Quase lá: O revide da mãe preta

A condição das amas-de-leite – as chamadas mães pretas – deixou marcas profundas na história da vida privada no Brasil. 

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

  Publicado: 20/06/2023 - Jornal da USP
 
 

Vende-se uma crioulla de 18 anos de idade, sem o menor defeito, muito elegante e propria para ama de leite por ter o filho recemnascido: lava, engomma e cozinha perfeitamente, Rua da Alfândega n. 251, sobrado.
(Jornal do Commercio, 4 de fevereiro de 1872).

A condição das amas-de-leite – as chamadas mães pretas – deixou marcas profundas na história da vida privada no Brasil. Hoje, circunstâncias atribuídas ao trabalho doméstico, em sua maioria executado por mulheres negras, ainda trazem o verniz das relações patriarcais e escravistas dos tempos coloniais, quando, para os serviços íntimos e delicados, escolhiam-se nas senzalas as cativas mais limpas, fortes e menos africanizadas ou, ainda, alugavam-se ou vendiam-se as negras “perfeitas” em anúncios de jornais.

Consideradas mercadorias caras, essas mulheres, de certo modo, cumpriam as funções maternais, uma vez que a relação entre elas e as crianças brancas seguia desde dar de mamar no peito até os cuidados na infância – uma idiossincrasia cruel que escravizou o corpo e o afeto destas amas. Mistura complexa entre opressão e relações familiares, elas compõem instigante temário na história da arte brasileira. São conhecidas as imagens das amas-de-leite negras, registradas desde meados do século 19 ao início do século 20.

Algumas investigações que partem desta iconografia são bastante difundidas, tais como as que têm como mote a técnica fotográfica. Aliás, a chegada da fotografia no Brasil gerou inúmeros registros de pessoas e paisagens de uma forma tecnicamente diferente do desenho e da gravura, e essa inovação captou uma sociedade que queria se ver retratada em franco progresso. Contudo, existia uma camada social que não era dona da própria imagem: a representação da população negra na imagem fotográfica reflete uma situação de marginalidade; pessoas que não contemplavam e tampouco possuíam seus retratos. À técnica fotográfica interessava o comentário de sua diversidade exótica – a motivação era comercial ou antropométrica. Os negros são mostrados, então, em cenas que oscilam entre o mundo do trabalho e hábitos considerados “extravagantes”.

No campo da fotografia, a coleção Francisco Rodrigues (Fundação Joaquim Nabuco, Recife – PE) é fonte de pesquisa relevante porque contém registros de meninos brancos (filhos da aristocracia) com suas respectivas amas-de-leite. Nessa coleção, por exemplo, está o retrato de Augusto Gomes Leal com a ama-de-leite Mônica, 1860 (F. Villela, Photographo da A. Casa Imperial do Brasil), uma das imagens mais conhecidas desta iconografia, assim como a fotografia de Isabel Adelaide Leal Fernandes com a ama-de-leite Mônica, c. 1860-1889 (Photographia Allemã, Alberto Henschel & Co). Em ambas, a ama está com suas crianças brancas – a casa-grande e a senzala unidas pelo índice fotográfico. Chama a atenção o fato de as fotografias trazerem o nome da ama-de-leite – algo bem raro à época; as crianças “um pouco mais grandinhas”, colocadas em pé ao lado da ama, com trajes elegantes e sentada e, por fim, a passagem do tempo para Mônica. Percebe-se que entre a criação de Augusto e Isabel, seus cabelos, seu corpo e sua postura envelheceram… mas algo de melancólico ainda permanece.

Na colagem digital Possíveis sonhos de Mônica, 2019, Eliana Amorim, artista visual e integrante do Grupo de Pesquisa Nzinga: Novos Ziriguiduns (Inter) Nacionais Gerados nas Artes CNPq/URCA, reconstrói a imagem; coloca nossa personagem em fundo texturizado e chão ladrilhado, ao lado de duas crianças negras – talvez, seus filhos legítimos, aqueles abandonados em proveito dos filhos dos senhores. A obra Reintegração de leite, 2019, também de Eliana Amorim, faz referência a outro retrato bem conhecido, Ama de leite com o menino Eugen Keller, Pernambuco, 1874 (Coleção G. Ermakoff) – e, de novo, o menino loiro é substituído pelo negro. Assim, artistas e pesquisadores têm questionado e feito um exercício de resgate destas mulheres.

Nas artes visuais, cenas de amamentação e as amas-de-leite compõem as pinturas impressionistas de Degas, Renoir e Morisot, por exemplo, mas também estão nos desenhos e gravuras de artistas-viajantes, tais como Debret e Rugendas. Integram o repertório temático de pintores e escultores acadêmicos e modernos. Porém, o que nos desperta interesse é o reexame dessas imagens. Longe de ser um tema de pesquisa inédito, vê-se que esse imaginário que cerca as mães pretas motiva investigações atuais com diversas abordagens. Mencione-se aqui as pesquisas de Isabel Löfgren e Patrícia Gouvêa para a exposição Mãe preta, realizada na Galeria Pretos Novos de Arte Contemporânea (Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos), no Rio de Janeiro, em 2016. As pesquisadoras conseguiram reunir um acervo de imagens e documentos que nos mostra as ressonâncias entre a condição social da maternidade durante a escravidão e as vozes de mulheres e mães negras na contemporaneidade.

