Quase lá: A conversão da última umbandista do quilombo Teixeira

Ela não conseguiu resistir e cedeu à pressão. O império nada sagrado: " ela me revelou que cedeu. Com a crença convertida, há pouco mais de um ano, ela frequenta, na comunidade, um templo da Igreja Mundial do Poder de Deus."

 


Crédito: Géssica Amorim/Coletivo Acauã

 

por Géssica Amorim, em parceria com o Coletivo Acauã


Crédito: Coletivo Acauã

 

A última vez em que estive na comunidade quilombola Teixeira, localizada na zona rural do município de Betânia, Sertão do Moxotó, foi em setembro de 2021. Àquela época, fui até lá para entrevistar dona Francisca dos Santos, que era a última umbandista do Quilombo Teixeira. 

Quando conversei com ela há quase dois anos, Francisca fazia parte de um pequeno grupo de habitantes da comunidade que ainda não havia aderido ao neopentecostalismo.  Isolada, nos limites de um quartinho construído próximo à sua cozinha, ela praticava a sua religião tentando escapar dos julgamentos e do assédio de familiares e vizinhos que tentavam convertê-la. 

Na última quinta (13), voltei à casa de Dona Francisca e, enquanto conversávamos sobre a sua vida religiosa, ela me revelou que cedeu. Com a crença convertida, há pouco mais de um ano, ela frequenta, na comunidade, um templo da Igreja Mundial do Poder de Deus. A igreja tem sede fundada em 1998, na cidade de São Paulo, pelo pastor Valdemiro Santiago, frequentemente envolvido em escândalos ligados à exploração da fé alheia e propaganda enganosa. 

Dono de mais de 6 mil templos espalhados pelo Brasil e por outros 21 países, em 2021 ele foi flagrado tentando transferir irregularmente 1,2 milhão de reais da própria igreja para o seu patrimônio pessoal. Já em 2020, durante a pandemia, o pastor foi acusado de estelionato, ao anunciar na televisão a venda de sementes de feijão com poderes de curar a covid-19.

É possível que os moradores da comunidade quilombola Teixeira não estejam atentos aos escândalos em que o pastor Valdemiro Santiago está envolvido e nem ao fato de muitos pastores evangélicos serem denunciados por venderem falsos milagres e se apoiarem na teologia da prosperidade para exaltar muitos privilégios que o dinheiro pode trazer e, assim, buscarem doações para os seus ministérios. 

O Quilombo Teixeira é habitado por uma média de 300 famílias. Em sua maioria, famílias evangélicas, de ramificações distintas. Além da igreja que Dona Francisca hoje frequenta, no território do quilombo ainda há mais outras duas: Adventista do Sétimo Dia e a Assembleia de Deus – Ministério de Madureira.  

Quando escrevi sobre as crenças e a religião de Dona Francisca, há quase dois anos, considerando as mudanças de caráter religioso em sua comunidade e a intolerância e perseguição históricas às religiões de matrizes africanas, é inevitável pensar que a influência pentecostal tem conseguido interferir na vida e na cultura da população do Quilombo Teixeira, silenciando e apagando as suas origens e tradições.

 

Ao ser perguntada se os julgamentos e toda a violência que sofreu por praticar a sua antiga religião, a umbanda, colaboraram para sua conversão, dona Francisca reconhece que sim. “Acredito que sim, isso faz parte dos motivos. Tudo me deu desgosto. É ruim você ser julgada por um mal que não fez. Eu sofria muito. Então, eu pedi a Deus que ele me desse força e que me libertasse. Prometi que se eu conseguisse sair [da umbanda], eu passaria pra lei de crente. Hoje, eu frequento a Mundial, que é perto de casa”.

Confesso que estranho, quando ouço Dona Francisca falar de liberdade, ao se referir ao movimento de deixar a umbanda, religião que praticou durante toda a vida, carregando ensinamentos, saberes  da cultura dos seus ancestrais. Depois de tanto julgamento, intolerância, e de toda a pressão que sofreu para que se convertesse, de onde viria esse pensamento?

Dona Francisca conta que sempre foi procurada por pessoas de outras cidades e até de outros estados, que chegavam à sua casa para pedir ajuda para tratar de casos de doença e até  para afastar espíritos ruins de corpos dominados por eles. Hoje, quem a procura com intenções parecidas, é recebido de maneira diferente. E, por isso, ela expõe que tem sido cobrada pelos espíritos que antes eram os seus guias espirituais. “Eles [os espíritos] me cobraram muito. Não faz muito tempo que eu levei um tapa tão grande de um deles, na cara. Eles falam perto do meu rosto, eu ouço as vozes em cima da casa, quando vou dormir. Mas eu creio que eles não podem mais do que Deus. E, quando dobro meu joelho, é pra pedir a ele que não me tire desse caminho que eu estou agora”.

O quartinho de dona Francisca está fechado. As imagens foram retiradas do altar, cobertas com um lençol e guardadas em um armário nos fundos da casa. Por respeito às divindades, ela não se desfez completamente de tudo. “Eu não joguei no mato. Eu não me desfiz de nada, só guardei. E eu fiz isso porque eles me ajudaram muito, me defenderam, ajudaram a minha família. Com o tempo, tudo se acaba. Eu só não quero mais trabalhar, praticar”.

A vizinha ex-evangélica

Depois do encontro com Dona Francisca,  conversei com a pedagoga Mailza Costa, 33, que vive no Quilombo Teixeira desde que nasceu. Por motivos pessoais, que sobre os quais prefere não comentar, recentemente ela decidiu parar de frequentar a Assembleia de Deus – Ministério de Madureira. Mailza frequentou o templo da Assembleia por mais de seis anos.

Crescendo na comunidade e vivendo perto da casa de dona Francisca dos Santos, a pedagoga conta que, por muito tempo, enxergou de maneira negativa a antiga religião e as práticas de Dona Francisca. Ela considera que, para isso, foi motivada pela falta de conhecimento a respeito das religiões de matrizes africanas e pelos julgamentos e comentários maliciosos que ouvia de pessoas ao seu redor, a respeito do assunto. 

Com o afastamento da igreja e começando a buscar com mais disposição saber sobre as suas raízes e os seus ancestrais, ela chega a lamentar a maneira como se deu a conversão de Dona Francisca. “De alguma forma, a gente perde a nossa essência, perde as nossas raízes. Nós até tentamos fazer um resgate, mas a gente não consegue. Aqui, na comunidade, a gente tem pessoas de várias religiões, mas a maioria é evangélica. É claro que não parte de todas as pessoas que aderiram ao protestantismo, mas existe a perseguição religiosa. A questão de colocar o seu Deus como o único e suficiente, nos fazendo pensar que quem tem outra religião cultua o diabo”.

Hoje, Mailza se considera uma pessoa sem religião. E acredita que, em tudo, há um lado bom e ruim, aplicando o pensamento à crença e à fé. “Hoje, eu estou na minha, tranquila. Não tenho religião. Respeito todas elas, e, com relação às de matrizes africanas, eu comecei a buscar entender, a me interessar, para conhecer as raízes dos meus ancestrais. E eu vejo que tudo o que está relacionado a isso faz parte dos costumes, da cultura. Não é algo demoníaco, como cresci ouvindo”.


A pedagoga Mailza era evangélica e, agora, quer conhecer melhor a umbanda. Crédito: Géssica Amorim/Coletivo Acauã

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