios de racismo. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida aos jornalistas Rosane Garcia e Carlos Alexandre de Souza.
O governo completou 100 dias há pouco. O que foi possível fazer nesse período?
Foi desafiador. Em 21 de março, entregamos um pacote dentro do qual havia algumas titulações de terra e três territórios, com a presença do presidente Lula, e também o decreto dos 30% (que reserva esse percentual de vagas às pessoas negras em cargos e funções de confiança). Esse decreto tem um valor muito importante porque começamos a dar o exemplo por nós. Se a gente está sempre falando em ter pessoas negras em todos os cargos de decisão, por que não começar no governo federal? Dentro dos ministérios, a meta é que tenhamos tanto de DAS 1 a 12, e 13 a 17, 30% de pessoas negras em ambas as classificações. Até junho, teremos um Censo com os servidores para que essa meta seja alcançada até dezembro de 2025.
Como tem sido a relação com o Congresso, considerando que o perfil é mais conservador e há certa resistência sobre políticas voltadas para os negros? Desde o ano passado, fala-se muito em acabar com a Lei das Cotas com base no sofisma que produz o "racismo reverso".
Estive no Congresso duas vezes, conversando e pautando coisas, como violência política e educação. Estive no Senado, esta semana, conversando na Comissão de Direitos Humanos. Sai um governo, entra outro, mas as pautas e o povo seguem precisando de atitudes concretas e políticas públicas, mesmo tendo um Congresso conservador. Estarei na Comissão das Mulheres, em maio, e sempre que me chamarem, vou.
A senhora é do Rio de Janeiro e viu o episódio lamentável, em São Conrado, que resume muita coisa sobre o que é racismo (no Domingo de Páscoa, a ex-jogadora de vôlei de praia Sandra Mathias Correia de Sá usou uma coleira de cachorro para bater no entregador Max Angelo dos Santos e agrediu a entregadora Viviane Maria de Souza depois de uma série de xingamentos racistas). Apesar da legislação e de todo o aparato do Estado, quanto tempo ainda será preciso para impedir que cenas assim se repitam?
Sempre digo que para estar na cadeira de ministra da Igualdade Racial, tenho que lembrar de onde vim. Vim do mesmo lugar do Max. A gente sabe o que é o racismo diário. Para além de notificarmos os órgãos competentes, acredito que tem que começar a fazer um trabalho importantíssimo e imprescindível de comunicação, de alerta, para começarem a entender que a lei de injúria racial existe, que se você cometer algum ato de racismo será punido dentro dessa lei. Se a gente parar e pensar que, nos últimos anos, não víamos tantos atos como esse, é porque não eram noticiados e não tinha tanto acesso à internet. Talvez não seja nesses quatro anos que a gente consiga aniquilar o racismo, mas acho que há passos importantes — como se posicionar contra qualquer atitude racista, entender que racistas serão colocados nos seus lugares.
Mas é preciso ir além de punir. É preciso conscientizar.
Sim. Não se combate o racismo se não se garante educação, cultura saúde — é um trabalho conjunto. Sigo firme para que não haja situações como essa ou como a da professora que teve de tirar a roupa, dentro do mercado, para provar que não estava roubando (em Curitiba, Isabel Oliveira, de 43 anos, despiu-se em protesto por ter sido acompanhada de um segurança do estabelecimento como se fosse suspeita de alguma coisa).
Injúria racial passou a ser imprescritível e inafiançável, mas episódios continuam acontecendo, e não se tem informação de punição. Isso não é um mau exemplo?
É um conceito da sociedade, muito entranhado, e é por isso que não se consegue avançar. Instâncias deveriam se posicionar e mostrar que o racismo não é aceitável. Muitas vezes se calam porque nosso racismo nas estruturas existe. Por isso, a importância de termos o ministério, seja para dar o letramento racial, seja ter conhecimento dessa lei, divulgar o que é a injúria racial. Quando acontecer, tem que ter punição, notícia, notificação, mas é preciso políticas públicas e apoio da sociedade.
Mas o racismo não é só de branco para preto, é de preto para preto também. Há negros que talvez não tenham noção da origem dele e rejeitam seus iguais. Como intervir para mudar esse absurdo?
Infelizmente tem muitas pessoas negras sem acesso ao letramento racial. Quando a gente para e pensa nos negros que cometem racismo, falta o letramento racial. Nunca tive vergonha de dizer que estava na faculdade quando conheci autoras negras. Não tinha essa noção. Eu tinha o letramento político, por estar numa família que debatia muito sobre isso, sobre a importância de andar com documento, de não chegar tarde em casa, de estudar sempre porque era favelada e preta. Mas nem todos têm acesso à educação, ao letramento racial e político. Por isso é tão importante a gente começar a aplicar a Lei 10.639 (que estabelece as diretrizes e bases da educação e inclui no currículo oficial de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira"). Quando se fala da história da cultura das pessoas negras, começa-se a entender e os resultados de uma Lei de Cotas, por exemplo.
Quando a senhora fala na 10.639, como fazê-la valer, efetivamente, na grade curricular? A lei existe, mas não é aplicada.
Sou formada no mestrado de relações étnico-raciais no Cefet, do Rio de Janeiro, que aplicava a 10.639. Tem que estar de olho, fiscalizando. Dentro do ministério, temos uma secretária voltada para ações afirmativas e combate ao racismo, que é da secretária Márcia Lima, professora da USP. Não a trouxemos à toa, porque educação é um dos pontos focais do ministério. O letramento racial é essencial. Por isso, a sinergia da nossa secretária com a Secretária de Educação Básica do MEC.
Uma das coisas que refletem o letramento racial e a falta de conduta, das forças de segurança, que são muito violentas nas comunidades e periferias. As chacinas com o povo negro são frequentes. Como intervir na formação desses profissionais?
Quando se fala do enfrentamento do genocídio da população preta, a gente perpassa pelas ADPFs (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) que não são cumpridas, por pessoas que defendem perfilamento racial. Cinquenta e seis por cento da população é negra e mora muitas vezes em periferias, favelas. As pessoas precisam ter empatia e entender o contexto. Lembro quando minha irmã (a vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, no Rio de Janeiro) ainda era viva e a dissertação de mestrado dela falava sobre as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora, projeto que começou a ser aplicado no Rio em 2018), da dificuldade daquelas pessoas (os policiais) terem entrado naqueles espaços sem entender o cotidiano da favela. Todo mundo que passava era suspeito.
O que presica ser feito?
Precisa de mais preparo, pois em alguns lugares a polícia é treinada e formada para guerra. A gente questionou isso, na última semana, quando tinha um caveirão presente em uma escola do Rio de Janeiro. Não era sobre a atitude da polícia, era a exposição de violência às crianças. A questão é como as operações são feitas e por que matam tantos negros moradores de favela.
*Estagiária sob a supervisão de Fabio Grecchi