Percebe-se que esse esforço de pesquisa tem redimensionado obras, tais como Mãe preta, 1912, de Lucílio de Albuquerque, que ao ser colocada nessa chave de releitura, se torna evidência da História. A tela apresenta uma ama, sentada ao chão, amamentando uma criança branca e, ao seu lado, uma criança negra. O lugar é claramente miserável e torna-se pano de fundo, quando o olhar é apreendido pelo aspecto melancólico e apático da mulher no ato de amamentar a criança branca, enquanto seu filho aguarda sua vez. Para a pesquisadora Sarah Dume, particularmente, no seu texto Sociedade e cultura na obra Mãe preta (1912), de Lucílio de Albuquerque, essa cena possivelmente retrata o momento pós-abolição – quando as ex-escravizadas recorrem ao ofício de amas-de-leite como meio de subsistência.

Outro destaque é Mãe preta, 1955, de Júlio Guerra – monumento localizado ao lado da Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos (Largo do Paissandu). A escultura foi uma iniciativa do Clube 220, entidade que congregava agremiações negras no Estado de São Paulo. Segundo os apontamentos de Alexandre Araújo Bispo, no artigo Mãe preta: memórias e monumentos negros, publicado em Omenelick 2 ato, em 2011, a primeira ideia, surgida nos anos de 1920, era que cada grande cidade tivesse a “sua mãe”, porém, dificuldades político-econômicas abortaram o projeto. A escolha direcionada à imagem da mãe preta trazia a polêmica: essas mulheres representavam o trabalho, o amor, a negação de seus próprios filhos frente à criação dos filhos dos brancos – um símbolo que para alguns era elogio e, para outros, deveria ser esquecido. Nos anos de 1970, a militância negra entendeu que a imagem da mãe preta só servia às elites. Viu-se, então, que ao longo dos anos, a revisão da história trouxe de volta a reflexão sobre as mães pretas e amas-de-leite – algo discutido, hoje, por artistas negras.

Nessa direção, Axexê da negra ou o descanso das mulheres que mereciam ser amadas, 2017, de Renata Felinto – performance que já apresentamos no texto A última pagodeira futurista, aqui no Jornal da USP – tem efeito de redenção. Aqui, permita-me um aparte: Renata Felinto tem densa investigação sobre maternidade e os afetos da mulher negra – algo muito interessante na trajetória da artista. Mas, voltando à performance, evoca-se a memória de todas as amas-de-leite, usando como referência um ritual do candomblé, em que após o falecimento do iniciado, por meio deste rito de passagem libera-se a espiritualidade. Assim, ela enterra as fotografias das amas-de-leite conhecidas por nós e, igualmente, uma reprodução da obra A negra, 1923, de Tarsila do Amaral, liberando todas as mães pretas que viveram essa condição. Ao mesmo tempo, o ritual liberta as filhas destas amas que, de algum modo, continuam a servir os filhos da elite brasileira, assim, a performance também redime essas mulheres que merecem dignidade e não aceitam mais serem desumanizadas. No Axexê da negra, enterra-se este passado de violência.

Diga-se, então, que na tradição das amas-de-leite, A negra, de Tarsila do Amaral, tornou-se obra-problema. Isto porque ela reúne diversos aspectos que merecem ser problematizados, entre eles: a representação é excluída de sua humanidade e de identificação; o reforço dos seus atributos associados ao trabalho, como o seio mais alongado, remetendo à sua função como ama-de-leite. E, ainda, algo tão íntimo para as mulheres negras: a ausência de cabelos. Igualmente, Tarsila embrutece as características físicas de sua modelo, o nariz negroide, pés e mãos enormes, cabeça pequena e os lábios exagerados, carregando na estigmatização. Ao representar o outro, a pintora o objetifica: ele não tem nome e tampouco história; é tão somente um corpo exilado em servidão.

Mas encontra-se revide nas amas-de-leite de Rosana Paulino. Em Ama de leite, n.1, 2005, e em outras obras deste período, a artista usa pequenas bonecas plásticas amarradas por fitas de cetim ao tronco negro de múltiplos seios, e aqui a artista subverte o jogo de poder, colocando o corpo preto em evidência, sendo os filhos brancos os objetos de menor valia. Numa visada rápida, tal como Tarsila, a escultura de Paulino não tem uma identidade, não tem um rosto, mas ela consegue tensionar o não lugar da mulher negra; nos mostra com crueza que aquele torso era objeto que serviu de alimento; um negócio lucrativo para os que a possuíam, sendo vendidas, alugadas e anunciadas como mães pretas. Nos desenhos da série Ama de leite, 2005, Paulino desmonta o mito de que essas mulheres foram submissas e abnegadas, sendo fonte de nutrição para outra criança, elas foram destituídas da experiência materna – seus seios têm leite, lágrimas e sangue.

Assim novas pesquisas e proposições artísticas conectam as memórias ancestrais às vivências atuais, ressignificam imagens, reescrevem a história e, acima de tudo, redirecionam trajetórias, devolvendo elementos que humanizam as mulheres negras – as mães pretas. Essas investigações e as obras que nascem delas são revides, uma confirmação de que nossa liberdade é garantida por nós, a partir de narrativas que serão escritas por nós.

fonte: https://jornal.usp.br/articulistas/alecsandra-matias-de-oliveira/o-revide-da-mae-preta/


Matérias Publicadas por Data

Artigos do CFEMEA

Coloque seu email em nossa lista

lia zanotta4
CLIQUE E LEIA:

Lia Zanotta

A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?

ivone gebara religiosas pelos direitos

Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

Violência contra as mulheres em dados

Cfemea Perfil Parlamentar

Logomarca NPNM

Direitos Sexuais e Reprodutivos

logo ulf4

Cfemea Perfil Parlamentar

Informe sobre o monitoramento do Congresso Nacional maio-junho 2023

legalizar aborto

...